Recuperação da Islândia é retrato da Europa dividida
REYKJAVIC – Numa ilha com 12 vulcões e instalada sobre uma falha geológica, o maior desastre sofrido pelo país veio dos escritórios de banqueiros sofisticados. Há cinco anos, os bancos da Islândia acumularam uma dívida 12 vezes o tamanho do Produto Interno Bruto (PIB) do país. Quando eles quebraram, o país derreteu.
Para superar seus problemas, o governo adotou uma política contrária a todas as receitas conhecidas: o governo não salvou os bancos, manteve os benefícios sociais da população, implementou um controle de capitais e deu um calote bilionário em investidores internacionais. Mas, quando o debate foi definir o seu futuro, a ideia que parecia óbvia, de se unir à União Europeia (UE), foi rejeitada pela maioria da população.
Cinco anos depois da maior crise do continente desde a Segunda Guerra Mundial, o euro sobreviveu graças a resgates bilionários. Se o pior foi evitado, uma das heranças foi um continente mais dividido e mais desigual que nunca. Se o sul quase entrou em colapso, economias como as da Alemanha, Luxemburgo, Áustria e os países escandinavos conseguiram se manter numa situação relativamente positiva.
A disparidade foi escancarada e acabou reabrindo debates que durante anos haviam sido aparentemente enterrados. Várias questões voltaram a surgir: quais são as fronteiras da UE, quem deve fazer parte dela, para que serve o bloco e, acima de tudo, qual a responsabilidade dos países ricos dentro do bloco.
Entre as nações que fazem parte da UE, partidos que defendem a saída do bloco ganharam força. Já as forças políticas tradicionais que sempre apoiaram o projeto europeu hoje falam abertamente na volta das fronteiras internas.
A ideia de que todos no continente inevitavelmente fariam parte um dia do bloco foi também derrubada. Na Islândia, o processo de adesão foi engavetado. Na Suíça, os grupos que defendiam um novo referendo foram colocados na geladeira. Na Noruega, a adesão já nem mais é debatida. Entre os governos que pedem a adesão ao bloco, as negociações estão mortas.
Mas o que mais chama a atenção é que, mesmo dentro do bloco de países que usam a moeda comum, governos defendem a criação de uma Europa a “duas velocidades”. De um lado, os países saneados, que crescem e querem aprofundar a integração. De outro, aqueles que ou não têm condições de aderir às regras ou simplesmente acreditam que não seja a melhor opção para suas economias.
A reação, segundo diplomatas, é resultado dos erros cometidos pela UE no passado. Documentos obtidos com exclusividade pelo Estado revelam que a Europa sabia que a Grécia não tinha condições de aderir ao euro, mas, politicamente, não queria deixar o país de fora. Agora, com a crise, esses arranjos políticos foram denunciados.
Fronteiras claras. Politicamente, o euro abafou a disparidade econômica do continente nos últimos anos. Mas, com a crise, as fronteiras da Europa que haviam sido suprimidas pelos políticos voltaram a ficar claras na economia real. E o mercado foi o primeiro a denunciá-las.
De um lado, títulos de governos como o da Grécia foram classificados por agências de rating como “lixo”. França, Holanda e Reino Unido perderam o status de AAA. A classificação máxima acabou sendo um direito exclusivo de apenas sete países na Europa: Alemanha, Finlândia, Luxemburgo, Suécia, Noruega, Dinamarca e Suíça. Desses, apenas três estão na zona do euro.
Os últimos dados de crescimento também apontam para uma Europa a dois ritmos. A Alemanha, que representa hoje 30% da produção do continente, deve crescer 1,8% em 2014. O Reino Unido também deve ter uma expansão de 2,7% em 2014 e 2,5% em 2015. Na Islândia, a projeção é de crescimento de quase 3%, ante 2,8% na Suécia.
Já a Espanha, Grécia e Itália teriam uma expansão de apenas 0,6%. Mesmo a França crescerá menos de 1%.
A crise também aprofundou a disparidade social entre os países europeus. Segundo um estudo realizado por mais de cem especialistas e reunidos pelo think-tank alemão Bertelsmann Stiftung, as diferenças sociais dentro da Europa aumentaram durante a crise e hoje são uma ameaça ao bloco. “A brecha social ameaça a viabilidade da UE”, alertou Aart De Geus, o diretor do Bertelsmann Stiftung.
De um lado, a Europa conta com Suécia, Noruega, Suíça, Finlândia, Dinamarca e Alemanha. Nesses países, as contas estão relativamente em dia, o desemprego é baixo e o sistema de bem-estar social foi mantido. “Considerada em um momento como ‘o homem doente’ da Europa, a Alemanha é hoje a líder entre os países que usam o euro”, apontou.
Na Islândia, mesmo as famílias que sofreram com a crise foram de certa forma resgatadas. O governo fechou um acordo para o perdão das dívidas e os benefícios sociais não foram cortados. A estudante Solveig Gisladettir conta que, quando o país quebrou em 2008, sua família teve de sair da casa onde estavam.
“Foi um momento difícil. Mas hoje já voltamos a uma situação normal”, conta a islandesa, com seu computador de último modelo se preparando para as provas na faculdade de Ciências Sociais.
Do outro lado estão Grécia, Itália, Portugal e Espanha, onde o desemprego entre os jovens chega a passar a marca de 50% em alguns casos. “Diante desses dados, precisamos falar em uma geração perdida nesses países”, disse De Geus.
Os dados colhidos pela pesquisa revelam uma dura realidade. Na Espanha e na Grécia, mais de um quinto das crianças vive na pobreza. Desde 2009, as taxas de pobreza no bloco aumentaram de 9,4% da população para 10%. Na Europa Central, a promessa de que a adesão ao bloco acabaria com a pobreza não se transformou em realidade. Na Romênia, 30% da população vive ainda com menos de 4 por dia.
Governo busca uma moeda
Apesar de ser livremente aceito no país, o euro foi descartado pela Islândia, que já tentou a adesão à libra, ao dólar e à coroa finlandesa.
Cinco anos depois de ir à falência, a Islândia é uma ilha em busca de uma moeda. Para economistas e políticos consultados pelo Estado, a taxa de crescimento e o baixo desemprego apenas estão sendo garantidos graças ao controle de capital estabelecido dias depois do colapso do país, em outubro de 2008.
A medida permitiu “sequestrar” cerca de US$ 7,2 bilhões de investidores estrangeiros que poderiam deixar o país da noite para o dia. O volume de dinheiro bloqueado na ilha é mais de 50% do PIB nacional. Mas todos sabem que o controle de capitais não pode durar para sempre e o temor é de que, no dia seguinte ao fim do controle, a Islândia sofra uma fuga desse capital e volte a quebrar.
Para especialistas, o maior problema que o país enfrenta hoje é ter uma moeda sem credibilidade ou reservas em euro. “Temos a menor moeda do mundo”, constatou o economista Thorolfur Matthiasson, que serviu como consultor ao governo islandês nos meses depois da crise. “Não há como manter o país dessa forma. Com o fim eventual do controle de capitais, se dois hedge funds de Nova York decidirem atacar a nossa moeda, em 24 horas estamos terminados”, alertou.
Os cálculos que ele entregou ao governo indicam que a Islândia precisaria ter reservas equivalentes a três vezes o PIB para poder se defender de um ataque dos mercados, o que seria um volume irrealista de dinheiro. Para ele, portanto, a única opção é a de aderir ao euro. “Precisamos estar em um bloco maior para poder nos defender.”
Na principal rua do comércio da capital islandesa, o euro é amplamente aceito, para facilitar as vendas aos turistas. “Estamos começando a crescer e, claro, uma relação estreita com a Europa é fundamental”, disse o dono de um café, Torfi Torfason.
As grandes empresas que ainda ficaram no país pagam seus funcionários em euro, justamente para atrair estrangeiros e uma mão de obra qualificada. Uma delas é a CCP, do setor de jogos eletrônicos e uma espécie de Google da Islândia. Um dos seus 500 funcionários é o brasileiro Pedro Ziviani, que conta que a decisão de pagar os funcionários na moeda da UE é para convencer as melhores cabeças a trabalharem na Islândia, sem o temor de ter seu dinheiro bloqueado na ilha.
Poucos meses depois de quebrar, o governo socialista que venceu as eleições na Islândia deu início ao processo de adesão à UE. Em apenas 18 meses, o processo estava praticamente concluído. Mas a queda desse governo em 2013 e a volta dos conservadores mudou tudo. O novo governo enterrou o projeto e atendeu aos setores da sociedade que eram contra a adesão. Para conseguir isso, o governo argumentou que a Islândia precisava manter a independência, sentimento que é um dos pilares do país isolado perto do círculo polar ártico.
Pesca. Mas o engavetamento do projeto tem motivações eleitorais e econômicas. O governo atendeu, acima de tudo, o pedido feito pelo setor da pesca que, desde o início, foi contra a adesão da Islândia na UE. “Somos contra aderir ao euro”, declarou ao Estado o economista-chefe da poderosa Federação Islandesa de Proprietários de Barcos de Pesca, Sveinn Hjörtur Hjartarsson.
“Se entrarmos na UE, teremos de concorrer com a Espanha e Portugal, que recebem milhões de euros em subsídios para pescar e colocam seus produtos no mercado com preços desleais”, acusou.
Outro problema é que, com o euro, as exportações do setor perderiam parte da competitividade por causa da moeda nacional desvalorizada. “Aumentamos nossa exportação em mais de 100% entre 2008 e 2013”, disse Hjartarsson.
O peso do setor acabou contando. Oficialmente, 9 mil pessoas trabalham diretamente nos barcos e empresas, cerca de 5% da mão de obra. Mas, indiretamente, o setor corresponde a 25% de toda a força de trabalhos do país e cerca de 20% do PIB, além de 48% das exportações.
Com a perspectiva de fazer parte da UE enterrada, a Islândia passou a estudar a adesão a outras moedas. Uma opção foi pedir ao governo britânico autorização para usar a libra. Mas Londres, depois de ver seus cidadãos terem suas contas bloqueadas no país, se recusou a cooperar. O governo islandês ainda avaliou o dólar americano, a coroa norueguesa e até mesmo o dólar canadense. Mas nenhum desses governos respondeu de forma positiva.
Políticos e banqueiros no banco dos réus
Em muitos países, governos foram derrubados pela crise. Em muitos outros, a direção dos bancos foi demitida. Mas apenas na Islândia políticos e banqueiros foram levados ao banco dos réus e condenados à prisão por terem levado o país ao colapso. Hoje, políticos entrevistados pelo Estado denunciam a “caça às bruxas” como um teatro promovido por alguns partidos para tentar dar uma resposta para uma população enfurecida. Ainda assim, as condenações mudaram o comportamento da classe dirigente.
O caso mais emblemático foi a condenação do ex-primeiro ministro, Geir Haarde, por negligência. Ele governou o país entre 2006 e 2009 e foi denunciado por não ter convocado seu gabinete no momento da crise e por questões procedimentais e escapou de ser enviado para cumprir dois anos de prisão. Sua condenação foi estabelecida por uma corte especial.
Mas, hoje, políticos insistem que o tribunal foi uma “manipulação” e o partido de Haarde já voltou ao poder. O Partido da Independência (Sjálfstæðisflokkurinn) ganhou as eleições em 2013, e controla uma vez mais o governo. “Processar Haarde foi uma piada”, declarou ao Estado o deputado de seu partido, Vilhjálmur Bjarnason. “A caça às bruxas não resolve nada”, insistiu. Para ele, os responsáveis pela crise não foram nem os banqueiros nem os políticos, mas sim as firmas de auditoria que olhavam todos os meses as contas dos bancos e nada fizeram para alertar a direção para a falta de sustentação do modelo. “Esses são os reais culpados.”
Banqueiros em fuga. Mas a realidade é que mais de uma dezena de banqueiros acabou fugindo da Islândia depois do colapso e passou a viver em Londres. No ano passado, a Corte Suprema da Islândia já condenou à prisão o ex-CEO do banco Byr, Ragnar Z. Guðjónsson, e o ex-presidents do banco, Jón Þorsteinn Jónsson. Quem também foi condenado foi o vice-ministro de Finanças, Baldur Guðlaugsson, por ter se aproveitado da crise para vender ações antes da quebra dos bancos.
Quatro ex-executivos do maior banco do país, o Kaupthing, também foram condenados a cinco anos de prisão. Uma das acusações foi de que o banco emprestou dinheiro para uma empresa do Catar anunciar que estava investindo na própria instituição financeira. O acordo foi anunciado em setembro de 2008, quando a crise já era profunda, e tinha como meta mostrar aos mercados que investidores ainda apostavam no banco.
O ex-CEO do banco Glitnir, Larus Welding, foi condenado a nove meses de prisão em 2012 por dar empréstimos a uma empresa sem garantias. A empresa era acionista do banco.
Em março de 2013, a Justiça indiciou 15 executivos dos bancos Kaupthing e Landsbank por manipular os mercados na tentativa de manter ações a preços elevados. Os próprios bancos compravam as ações momentos antes de o mercado fechar, Além disso, emprestavam dinheiro a empresas para que comprassem as ações de seus bancos.
Logo após o colapso do país, em outubro de 2008, o governo foi obrigado a fazer anúncios para tentar acalmar a população. Um deles foi a criação de um procurador especial para investigar os responsáveis pela crise.
O escolhido foi Ólafur Hauksson. Mas não por ser o melhor candidato e sim porque era o único que apareceu interessado no cargo. Hauksson decidiu enviar sua candidatura, mesmo sem ter nenhum tipo de experiência em bancos. Ele era o chefe da polícia da cidade de Akranes, de 6 mil habitantes, e sua mesa estava repleta de casos de motoristas bêbados e violações sexuais.
Hoje, ele comanda uma estrutura com mais de cem funcionários, policiais, advogados, auditores e ex-banqueiros. Desde 2009, já anunciou o indiciamento de 45 pessoas. Mas seu escritório confirmou ao Estado que cerca de 80 casos ainda estão sendo investigados.
‘As ambições eram cada vez maiores’, diz economista
Asgeir Jonsson era o retrato da nova Islândia. Vinha de um povoado do norte da ilha, havia trabalhado em um barco pesqueiro por um ano quando jovem, trazia uma barba ruiva típica dos antepassados do Ártico, mas também era um brilhante economista. Jonsson era o economista-chefe do maior banco do país, o Kaupthing, dando entrevistas e aparecendo na TV para mostrar que o banco ganhava o mundo e a situação da Islândia era impecável. Seu banco acabaria levando o país à falência.
Hoje, admite que chegou a ser agredido nas ruas e acusado de ter mentido. Mas nega que tenha sido um plano deliberado para quebrar o país. Em entrevista ao Estado, reconheceu os erros e admitiu que talvez não tenha feito os alertas adequados quando via que a atitude do banco era arriscada. Jonsson é hoje professor da Universidade de Reykjavik e é acusado de cinismo. Ainda assim, publicou um livro que conta parte dos bastidores da crise – ironicamente jamais traduzido para o islandês. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Quando o sr. viu que algo poderia dar errado?
No inicio de 2008 já se podia ver que estávamos indo para uma situação crítica.
Mas o sr. não avisou o resto do banco?
Sim. Mas acho que eu deveria ter avisado de forma mais insistente. Sabe, há também um fator humano importante. Por anos, íamos muito bem. Jovens que nunca tinham ganhado dinheiro estavam fazendo fortunas. O país se abria e todos nos elogiavam. As ambições eram cada vez maiores.
Como um país de 300 mil pessoas chegou a ser tão atrativo?
Houve uma corrida de capital. Quando ganhamos o rating AAA, o dinheiro inundou o país. No fundo, tudo começou nos anos 90, quando o preço do bacalhau despencou e fomos forçados a abrir nossa economia, reformar tudo e nos abrir para o mundo. O setor da pesca passou a ser lucrativo e o Estado vendeu empresas. A privatização incluiu os bancos e deu resultados. Os bancos alemães vieram e nos emprestaram muito dinheiro. O Estado, nesse período, conseguiu pagar todas suas dívidas. Mas, como todas as economias baseadas em recursos naturais, éramos vulneráveis e os bancos decidiram que, para ter maior estabilidade, seria importante se expandir até mesmo no exterior. Entramos num ciclo virtuoso.
O sr. se arrepende de algo?
Eu tinha 33 anos quando me tornei economista-chefe. Talvez deveria assumir a posição agora que tenho 43 anos.
A Islândia usou a Justiça para julgar os responsáveis pela crise. O sr. ou seu grupo se consideram criminosos?
Não. Queríamos fazer do país um centro financeiro internacional. Queríamos nos abrir ao mundo. O erro foi que muitos achavam que aquela trajetória de sucesso não teria limite. É verdade que as leis foram contornadas, mas não houve crime.
Por que vocês quebraram e outros países não?
Se a Irlanda não tivesse sido resgatada, teria ocorrido o mesmo que nós. Também teria sido o caso de Portugal, Grécia e Espanha. A realidade é que nossos bancos eram grandes demais para o tamanho do país.