Em Berlim, cineastas denunciam “crise democrática” no Brasil
Durante conversa com a imprensa internacional, Gomes leu uma carta em inglês, assinada por mais de 300 pessoas do setor audiovisual presentes em Berlim –entre eles, Laís Bondaznky, Luiz Bolognesi, Daniel Ribeiro, Julia Murat e Daniela Thomas–, apontando que o Brasil vive uma “grave crise democrática” e que o mandato de Temer é ilegítimo, além de defender as políticas públicas implementadas nos governos do PT, que ajudaram a tornar possível que 12 filmes nacionais participassem do Festival de Berlim este ano.
“Estamos vivendo uma grave crise democrática no Brasil. Em quase um ano sob esse governo ilegítimo, direitos da educação, saúde, trabalhistas foram duramente atingidos. Junto com todos os outros setores, o audiovisual brasileiro, especialmente o autoral, corre sério risco de acabar. A diretoria da Ancine (Agência nacional de Cinema) está agora em processo de substituição de dois de seus quatro diretores, que serão anunciados pelo ministério do atual governo”, diz o trecho inicial do documento (leia a íntegra da carta em português no fim deste texto).
Destacando a necessidade de que o setor inclua vozes que reflitam a diversidade étnica, cultural, religiosa e de gênero do país, os responsáveis pelo texto pedem também que “qualquer mudança ou aperfeiçoamento nas políticas públicas do audiovisual brasileiro sejam amplamente debatidas com o conjunto do setor e com toda a sociedade”.
O protesto de Marcelo Gomes coroa uma série de outras pequenas manifestações individuais, que vinham ocorrendo desde o início da Berlinale, em discursos ocorridos nas exibições de filmes como “Pendular”, de Julia Murat (na mostra Panorama), e “Rifle”, de Davi Pretto (na seção Forum). Na última terça-feira, em uma recepção para brasileiros na Embaixada do Brasil na Alemanha, cineastas leram trechos de uma versão ainda não acabada do documento lido hoje por Gomes.
O UOL apurou que, também em entrevistas individuais dos cineastas a publicações estrangeiras, o tema “política” tem surgido com frequência, com grande curiosidade da mídia internacional –esses diretores têm aproveitado a ocasião para denunciar o que acreditam ser um “golpe” contra a democracia no Brasil.
Indicado no início do mês para a diretoria da Ancine, Sérgio Sá Leitão disse ao UOLque defende o protesto em Berlim, mas pontuou que não concorda com alguns trechos do texto. “O que está na agenda do governo é manter o que há de bom e o que gerou resultados positivos na política cultural implementada nos últimos anos e aperfeiçoar.”
O filme
“Joaquim” foi apresentado no final da manhã desta quinta-feira já na mostra competitiva. O longa mostra o processo de tomada de consciência política por Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, que, de um sujeito obcecado por encontrar ouro em Minas Gerais (segundo o filme), acabaria se tornando um mártir na luta pela independência do Brasil. A sessão do filme terminou com poucos aplausos. A exibição de gala acontece esta noite.
A produção se propõe a desconstruir a imagem que se tem de um dos “heróis” mais marcante no imaginário nacional. O filme começa à la “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, com a cabeça de Tiradentes exposta em praça pública, de cabelos curtos (ao contrário das imagens consagradas do mártir), com ele narrando a própria história. Em tom sarcástico, ele diz que seu fim trágico se deveu ao fato de que, entre os rebeldes contra os desmandos portugueses, foi o único a “perder a cabeça”.
Ele se refere à exaltação de seus métodos revolucionários, que marcariam a Inconfidência Mineira. Mas, no filme, esse Tiradentes aparece apenas no final. Durante grande parte do longa, é apenas um caçador de minérios, que sai pelo interior de Minas Gerais reproduzindo diversos comportamentos predominantes da sociedade brasileira (de então e de hoje): é algo racista, machista e individualista. “Todos bandidos, corruptos e vadios”, diz o personagem, a certa altura, sobre o povo brasileiro.
Herói desconstruído
Segundo o diretor, “havia uma diferença entre os colonizadores portugueses e os espanhóis e ingleses: os de Portugal vinham quase sempre sem famílias”. “A ideia era explorar, mesmo. O povo brasileiro já foi formado com essa mentalidade colonizadora. Existia muita pobreza em Minas naquela época, a elite copiava o comportamento da colônia portuguesa”, resumiu.
“Estudei história nos anos 1970, época da Ditadura. Tiradentes era todo cabeludo. Na época, queriam torná-lo um novo Jesus Cristo. Mas quisemos desconstruir esse herói”, disse Gomes. “Ninguém que ser herói, são questões pessoais que fazem com que uma pessoa se torne um”. Um jornalista disse ter achado que, na caracterização, o ator Julio Machado ficou parecido fisicamente com o ex-presidente Lula. “Quisemos tornar [Tiradentes] um cidadão comum. Se você viu ali um outro cidadão comum, aí é outra história”, disse Gomes, aos risos.
Só aos poucos, Joaquim vai tomando consciência de como ele pode ajudar a trazer uma mudança de situação. Esse processo de “politização” se dá basicamente em três etapas. Primeiro, pela própria desilusão com a corrupção dos governantes. Em seguida, pelo acesso a ideais libertários, a partir do convívio com um poeta/intelectual. E, por fim, pela experiência pessoal de Joaquim com grupos excluídos (o Tiradentes do filme passa algum tempo vivendo em um Quilombo). Está aí a gênese do novo Tiradentes, da parte final do longa: mais revoltado, querendo sangue.
Em uma das cenas de maior destaque, um indígena e um escravo negro, em um raro momento de descanso, começam a cantar juntos, em uma espécie de hip-hop sertanejo do século 18. Uma espécie de ilustração do surgimento da cultura miscigenada do Brasil. “Talvez aquele seja nosso momento de conjunção, e acho que é o primeiro clique que [Tiradentes] tem”, disse Gomes, em relação ao início do despertar político do protagonista.
O filme em vários momentos parece dialogar com a plateia politicamente desiludida de hoje. Há um discurso subversivo à situação brasileira atual mais ou menos disfarçada na situação vivida por Tiradentes. Não por coincidência, também na fala aos jornalistas, Gomes reiterou que considera o governo Temer “ilegítimo”.
Veja a íntegra da carta lida pelo cineasta Marcelo Gomes:
Para a comunidade cinematográfica internacional
Estamos vivendo uma grave crise democrática no Brasil. Em quase um ano sob esse governo ilegítimo, direitos da educação, saúde, trabalhistas foram duramente atingidos. Junto com todos os outros setores, o audiovisual brasileiro, especialmente o autoral, corre sério risco de acabar. A diretoria da Ancine (Agência Nacional de Cinema) está agora em processo de substituição de dois de seus quatro diretores, que serão anunciados pelo ministério do atual governo.
O Brasil é formado por uma diversidade étnica-racial-cultural-religiosa e de gênero gigantesca. E a consciência dessa pluralidade tem se mostrado peça-chave na hora de planejar os programas educacionais, econômicos, culturais e de saúde do nosso país.
Na política do audiovisual brasileiro, não foi diferente. Nos últimos anos, a Ancine tem direcionado suas diretrizes observando com atenção esses muitos Brasis. Ampliou o alcance dos mecanismos de fomento, que hoje atingem segmentos e formatos dos mais diversos, do cinema autoral ao videogame; das séries de TV aos filmes com perfil comercial: do desenvolvimento de roteiro à distribuição.
O resultado é visível. O ano de 2017 começou com a expressiva presença de filmes brasileiros nos três dos principais festivais internacionais, totalizando 27 participações em Sundance, Rotterdam e Berlim. Não chegamos a esse patamar histórico sem planejamento, continuidade e diálogo entre Ancine e a classe realizadora, principalmente por meio de duas ações de fomento: a criação de uma lei que obriga os canais de TV a cabo a exibirem 3h30 de programação brasileira e a criação do Fundo Setorial do Audiovisual, que investe em várias linhas, em todos os tipos de audiovisual em qualquer fase de produção.
Entre as políticas do Fundo Setorial, gostaríamos de destacar, em especial, as políticas regionais, o edital de TV pública, o edital voltado para filmes de arte com perfil internacional, os editais e acordos de coprodução internacional.
As ações implementadas incidiram de forma positiva no setor audiovisual, que cresce 8,8% ao ano. Uma taxa superior à média do conjunto dos outros setores da economia brasileira, representando um valor adicionado de 0,54% na economia nacional. Esse percentual é maior do que o gerado pela indústria farmacêutica, de produtos eletrônicos e de informática, por exemplo.
O percurso trilhado nos últimos anos posiciona a Ancine e o Setor Audiovisual em possibilidade de aprimoramento de suas ações, com disposição para o diálogo e desenvolvimento de instrumentos capazes de proporcionar, em um curto espaço de tempo, um programa de ações afirmativas com recorte de raça e gênero em consonância com a pauta global que impõe a necessidade de aprimoramento e ajuste do setor audiovisual para garantia de maior representatividade e participação da população negra e das mulheres. E acreditamos, ainda, que deve ser incrementada uma política de formação de público, artística e técnica para que novas pessoas possam se qualificar e atuar em toda a cadeia da produção audiovisual. Além de uma política de acervo, para garantir condições para manutenção e acesso ao público da grande produção audiovisual brasileira, realizada ao longo de quase um século de atividade.
Tudo que se alcançou até aqui é fruto de um grande esforço do conjunto de agentes envolvidos entre Ancine, produtores, realizadores, distribuidores, exibidores, programadores, artistas, lideranças, poder público, entre outros. Acima de tudo, queremos garantir que toda e qualquer mudança ou aperfeiçoamento nas políticas públicas do audiovisual brasileiro sejam amplamente debatidas com o conjunto do setor e com toda a sociedade.
Assim, pedimos às instituições, produtores e realizadores de todo o mundo que apoiem a luta e a manutenção de todos os tipos de audiovisual no Brasil. Defendemos aqui a continuidade e o incremento dessa política pública.
Assinam esta carta os diretores e produtores dos filmes:
As Duas Irenes (Fabio Meira, Diana Almeida e Daniel Ribeiro)
Como Nossos Pais (Laís Bondaznky e Luiz Bolognesi)
Em Busca da Terra Sem Males (Anna Azevedo)
Está Vendo Coisas (Barbara Wagner e Benjamin de Burca)
Joaquim (Marcelo Gomes e João Vieira Jr.)
Mulher do Pai (Cristiane Oliveira, Graziella Ferst e Gustavo Galvão)
Não Devore Meu Coração! (Felipe Bragança e Marina Meliande)
Pendular (Julia Murat e Tatiana Leite)
Rifle (Davi Pretto e Paola Wink)
Vazante (Daniela Thomas e Sara Silveira)
Vênus – Filó a Fadinha Lésbica (Sávio Leite)
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