Horizonte cerrado* 1: A conveniência das causas perdidas
A certa altura do século XX, Drummond dizia sobre o exercício da profissão de escritor: “Doce é projetar, rude é cumprir”. Nada mais verdadeiro para um ofício que, se nasce do sonho, não existe por causa dele. A cotidiana entrega à tarefa do trabalho realizador é o que faz o poema e não a pura inspiração delirante, que, embora opere importante papel no processo, tem uma consistência etérea que se deve superar para realizar. Assim, a rudeza de “cumprir” está intimamente ligada ao atrito do sonho com a realidade, uma vez que, em tal processo, é claro, o projeto se tornará outra coisa, num movimento de nervo dialético essencial.
Desse modo também se faz a política, como elemento organizador da vida na polis. Se não é possível deixar de lado os sonhos, é preciso também apostar na criação de condições para que eles possam se cumprir, sem alimentar ilusões de que, na prática, eles serão tudo aquilo mesmo que foi sonhado. O tão mal compreendido pensador italiano Niccolò Maquiavel foi um dos que primeiro sistematizaram certa forma moderna de conceber a ação política considerando as “coisas como realmente são” e não apenas “como deveriam ser”. Na dialética sonhar/cumprir da política o “ser” e o “dever ser” precisam se equilibrar e se provocar, para que haja verdadeira transformação progressista.
Em ano de eleição, será fundamental que saibamos avaliar essa dialética, tendo em vista que a mídia já ocupou o espaço discursivo da disputa com o campo semântico da “mudança”. Reconhecer o agenciamento ideológico dessa palavra, no contexto do Brasil atual, e reagir a ele são os desafios mais imediatos de quem está comprometido com a permanente e profunda transformação das estruturas arcaicas da comédia política nacional. Não podemos correr o risco de cair na esparrela de mudar para continuar como sempre fomos.
No oco da tal “mudança”, está o espectro das cômodas “causas perdidas”, aquelas que não se constroem como sonho, mas como ilusão política infantil ou como manifestação de rancor de classe. Normalmente tais causas perdidas organizam-se em torno de substantivos abstratos ou de ampla conotação, dentro dos quais atores e causas reais se diluem num vazio agradável aos ouvidos, mas sem eficácia transformadora. São as marchas “pela paz”, “contra a corrupção”, “pela saúde”, “pela educação”. É claro que ninguém será contra tais causas e nossa tarefa, portanto, é sentir o peso ideológico desses motes no contexto específico do processo social brasileiro.
Bem alojada no leito das “causas perdidas” está a nossa elite rancorosa e patrimonialista, que cresceu (sem se tornar adulta) alimentada pelo capitalismo brasileiro viciado em dinheiro público. Uma elite sempre apressada em espezinhar moralmente os de baixo e os que os representam. Ao lado dessa protodireita malandra, agita-se nas “causas perdidas” um tipo de esquerda que (de modo não menos infantil) tomou gosto pelo oportunismo político de tipo pós-moderno, que é mais espetáculo do que ação. Atenta à última moda vinda de fora, essa esquerda é perita em enunciar um discurso vistoso, alimentado com ideias que estão fora do lugar e cuja forma é tantas vezes agressiva ou violenta. Os jornais estão cheios de exemplos que comprovam o que digo, e o pseudo-movimento “#nãovaitercopa” é uma das mais recentes e brilhantes epifanias das “causas perdidas” como modo político para acomodar-se, a fim de gozar o “doce projetar” num espaço razoavelmente livre de contradições e a bem do “quanto pior, melhor”.
Quem cede a tão tentadores motes se esquece de que não apenas a política, mas também a própria vida evolui não a despeito das contradições e sim através delas. Há movimentos sociais organizados e partidos políticos que jamais se esqueceram disso. Historicamente essas forças coletivas tiveram de lidar rudemente com a rudeza do real, para que alguns dos seus sonhos se tornassem ocupação permanente do espaço político no Brasil. Alguns exemplos dessas forças são o Partido dos Trabalhadores, que talvez tenha de repensar a sua ação política em relação à hegemonia que conquistou; o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, que talvez tenha que se reativar como ponta-de-lança nacional na crítica do capitalismo periférico; e, por fim, mais recentemente, o Movimento Passe Livre, que talvez tenha de saber amadurecer ampliando sua atuação de ocupação pública do espaço urbano construindo-se de fato como alternativa representativa do sofrimento dos oprimidos pela cidade do capital. Todos, como se vê, têm pautas reais de mudança à sua disposição. Nos últimos anos, com eles e com seu realismo político humanista nós todos aprendemos muito. E quem sabe, antes de “mudar”, ainda tenhamos muito a aprender.
*“Horizonte cerrado” é a expressão que inicia o primeiro verso do soneto de abertura do livro Poesias (1948) do poeta carioca Dante Milano. Sendo microcosmo do poema, a expressão também serve para expor a situação atual de um mundo cuja dinâmica real nos aparece sempre encoberta por nuvens ideológicas cada vez mais intrincadas. O que pode o olhar do poeta, do escritor e do crítico literário diante disso tudo? Esta coluna, inspirada na lição de velhos mestres, quer testar as possibilidades de olhar algo do real detrás da névoa, discutindo literatura, arte, política e pensamento hoje.
Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universiade de Brasília. É autor de A nação drummondiana (7Letras, 2009) e organizador do volume de ensaios O Brasil ainda se pensa – 50 anos de Formação da Literatura Brasileira (Horizonte, 2012).
Publicado em seu blog: www.alexandrepilati.com