Boito combate a ideia de que o poder na sociedade capitalista é difuso e não hierarquizado. Ele lembra que “o poder que se exerce na família, na escola, na empresa, nos hospitais ou na prisão”, tão valorizados por Foucault, “é conferido ou regulamentado por normas legais e fiscalizadas pelo aparelho de Estado (capitalista)”. A ideia de um poder difuso (micropoderes) pode conduzir a uma dispersão das lutas sociais (e políticas), desviando as massas populares daquele que é o principal locus do poder nas sociedades classistas: o Estado.

Introdução

Michel Foucault refere-se, em diversos textos, entrevistas e palestras criticamente àquilo que seria o conceito “tradicional” de poder. Critica especificamente o marxismo por, segundo ele, aceitar esse conceito tradicional. Reprova em tal conceito a sua ambição de generalização e sistematização, a importância indevida que se concederia à ação repressiva e o fato de o poder ser concebido como algo concentrado institucionalmente no Estado e exercido por uma parcela da sociedade sobre outra. Foucault sustenta que não possui e que não pretende desenvolver um conceito geral alternativo de poder, mas apenas analisar o poder onde ele se manifesta. É claro, contudo, que ele não pode identificar o poder “onde ele se manifesta” sem partir de um conceito geral de poder minimamente desenvolvido – e nós veremos que ele possui esse conceito, ainda que evite dizê-lo.

O objetivo deste pequeno texto é refletir sobre a crítica de Michel Foucault ao conceito tradicional de poder e ao marxismo. A obra de Foucault, além de sua importância intrínseca, é, ainda hoje, estudada e debatida com grande interesse nas universidades. Foucault está vivo e forte no Brasil. No ano de 2004, por ocasião do vigésimo aniversário de falecimento do autor, tivemos no Brasil uma ampla mobilização de professores, estudantes, pesquisadores e intelectuais, nas universidades e nos centros culturais, para o estudo da sua obra. Como exemplo, poderíamos citar os seminários organizados em diversas universidades brasileiras (Unesp, Unicamp, UERJ, UFRGS, UFMS, UFSC e outras) e em diversos centros culturais (CCBB do Rio de Janeiro, MIS de São Paulo e outros) sobre a obra de Foucault. Esses seminários atraíram muitos pesquisadores e um grande público em todo o Brasil. Parte deles atraiu também pesquisadores estrangeiros, obtendo uma certa repercussão internacional.

Neste texto, não consideraremos o conceito de poder e suas transformações ao longo de toda a obra de Foucault. O próprio Foucault avaliou que somente no início da década de 1970 ele teria adquirido consciência de que o eixo de suas pesquisas era o problema do poder e não o problema do saber e do conhecimento. Numa conhecida entrevista concedida a S. Hasumi, datada de 1977, Foucault declarou:

“Durante muito tempo acreditei que aquilo que eu corria atrás era uma espécie de análise dos saberes e dos conhecimentos, tais como podem existir em uma sociedade como a nossa: o que se sabe da loucura, o que se sabe da doença, o que se sabe do mundo, da vida? Ora, não creio que esse era o meu problema. Meu verdadeiro problema é aquele que, aliás, atualmente, é o problema de todo mundo: o do poder.” (1).

Iremos considerar, então, uma fase específica da obra de Foucault, situada em meados da década de 1970, que compreende a maior parte dos textos publicados no Microfísica do poder, o primeiro volume da História da sexualidade, e outros textos que citaremos em nossa intervenção.

As quatro teses de Michel Foucault

Em 1976, ano da publicação de La volonté de savoir (A vontade de saber), Michel Foucault esteve no Brasil. Proferiu em Salvador da Bahia, na UFBA, uma palestra na qual resumiu as suas críticas àquela que seria, segundo ele, a noção tradicional e burguesa de poder. Pouco tempo antes, ele passara pela cidade de Campinas, no interior do estado de São Paulo, onde, na sede do Centro Acadêmico de Ciências Humanas (CACH) da Unicamp, proferira palestra semelhante. O que ele disse aos estudantes da Unicamp não foi gravado, mas o texto da palestra de Salvador foi publicado pela revista Magazine Litteraire (Revista Literária), no número de setembro de 1994, e saiu, posteriormente, num dos volumes de Dits et écrits (Ditos e escritos) (2).

Foucault sustenta nesse texto que a visão tradicional e burguesa do poder seria a mesma que encontraríamos nos autores marxistas. Sugere que os marxistas não estariam, nessa questão, acompanhando a obra de Marx. Marx, para Foucault, teria uma visão do poder mais próxima da sua. As ideias que Foucault apresenta nesse texto são teses já conhecidas dos leitores da sua obra, mas o mais interessante consiste no caráter sistemático da exposição que faz. Ele enumera, uma a uma, quatro teses e as apresenta de maneira polêmica.

Primeira tese: não existe um ou o poder, mas, sim, vários poderes. Cada um desses poderes teria a sua especificidade histórica e geográfica. O próprio Marx pensaria, segundo Foucault, dessa maneira, quando analisa, em O Capital, o poder do capitalista no local de trabalho. Esse poder seria específico frente ao poder jurídico existente no resto da sociedade. Diz Foucault: Marx mostrou que o poder patronal no local de trabalho é impermeável frente ao poder de Estado. E conclui a sua tese número um, afirmando: “A sociedade é um arquipélago de poderes diferentes.” (3). Nesse caso, concluímos nós, seria errôneo falar em poder de uma parcela da sociedade sobre a outra, como ocorre com a teoria das elites, que concebe o poder da elite sobre a massa, ou, o que nos interessa de perto, como ocorre com a teoria marxista, que concebe o poder da classe dominante sobre a classe dominada (4). O poder seria socialmente difuso.

Segunda tese: esses diversos poderes não devem ser compreendidos como uma espécie de derivação de um suposto poder central. Ao contrário, diz Foucault, foi a partir dessas pequenas regiões de poder – a propriedade, a escravidão, a fábrica moderna, o Exército – que puderam se formar, pouco a pouco, os grandes aparelhos de Estado. “A unidade estatal é, no fundo, secundária em relação a esses poderes regionais específicos, os quais veem em primeiro lugar.” (5). Apesar de os marxistas insistirem na centralidade do Estado, Marx, na obra O Capital, estaria, segundo Foucault, próximo desse esquema que apresenta o poder como uma rede de poderes específicos. Nesse caso, concluímos, seria errôneo falar em concentração de poder na instituição do Estado. O poder socialmente difuso seria, também, institucionalmente disperso.

Terceira tese: esses poderes específicos, locais e regionais, têm por função primordial produzir aptidão, eficiência. A função principal de tais poderes não é, portanto, a de proibir, de impedir, de dizer “você não deve”. Falando da função produtiva da nova organização militar, que se desenvolveu na Europa ocidental entre os séculos XVI e XVII, Foucault destaca dois pontos. Primeiro, que a mudança organizacional das forças armadas foi provocada pela tecnologia – uma “descoberta técnica: o fuzil de tiro rápido” – e, segundo, que tal mudança visou à eficiência das “Forças Armadas como produtora de mortes” e “não, absolutamente, à proibição.” Está subentendido que, segundo Foucault, a visão tradicional, burguesa e dos autores marxistas, considera erroneamente o poder como instituição fundamentalmente repressiva.

Quarta tese: esses mecanismos de poder, esses procedimentos, devem ser considerados como técnicas, isto é, como procedimentos que foram inventados, aperfeiçoados, que não cessam de se desenvolver. Conclui-se que a análise do poder deveria concentrar-se nos métodos utilizados para o exercício do poder e não no conteúdo das medidas tomadas, nos objetivos almejados pelo poder e na questão de saber quem são os beneficiados e os prejudicados por tais medidas. Os meios de exercício do poder, e não o seu conteúdo e objetivo, seriam o elemento mais importante no estudo do poder. Na obra La volonté de savoir, livro publicado no mesmo ano da palestra proferida em Salvador da Bahia, Foucault apresenta uma definição de poder claramente consistente com as quatro teses que arrolei acima.

“Por poder (…) eu não entendo um sistema geral de dominação exercido sobre um elemento ou um grupo sobre o outro, e cujos efeitos, por sucessivas derivações, atravessam o corpo social como um todo. A análise, em termos de poder, não deve postular, como pressupostos, a soberania do Estado, a forma da lei ou a unidade global de uma dominação; estas são apenas as formas terminais. Por poder, parece-me necessário compreender a multiplicidade de relações de força que são imanentes ao domínio em que elas são exercidas, e são constitutivas de sua organização; o jogo que, pela via das lutas e de enfrentamentos incessantes, as transforma, as reforça, as inverte”. (6).

Concentração institucional do poder no Estado: a repressão 

Para comparar criticamente o conceito marxista de poder político com as teses de Michel Foucault sobre o conceito de poder, podemos proceder de duas maneiras distintas.

A primeira maneira consistiria em nos perguntarmos sobre a problemática teórica subjacente às considerações foucaultianas. Seria preciso contrastar essa problemática com a problemática marxista, e refletir sobre a eficiência de cada uma delas como terreno apropriado para a produção de conceitos pertinentes para o estudo do poder. Explicando-me. Foucault situa o poder no campo das relações interindividuais, enquanto Marx e a tradição marxista o situam no campo das relações de classes; o poder no marxismo está vinculado à reprodução de determinadas relações de produção e a transformação do poder é o instrumento da mudança histórica, enquanto Foucault não está preocupado com a função social do poder e tampouco trabalha com uma teoria da história (7). Há, portanto, uma heterogeneidade de problemáticas que aconselha cuidados especiais na comparação direta entre um e outro conceito de poder.

Tal comparação é, contudo, possível. Os conceitos, mesmo pertencendo a problemáticas distintas, podem assentar-se num atributo comum. Podemos imaginar, para compreender isso, um desenho de uma árvore, com um tronco do qual se desprendem os galhos divergentes distribuídos em uma grande copa convexa. Começando pelo alto da copa e percorrendo o caminho que vai dos galhos mais finos, aos mais grossos e, finalmente, atingindo o tronco para o qual convergem, talvez descubramos nesse último um atributo comum dos conceitos comparados. Nesse tronco, que pode representar um plano mais geral e abstrato, penso que poderemos encontrar um terreno em que os conceitos de poder presentes em Foucault e em Marx falam uma mesma linguagem. É esse tronco comum que permite, até certo ponto, e observados certos cuidados, compararmos diretamente o conceito de um e de outro, que é o caminho que escolhemos. Tal terreno comum é o seguinte: ambos os conceitos nomeiam, ainda que em problemáticas distintas, os mecanismos que induzem determinados comportamentos dos agentes sociais.

Esclarecido o procedimento que iremos adotar, tratemos de examinar as teses de Michel Foucault. Começaremos pela crítica da segunda e da terceira tese arroladas pelo autor em sua palestra. O poder encontra-se institucionalmente difuso ou disperso, como anuncia a tese número dois de Foucault? Nós entendemos que não. Marx e a tradição marxista estão, a nosso ver, corretos ao pensarem o poder político concentrado institucionalmente no Estado. No desenvolvimento dessa ideia, dois elementos devem ser considerados: a existência do aparelho repressivo do Estado e a sua utilização na manutenção da ordem, fator que é minimizado ou negado por Michel Foucault na sua terceira tese, e a ideologia produzida e difundida por esse mesmo aparelho de Estado, fator que Foucault ignora por completo porque desconhecia grande parte da produção marxista sobre a teoria do Estado e do poder político, produção que já estava ao seu alcance na França quando ele elaborou as teses que enumeramos. Primeiro, uma palavra sobre a importância da repressão no exercício do poder, já que ela é descurada por Michel Foucault. Foucault ignora que a simples ameaça de repressão, ou a certeza de que a repressão virá se tal ou qual ação for praticada, dissuade as ações contrárias à ordem. Gerard Lebrun, polemizando com a visão edulcorada que Foucault apresenta do poder, recorda, com felicidade, o caso do black-out ocorrido em Nova Iorque no ano de 1977. A população dos bairros populares, consciente de que a falta de energia elétrica impediria a política de agir com um mínimo de eficiência, saqueou em massa as lojas de bens duráveis como aparelhos de imagem e som, eletrodomésticos de cozinha e outros (8). A propriedade privada é respeitada também pelo medo da repressão. Ora, como Max Weber lembrava, para fins teóricos outros, o Estado, em situações de estabilidade política, detém o monopólio do uso legítimo da força. Além do efeito dissuasivo propiciado pela ostentação do seu aparato repressivo, o Estado usa de dois modos a força repressiva: de modo aberto e massivo, nos momentos críticos de enfrentamento com movimentos políticos e sociais, mas também de maneira molecular e pouco visível na contenção quotidiana dos atos de desobediência que ocorrem nos diversos centros de poder. Essa é uma questão tratada na bibliografia marxista, ainda que muito trabalho esteja para ser feito nessa matéria. Para nós, o importante é lembrar que o poder que se exerce na família, na escola, na empresa, nos hospitais ou na prisão é conferido ou regulamentado por normas legais estabelecidas e fiscalizadas pelo aparelho de Estado. Deixemos de lado a análise da função social e da importância, que variam muito, de cada um desses diversos centros de poder e, tomando a questão nos termos que o próprio Foucault a coloca, consideremos, através de alguns exemplos, a dependência desses centros frente à instituição do Estado. Vamos travar a polêmica considerando apenas a sociedade e o Estado capitalista.

As relações de parentesco existem muito antes de existir Estado e capitalismo e são, efetivamente, relações de poder interindividual. Mas as relações de parentesco no capitalismo são relações de parentesco de um tipo histórico determinado e se encontram regulamentadas pelo Estado capitalista. São os tribunais que, em última instância, decidem sobre a validade das relações de parentesco, sobre a transmissão de herança, sobre a guarda de filhos e outros assuntos que estão na base da organização familiar burguesa e cabe à parte prejudicada por tais decisões a obediência ou as sanções penais. A autoridade do professor ou do médico também é real, mas ela baseia-se na no sistema escolar estabelecido e regulamentado pelo Estado – basicamente, na exigência legal do diploma para o exercício de determinadas profissões – e também nesse caso a transgressão implica sanção legal. Existe o poder patronal dentro da empresa capitalista, o que aparece, como bem sabem os trabalhadores, na capacidade do empregador para estabelecer o regulamento interno da empresa, isto é, as condições para a máxima utilização da força de trabalho. Mas esse poder patronal, que é um poder real, está regulamentado pelo Estado e procede, todo ele, do estatuto da propriedade privada, estatuto que o Estado capitalista criou e se incumbe de preservar. Foucault afirma, erroneamente, que o Estado não logra atingir o poder patronal na empresa. É certo que ele poderia arguir que o empregador pode afrontar decisões governamentais (9). Marx mostrou, no longo capítulo sobre a luta pela regulamentação da jornada de trabalho no primeiro volume de O Capital, a ampla margem de manobra que os capitalistas tinham no interior das fábricas para burlar a legislação que limitava a jornada de trabalho. No Brasil, tivemos um exemplo particular e esclarecedor de outras facetas do poder patronal, que é um poder real, na economia capitalista. Refiro-me ao Plano Cruzado, o plano econômico anti-inflacionário implantado pelo governo Sarney em 1986. O Plano Cruzado congelou os preços da totalidade das mercadorias. Em pouco tempo, os capitalistas reagiram e de diversas formas: desrespeitando a lei e remarcando abertamente os preços, vendendo mercadorias no mercado negro ou, simplesmente, retendo a sua produção. O governo revelou-se incapaz de manter o tabelamento de preços numa economia capitalista e isso devido, justamente, ao controle molecular, exercido pelos capitalistas, sobre o tecido econômico. Porém, até essa capacidade de resistência do capitalista contra as decisões de um determinado governo depende do estatuto da propriedade privada estabelecido e assegurado pelo Estado. Cabe ainda lembrar que o poder patronal é testado pelos operários em situações de crise. Em caso de revolta operária que afronte o direito de propriedade, é o recurso do empregador à justiça e à repressão, isto é, ao Estado, que recoloca as relações de poder dentro da ordem capitalista.

Portanto, como conclusão geral, podemos afirmar que embora o exercício do poder não se dê apenas no Estado, os diversos centros de poder dependem efetivamente da ação legisladora e repressiva do Estado para poderem funcionar como tais. Também faz parte do exercício do poder proibir, interditar e reprimir. A simples ostentação do aparelho repressivo do Estado é já um elemento de contenção das ações contestatórias ou de simples desobediência à ordem. Quanto à utilização efetiva desse aparelho, ela se dá, basicamente, de duas maneiras: de forma aberta e massiva contra as lutas sociais que transgridam os limites da propriedade privada e da ordem burguesa e de forma molecular e oculta organizando e disciplinando o funcionamento quotidiano dos diversos centros de poder da sociedade capitalista.

Concentração institucional do poder no Estado: a ideologia

O mais importante é que Michel Foucault não percebe que o aparelho de Estado capitalista – suas normas jurídicas e suas instituições – produz e difunde ideologia e que essa ideologia é condição necessária para o funcionamento dos diversos centros de poder que Foucault estudou. Tais centros, além de dependerem da ação repressiva do Estado, dependem, também, da produção ideológica do aparelho estatal. Foucault atribui aos marxistas a concepção do poder como mera proibição e repressão e, no entanto, ele próprio pensa o Estado dessa forma: como um aparelho meramente repressor. É por isso que ele localiza a função “produtiva” ou “criativa” do poder alhures.

Michel Foucault, como já indicamos numa das citações que transcrevemos acima, refere-se de modo negligente à estrutura jurídico-política do Estado e considera o exame dessa estrutura algo de importância menor. Como já destacamos, estamos considerando, em nossa polêmica, apenas o poder no Estado capitalista. Pois bem, nesse tipo de Estado capitalista reúne um direito e uma organização burocrática de tipo novo, direito e burocracia que foram frutos da revolução política burguesa, que produzem efeitos ideológicos precisos e fundamentais para a reprodução da ordem econômica e social capitalista. Tanto Marx quanto Lênin chamaram a atenção para a importância desse fenômeno. Foucault, ao contrário, não percebeu a sua complexidade e atribuiu, como já indicamos, a modernização da burocracia de Estado, isto é, a substituição da força repressiva organizada com base nos laços feudo-vassálicos pela força repressiva profissional, substituição que se iniciou de modo limitado sob o Estado absolutista, a uma exigência meramente técnica das novas armas de guerra. Depois de Marx e de Lênin, um dos primeiros autores marxistas a tomar esse problema (a nova organização capitalista do Estado) diretamente como objeto de estudo foi o jurista soviético Pashukanis na década de 1920. Na década de 1960, Nicos Poulantzas, na sua obra Pouvoir politique et classes sociales (Poder político e classes sociais), retomou a análise de Pashukanis e chegou a uma caracterização inovadora da estrutura do Estado capitalista (10).

Na análise de Poulantzas, o direito capitalista iguala os agentes que ocupam posições socioeconômicas desiguais, assumindo, nessa medida, um caráter formalmente igualitário, e a burocracia, de modo consistente com a igualdade formal que é própria do direito capitalista, recruta seus agentes em todas as classes sociais, assumindo, nessa medida, um caráter aparentemente universalista. Nada disso ocorria nos Estados pré-capitalistas. No escravismo e no feudalismo, o direito tratava desigualmente os desiguais, originando as ordens e os estamentos, e as instituições do Estado traziam marcado nas suas normas, na sua composição e no seu funcionamento seu caráter de classe – basta lembrar a organização dos Estados Gerais do absolutismo francês, que excluía os servos e separava, uns dos outros, os representantes do clero, da nobreza e dos plebeus. Já o aparente universalismo da burocracia capitalista desdobra-se nas demais instituições desse Estado, inclusive nas suas instituições representativas. Como lembrou Lênin, na sua conferência sobre o Estado, proferida em 1919 para os alunos da Universidade de Sverdlov, a democracia burguesa, em contraste com as democracias pré-burguesas, pode ser obrigada, pela própria estrutura do Estado burguês e dependendo da luta operária e popular, a acolher os trabalhadores como sujeitos de direito político. E Lênin indicou uma das possíveis consequências desse fato: a ilusão dos trabalhadores no potencial transformador das instituições da democracia burguesa (11).

Foi esse tipo de análise que Poulantzas explorou, destacando que o direito formalmente igualitário e as instituições de Estado aparentemente universalistas produzem efeitos ideológicos muito importantes. A igualdade formal produz um efeito de isolamento, que oculta dos agentes sociais o seu pertencimento de classe e os induz a se pensarem como indivíduos atomizados e singulares; o universalismo aparente do Estado, por sua vez, produz um efeito ideológico que Poulantzas denomina efeito de representação da unidade, plasmado na figura ideológica do povo-nação. Portanto, ao contrário do que imagina Foucault, existe uma longa tradição marxista que considera sim o aspecto “produtivo” do poder, e não apenas o seu aspecto negativo ou repressivo. Na linha de Pashukanis e Poulantzas – para não falarmos da obra de Antonio Gramsci que também destacou, embora de outra maneira, a função ideológica do Estado – o poder burguês produz o “indivíduo-cidadão” moderno e o “Estado de todo o povo”, que são as células, ao mesmo tempo reais e ilusórias, de toda política burguesa. Pois bem, nossa hipótese é que os centros de poder existentes na sociedade capitalista dependem desses dois efeitos ideológicos básicos produzidos pelo Estado capitalista. Tratemos de ilustrar essa tese.

A empresa capitalista, que Foucault apresenta como um poder impermeável à intervenção do “poder jurídico”, depende, direta e duplamente, dos efeitos ideológicos produzidos pelo Estado burguês. De um lado, já vimos, quando falamos da repressão, que a lei institui e garante a propriedade privada; caso grevistas ocupem uma fábrica ou trabalhadores rurais ocupem uma propriedade agrícola, o capitalista pode, através de uma ação jurídica de reintegração de posse, valer-se da força policial “pública” para expulsar os que atentam contra a propriedade. De outro lado, e aqui entramos na dimensão ideológica do problema, é o direito capitalista que, criando a igualdade formal, cria, no trabalhador, a ilusão de que a relação de exploração do seu trabalho é uma relação contratual entre partes livres e iguais. Sob o efeito dessa ilusão ideológica, o trabalhador pode conceber a sua presença na empresa e o trabalho que lá realiza como resultado de uma opção sua, e a exploração da força de trabalho pode se reproduzir de modo mais ou menos pacífico. A necessidade material pode obrigar o trabalhador a alugar a sua força de trabalho ao capitalista, mas é a ideologia jurídica burguesa que o convence de que esta é uma prática legítima ou natural. A autoridade patronal é legitimada, então, por esse efeito ideológico específico. Parece algo muito corriqueiro: o mesmo cidadão que, segundo o discurso ideológico burguês, detém a soberania política está impedido de gerir o local de trabalho onde atua ou mesmo de participar na escolha da direção da empresa ou do seu organismo diretor. Pode o mais, mas não pode o menos, porque o Estado é “público”, mas a empresa é privada e nela deve reinar o seu proprietário. No início do primeiro volume de O Capital, mais exatamente na passagem da segunda seção (A transformação do dinheiro em capital) para a terceira seção (A produção da mais-valia absoluta), Marx, analisando as relações entre o operário e o capitalista como relações entre vendedor e comprador de mercadoria, comenta essa ilusão contratual produzida pelo direito burguês. Os proprietários de mercadorias, inclusive o trabalhador que vende a sua força de trabalho, aparecem, todos, como homens livres, iguais e trocando equivalentes. O trabalhador assalariado é, de fato, juridicamente livre, o que o distingue do escravo e do servo. A proclamação de liberdade é, como diria Louis Althusser nos seus comentários sobre a ideologia, uma alusão à realidade. Mas, essa mesma proclamação é, também e principalmente, uma ilusão, na medida em que oculta a relação de exploração e de dominação de classe – o trabalhador pode, no limite, escolher para qual capitalista irá trabalhar, mas não pode escolher se irá ou não trabalhar para a classe capitalista. A estrutura jurídico-política do Estado, negligenciada por Michel Foucault, age, através da ideologia, às espaldas dos agentes sociais – do capitalista e do operário –, assegurando que o poder do primeiro sobre o segundo possa se exercer de modo regular e mais ou menos pacífico.

Os efeitos ideológicos do Estado capitalista estão ativos, também, no funcionamento do sistema escolar e no exercício de poder que se verifica no interior da escola. Para desenvolver esse ponto, convém realizar uma apropriação-retificação, pelo marxismo, da sociologia que Pierre Bourdieu elaborou sobre o sistema escolar. São a ocultação da desigualdade socioeconômica pela igualdade jurídica formal e a ocultação do funcionamento de classe do Estado capitalista pelas suas instituições aparentemente universalistas que permitem que a corrida aos diplomas, na qual os filhos da burguesia e da alta classe média saem na frente e contam com as regras do jogo a seu favor, seja percebida como uma disputa justa e equilibrada, de modo a legitimar as desigualdades econômicas e sociais propiciadas pela escola (12). O diploma é fonte de poder dentro do sistema escolar e fora dele: nas grandes empresas públicas e privadas, nos ramos do aparelho de Estado, nos hospitais, nas prisões e em muitas outras instituições da sociedade capitalista. A ideologia jurídico-política produzida e difundida pelas instituições do Estado capitalista age de modo efetivo, ainda que oculto, para assegurar a legitimidade do sistema escolar e dos diplomas.

A minha hipótese é de que considerações semelhantes a essas que fizemos para a empresa e para a escola capitalista poderiam ser feitas para o caso dos sindicatos de orientação ideológica capitalista, para o caso dos partidos políticos burgueses e pequeno-burgueses e para outras instituições da sociedade e do processo político no capitalismo. As figuras ideológicas típicas da ideologia política burguesa, produzidas pela estrutura do Estado capitalista, são pressupostos e, ao mesmo tempo, se realizam e se difundem, nessas associações. Os partidos políticos burgueses e pequeno-burgueses podem apresentar-se como associações de cidadãos indistintos que compartilhariam determinadas ideias e valores, e não como organizações de classe, graças à estrutura jurídico-política típica do capitalismo (13); os sindicatos de orientação ideológica capitalista podem funcionar como meros negociadores da mercadoria força de trabalho graças à figura jurídica do contrato de trabalho criada e mantida pelo Estado capitalista (14).

Vamos concluir esta parte: se pensarmos, como sugerimos acima, a dupla dimensão, repressiva e ideológica, do Estado capitalista, poderemos compreender que os centros de poder que existem na sociedade capitalista, embora tenham sua eficácia e importância próprias, gravitam em torno de um centro institucional que é o Estado capitalista. Convém destacar que essa tese tem uma consequência teórico-política importante. Do conceito de poder, depende o conceito de ação política. Se o poder está concentrado no Estado, a luta política também deve ter por objetivo central o poder de Estado. Diferentemente do que dizia Foucault e do que dizem hoje alguns intelectuais do movimento altero-mundialista, a questão da conquista do poder de Estado permanece uma tarefa estratégica central dos movimentos que lutam pela transformação revolucionária da sociedade capitalista. Se é falsa a tese segundo a qual o poder encontra-se disperso, também é falsa a tese segundo a qual “tudo é política”. Propor, como faz Foucault, a dispersão da luta política, indistintamente, por todos os centros reais ou supostos de poder, ignorando a centralidade estratégica da conquista do poder de Estado, é desviar as classes populares da luta pela transformação da sociedade capitalista (15).

Concentração social do poder na classe dominante

Passemos à crítica da primeira e da quarta teses arroladas por Foucault.

A primeira tese do autor sustenta que o poder seria socialmente difuso. Ora, no nosso entender, e seguindo a tradição marxista que sustenta a existência de uma classe dominante, consideramos ser possível argumentar que o Estado e os centros de poder periféricos são funcionais para a reprodução do capitalismo e, portanto, para a dominação de uma parte da sociedade sobre outra; no caso, para a dominação da burguesia sobre os trabalhadores. Nessa linha de argumentação, o poder deve ser considerado, portanto, algo concentrado não só institucionalmente, como também socialmente. Os exemplos que discutimos da empresa e da escola já indicam isso. A propriedade privada capitalista é implantada e garantida pelo Estado, enquanto a divisão capitalista do trabalho é legitimada pelo sistema escolar, ele próprio organizado pelo Estado. A empresa e a escola realizam e reproduzem, de modo particular cada uma delas, centros periféricos do poder de classe da burguesia. Nesse sentido, o poder seria sim, para utilizarmos um resumo feliz que Foucault fez da concepção que ele critica, “(…) um système général de domination exercée par un élément ou un groupe sur un autre, et dont les effets, par dérivations successives, traverseraient le corps social tout entier” [um sistema social de dominação exercido por um elemento ou um grupo sobre outro, e cujos efeitos, por sucessivas derivações, atravessam todo o corpo social] (La volonté de savoir, op. cit., p. 121).

Contudo, na discussão da concentração social do poder interfere de modo direto e incontornável a diferença mais geral entre a problemática foucaultiana e a problemática marxista.

Como já indicamos, um suposto fundamental do conceito foucaultiano de poder é a ideia de que a relação de poder é uma relação interindividual. Embora esse suposto não tenha sido formulado em nenhuma das teses enumeradas pelo autor quando ele se pôs a refletir sobre o seu próprio conceito de poder, ele é um dos pilares dos quais depende toda a argumentação do autor. Tal suposto separa Foucault de Marx e da tradição marxista, que concebem o poder como relação de classes. Essa diferença tornaria tais problemáticas incomunicáveis, ou incomensuráveis como preferiria dizer Thomas Kuhn, e inviabilizaria um juízo sobre a superioridade de um ou de outro conceito de poder? Cremos que não.

Para se contrapor à ideia de que o poder expressaria a dominação de uma parte da sociedade sobre a outra, poder-se-ia argumentar, na linha foucaultiana, que o capitalista, a despeito de ser senhor na sua empresa, deve se submeter, fora dela, ao policial ou ao guarda de trânsito, que são trabalhadores assalariados como aqueles que ele, o capitalista, comanda no interior do pequeno reino privado que é a empresa moderna. Teríamos um fluxo de relações de poder no qual se verificariam sucessivas inversões de posições e enfrentamentos que fluiriam sem jamais fixar um grupo de indivíduos que ocuparia a posição dominante e outro que ocuparia a posição dominada. Para compreender isso, lembremos outro elemento da análise de Foucault. Além de individualizar a relação de poder, ele está interessado, como apontou na quarta tese que enumeramos no início deste texto, no modo como o poder se exerce, nos seus meios e métodos, descurando ou ignorando, acrescentamos nós, a análise do conteúdo das medidas e da relação desse conteúdo com interesses e valores particulares de setores sociais específicos. Enfim, e para fechar nossa comparação, temos, do lado de Foucault, o poder como relação entre indivíduos e cujo principal atributo seria o método ou meio que estabelece a mantém essa relação, de outro lado, no campo do marxismo, o poder como relação entre coletivos (de classe), relação cujo principal atributo seria o conteúdo das medidas implementadas pelo poder. Incomensurabilidade de problemáticas? Não, se pensarmos que, como toda análise científica, as análises da sociedade e as problemáticas que as sustentam não podem se esquivar da verificação empírica – a prova dos fatos.

As decisões tomadas pelo poder de Estado favorecem certos indivíduos em prejuízo de outros e isso de acordo com as posições ocupadas por uns e por outros na economia e na sociedade. Há uma estatística possível do efeito cumulativo reprodutor da desigualdade de classe. A política de Estado e a situação de classe condicionam os destinos pessoais no que respeita aos bens mais necessários à vida, ao bem-estar, à posição política e social que o indivíduo ocupa, ao acesso ao lazer e à cultura. Manter a paz ou declarar a guerra, preservar a propriedade privada ou socializar os meios de produção, aumentar o emprego ou diminuí-lo, distribuir a renda ou concentrá-la, democratizar o acesso ao lazer e à cultura ou mantê-los como privilégio, essas são questões fundamentais para a vida humana e não podem ser colocadas no mesmo nível que aquele referente ao controle do trânsito ou à autoridade dos adultos sobre as crianças. Foucault nivela tudo arbitrariamente.

“(…) as relações de poder suscitam necessariamente (…) abrem a possibilidade a uma resistência (…). De modo que é mais a luta perpétua e multiforme que procuro fazer aparecer do que a dominação morna e estável de um aparelho uniformizante. Em toda parte se está em luta – há, a cada instante, a revolta da criança que põe seu dedo no nariz à mesa, para aborrecer seus pais, o que é uma rebelião, se quiserem –, e, a cada instante, se vai da rebelião à dominação, da dominação à rebelião; e é toda essa agitação perpétua que gostaria de fazer aparecer.” (16).

Nosso argumento é de que o controle do trânsito e da higiene à mesa, exercido por guardas e adultos, não pode ser nivelado ao controle da economia, da política internacional e do acesso ao lazer e à cultura. Se nivelarmos tudo, é claro que as trajetórias individuais irão ziguezaguear, ao longo de um mesmo e único dia, da condição daquele que exerce o poder para a daquele que lhe resiste. O indivíduo, uma trabalhadora por exemplo, pode iniciar o dia exercendo “o poder” sobre seus filhos, passar a jornada de trabalho sofrendo a ação “do poder” do empregador, no final da jornada de trabalho parar num bar e dar ordens ao garçom, para, de volta para casa, receber ordens do cônjuge. Ocorre que a natureza e a importância social dessas quatro relações são diferentes e é essa diferença que o conceito genérico de “poder” de Foucault ignora e oculta. Há “poder” e “poder”, mas o formalismo de Michel Foucault, que só considera os métodos de exercício do poder na análise desse fenômeno, esconde todas essas distinções. É o poder de influir nos rumos da economia, de decidir sobre a guerra e a paz e sobre a cultura aquilo que mais afeta a posição dos indivíduos na sociedade e suas condições de vida. Esse é um fato empiricamente observável. Nessas grandes questões, que estão a cargo da política de Estado e, também, de alguns centros periféricos de poder, notamos dois fenômenos importantes. Em primeiro lugar, que quem detém posição de poder numa esfera (por exemplo, a economia) possui um trunfo importante para disputar o poder em outra (por exemplo, a governamental). Mas Foucault se nega a refletir sobre as relações entre a política e a economia, apresentando essa negativa como uma diferença importante entre a sua concepção de poder e a do materialismo histórico (17). O fenômeno da convergência entre os poderes ocorre porque as relações interindividuais são, na verdade, relações socialmente determinadas: o indivíduo que for abastado pode utilizar sua riqueza para subornar um guarda de trânsito que ameace prendê-lo ou multá-lo, inibindo assim o exercício do poder desse último; se a chefia numa seção de empresa estiver ocupada por alguém do sexo masculino, a autoridade conferida pelo machismo poderá se somar à autoridade do cargo para intimidar uma funcionária subalterna, que se encontrará duplamente em desvantagem, como funcionária subalterna e como mulher. É a recusa em refletir sobre a natureza das distintas relações de poder e sobre as relações que tais “poderes” mantêm entre si que permite a Foucault pensar o poder como algo tão fluido e indistinto. Em segundo lugar, as medidas do Estado são cumulativas, tanto positiva quanto negativamente, para os grupos que ocupam posições econômicas e sociais definidas como posições de classes. É por isso que o poder não é uma rede com fluxos moles, mas algo que estabelece divisões rígidas que separam, de modo regular, os indivíduos pertencentes aos grupos favorecidos daqueles pertencentes aos grupos prejudicados. Esse também é um fato que as pesquisas sociológicas demonstram estatisticamente (18).

Considerações finais

O marxismo é um campo intelectual muito amplo e heterogêneo unificado apenas, no nosso entender, pela tese segundo a qual a história é um processo que, na sociedade capitalista, cria as condições para a transição ao socialismo. No mais, as tradições de pensamento no interior da herança marxista são muito variadas. O marxismo que Foucault conhecia e com o qual debateu foi apenas o marxismo soviético do período de Stálin. Foi o marxismo que ele estudou quando de sua passagem pelo Partido Comunista francês. Isso é muito pouco para polemizar, como pretendia Foucault, com a concepção marxista de poder, pois tal empreitada exigiria a consideração de um universo intelectual mais amplo. Duas das críticas que Foucault dirigia erroneamente ao marxismo em geral, nós consideramos que tinham alguma procedência, mas desde que dirigidas apenas ao marxismo soviético do período de Stálin. É verdade que esse marxismo considerou, de modo quase exclusivo, a repressão como fonte do poder e o poder como sediado apenas e tão-somente no Estado. Mas nós vimos que nem todos marxistas concebiam o poder desse modo.

No que diz respeito à questão da repressão, os autores marxistas que utilizamos, e que consideravam a ideologia como fator fundamental do poder, já eram muito conhecidos na França na década de 1970. É ainda mais estranho que Foucault não considerasse sequer a obra de Gramsci, cujo pensamento político está centralmente preocupado com o estudo da dimensão cultural, e não apenas repressiva, do poder; e Gramsci também era muito estudado, discutido e publicado na França de então. Cabe, aliás, um esclarecimento que permite ver uma insuspeitada proximidade entre Gramsci e essas teses de Foucault – e, pelas mesmas razões, entre o conceito de Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE), cunhado por Althusser, e essas mesmas teses de Foucault. À sua maneira, Gramsci (e o Althusser dos AIE) também reduz indevidamente a importância do aparelho de Estado (“em sentido restrito”) e, nesse plano institucional, se aproximaria de Foucault – embora dele se distancie no que respeita à consideração da função social (de classe) do poder. Esclareçamos que a tese que defendemos da precedência da ideologia jurídico-política burguesa, produzida e difundida pelo aparelho burocrático do Estado capitalista, sobre as associações políticas não estatais, como a escola, os partidos e os sindicatos, colide com a distinção gramsciana entre sociedade política e sociedade civil, distinção que se baseia, como é sabido, na ideia da prevalência da força no primeiro termo (sociedade política ou Estado em sentido restrito) e da prevalência da ideologia no segundo (sociedade civil ou aparelhos privados de hegemonia). O que sustentamos é que os pressupostos ideológicos básicos da hegemonia burguesa vêm não da esfera da “sociedade civil”, mas, exatamente, daquilo que Gramsci denomina “sociedade política” ou “Estado em sentido restrito”.

Sobre a ideia de que existem centros periféricos de poder organizados fora do Estado, havia uma grande discussão sobre a matéria entre os marxistas franceses do período, principalmente entre os maoístas, influenciados pela Revolução Cultural, e, em menor medida, entre os trotskistas da Liga Comunista Revolucionária (LCR). Discutia-se, então, que, a despeito dos limites estruturais estabelecidos pelo Estado capitalista e pelos próprios centros periféricos de poder, era correto propor, no plano tático, palavras de ordem de transição que apontassem para a democratização, no interior do próprio capitalismo, do poder vigente naqueles centros. Não fosse por outro motivo, porque essa luta pela democratização na base instigava o sentimento democrático nos trabalhadores e poderia instruí-los sobre os limites da democracia capitalista. No plano estratégico, discutia-se a elaboração de uma concepção que destacasse a necessidade de, após a conquista do poder de Estado, iniciar um processo de transformação do poder na fábrica, substituindo a gestão dos especialistas pela gestão dos trabalhadores, na escola e em todo conjunto do tecido social. Discutia-se, ainda, a necessidade de desestatização do poder político na construção do socialismo – a transferência de competências estatais para organizações populares. Essa discussão dava-se dentro da problemática marxista, pensando a questão da transferência do poder da burguesia para os trabalhadores, e não da perspectiva antiautoritária genérica e individualista que é aquela de Foucault. Foucault conhecia alguns dos intelectuais marxistas envolvidos nesse debate, principalmente os maoístas aos quais concedeu entrevistas polêmicas, como aquela publicada no Microfísica do poder. Porém, quando ia debater com o marxismo, Foucault sempre retornava – ou se refugiava, somos tentados a dizer… – para a figura simples e simplificada do marxismo soviético gerado no período de Stálin. Foi esse marxismo simplificado que ele criticou.

As teses de Foucault sobre o poder retomam, como alguns autores já indicaram, o conceito de poder elaborado, antes dele, por Talcott Parsons na década de 1950. Parsons, diferentemente de Foucault, tem a ambição de construir uma teoria geral e sistemática da sociedade e insere o seu conceito de poder dentro dessa teoria. No seu funcionalismo normativo, os valores detêm o “comando cibernético” (PARSONS) do sistema social, isto é, são o centro integrador do sistema (19). O poder e a política são os meios para a busca coletiva de objetivos que seriam comuns a toda a sociedade, propiciados pelos valores comuns integradores. O seu terreno, portanto, é muito diferente daquele no qual Foucault trabalha, concebendo uma rede de poderes marcada pela luta, pelo enfrentamento e pela fluidez. Contudo, as aproximações entre Parsons e Foucault são muitas e causa estranheza o fato de Foucault e os foucaultianos de hoje não se referirem, salvo erro meu, ao predecessor estadunidense. Parsons também apresentou o poder como algo disperso tanto no plano institucional quanto no plano social, também descurou a importância da força no exercício do poder, apresentando, na avaliação dos seus críticos, uma visão edulcorada desse fenômeno e, por último, tal qual Foucault, ocultou as relações do poder político com o poder econômico (20). O poder e a política, para Parsons – sendo mais preciso, na última fase da sua produção teórica –, estão indistintamente presentes na empresa, na escola, no hospital, ou no governo, sem hierarquia e sem centralidade do Estado ou de um grupo dominante (21). Parsons admite apenas que o poder pode ser desigualmente distribuído, mas rejeita a ideia de um grupo social dominante e defende uma concepção pluralista de poder. Mas, repetimos, a dispersão, a distribuição e a omissão da importância do uso da força são possíveis porque há um elemento central integrador no sistema parsoniano – os valores que seriam partilhados por toda a sociedade. No caso de Foucault, a questão de saber como é que o fluxo movediço de relações de poder e de enfrentamentos convive com uma relativa estabilidade da organização social, essa questão o filósofo francês recusava-se a enfrentar. 

* Esse texto desenvolve as ideias apresentadas na palestra proferida, em outubro de 2006, no Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs). A apresentação teve lugar na mesa-redonda intitulada O marxismo e as teorias sociais contemporâneas. Foi publicado no livro Estado, política e classes sociais (Editora Unesp. 2007). 

** Armando Boito Jr. é professor titular de Ciência Política da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Marxistas (Cemarx) e editor da revista Crítica Marxista. Publicou diversas obras, entre elas O golpe de 1954 – a burguesia contra o populismo (Brasiliense, 1982), O sindicalismo de Estado no Brasil – uma análise crítica da estrutura sindical (Hicitec/Unicamp, 1991) e Estado, política e classes sociais (Editora da Unesp, 2007).    

Notas

(1) FOUCAULT, Michel. Poder e saber, entrevista com S. Hasumi, gravada em Paris em 13 de outubro de 1977. Publicada em MOTTA, Manuel Barros da (org.). Michel Foucault, Ditos e escritos IV. Estratégias, poder-saber. São Paulo e Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2003, p. 224-225.

(2) Ver, FOUCAULT, Michel. Les mailles du pouvoir (As malhas do poder), palestra proferida na UFBA em 1976. In: Magazine Litteraire, n. 324, Paris, setembro de 1994. p. 64-65.

(3) FOUCAULT, Michel. Les mailles du pouvoir, palestra proferida na UFBA em 1976. In: Magazine Litteraire, n. 324, setembro de 1994, p. 64-65.

(4) Numa entrevista concedida a Jacques Rancière, publicada em Les révoltes logiques (As revoltas lógicas), n. 4, inverno de 1977, Foucault afirma: “(…) não se deve, portanto, pensar um fato primeiro e maciço de dominação (uma estrutura binária com, de um lado, os “dominantes” e, de outro, os “dominados”), mas antes uma produção multiforme de relações de dominação (…)”. Publicado em FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos IV. Estratégias, poder-saber. São Paulo e Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2003, p. 241-252. Citação extraída da p. 249.

(5) Op. cit., p. 65.

(6) FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité – I – La volonté de savoir (História da sexualidade – I – A vontade de saber). Paris: Gallimard, Collection Tel. 1976, p. 121- 122.

(7) Foucault herda de Nietzsche sua concepção de história. Segundo Scarlett Marton, esse filósofo, inspirado nos moralistas franceses, como Montaigne, La Rochefoucauld, Vauvenargues e Chamfort, pensava a história como uma “(…) mistura desordenada de ações, eventos, situações morais, costumes, arranjos sociais, traços de caráter, [que] por certo não consideram uma ciência. Pouco lhes importa que tenha inteligibilidade ou não, o que conta é o seu uso para compreender o ser humano. (…) tesouro inestimável de exemplos, a história é a mestra da vida. Se os moralistas franceses a ela recorrem não é para prever o futuro mas para sondar o ser humano.” (MARTON, Scarlett. Nietzsche. Nietzsche. São Paulo: Moderna, 1993, p. 61.). Em seu texto “Nietzsche, a genealogia e a história”, que constitui o primeiro ensaio da coletânea Microfísica do poder (Rio de Janeiro: Graal, 1979), Michel Foucault reafirma esse caráter contingente e inesperado do acontecimento histórico e da própria história: a história como acúmulo de fatos variados e a sociedade como rede de atos. Isso é, evidentemente, muito diferente da tradição hegeliana, à qual se filia Marx, tradição que procura detectar a lógica da articulação e da reprodução das “civilizações” e a dinâmica do processo de mudança histórica.

(8) LEBRUN, Gerard. O poder. São Paulo: Brasiliense, Coleção Primeiros Passos, 1981.

(9) O autor marxista que analisa muito bem o trunfo que a autoridade patronal no interior da empresa representa para a classe capitalista na disputa pelo poder de Estado é Ralph Miliband no seu livro O Estado na sociedade capitalista, 2ª edição. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. Capítulo 6, “Competição imperfeita”, p. 179-218.

(10) O livro maior de Pashukanis foi publicado na URSS em 1924. Há uma tradução francesa: PASHUKANIS, Eugen. La théorie générale du droit et le marxisme (A teoria geral do direito e o marxismo). Paris: EDI, 1970. Há também uma tradução portuguesa. O livro de Poulatnzas foi publicado em 1968 pela antiga Éditions Maspero e possui traduções brasileira e portuguesa. Dez anos depois, ele publicou L´État, le pouvoir et le socialisme (O Estado, o poder e o socialismo). Paris: Puf, Collection Politique, 1978. Nessa segunda obra, polemiza com Michel Foucault. Porém, tendo abandonado as teses do Pouvoir politique et classes sociales (Poder político e classes sociais), as considerações que ele tecerá sobre Foucault são diferentes daquelas que apresentaremos aqui.

(11) LÊNIN, V. I. Obras escolhidas em três tomos. São Paulo: Alfa-Ômega, 1980, p. 176-189.

(12) BAUDELOT, C.; ESTABLET, R. L´école capitaliste en France (A escola capitalista na França). Paris: Maspéro, Collection Cahiers libres, 1980. Uma exposição abrangente e rigorosa do conjunto da produção de Pierre Bourdieu sobre a educação é feita por NOGUEIRA, Maria Alice; NOGUEIRA, Cláudio M. Martins em Bourdieu & a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. Sobre a marginalização e os estigmas que o sistema escolar reserva aos indivíduos da classe operária, ver a monografia já clássica, escrita pelos discípulos de Bourdieu: BEAUD, Stéphane; PIALOUX, Michel. Retour sur la condition ouvrière – enquête aux usines Peugeot de Sochaux-Montbéliard (Retorno à condição operária – enquete sobre as fábricas Peugeot de Sochaux-Montbéliard). Paris: Fayard, 1999.

(13) Ver meu artigo “Cena política e interesses de classe na sociedade capitalista, o comentário em comemoração ao sesquicentenário da publicação de O Dezoito de Brumário de Luis Bonaparte”. In: revista Crítica Marxista, n. 15, São Paulo: Boitempo, 2002.

(14) Ver meu artigo “Pré-capitalismo, capitalismo e resistência dos trabalhadores – nota para uma teoria da ação sindical”. In: revista Crítica Marxista, n. 12, São Paulo: Boitempo, 2001.

(15) Sobre os “novos foucaultianos” do movimento altero-mundialista, ver BORON, Atílio. “A selva e a polis. Interrogações em torno da teoria política do Zapatismo”. In: BORON, Atílio. Filosofia política marxista. São Paulo: Cortez, 2003, p. 203-230.

(16) FOUCAULT, Michel. Poder e saber, entrevista com S. Hasumi, op. cit., p. 232.

(17) Ver FOUCAULT, Michel. Diálogo sobre o poder, entrevista com estudantes realizada em Los Angeles em 1978. Publicada em FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos, op. cit., p. 253-266.

(18) É interessante relembrar um livro pioneiro sobre essa matéria: BERTAUX, Daniel. Structures de classes et inégalités sociales (Estruturas de classes e desigualdades sociais). Paris: Puf, Collection Politique, 1977.

(19) QUINTANEIRO, Tania; OLIVEIRA, Márcia Gardênia Monteiro de. Labirintos simétricos – uma introdução à teoria sociológica de Talcott Parsons. Belo Horizonte: Editora UFMG, Coleção Humanitas Pocket, 2000.

(20) PARSONS, Talcott. “On the concept of political power” (Do conceito de poder político). In: PARSONS, Talcott. Politics and social structure (Políticas e estrutura social). Nova Iorque e Londres: The Free Press e Collier-Macmillan Limited, 1969, p. 352-404. Para uma crítica elucidativa aos conceitos de poder e de política em Parsons ver GIDDENS, Antony. “Poder nos escritos de Talcott Parsons”. GIDDENS, Antony. Política, sociologia e teoria social. São Paulo: Editora Unesp, p. 241-261.

(21) PARSONS. Talcott. “O aspecto político da estrutura e do processo social”. In: EASTON, David (org.). Modalidades de análise política. Rio de Janeiro: Zahar, 1970, p. 95-147.