O “estado” do estado de direito no Brasil
O depoimento do ex-presidente Lula em Curitiba parece representar o auge da politização da operação Lava Jato marcada pela frase tão repetida pelos seus procuradores de Curitiba de que “ninguém está acima da lei”. É verdade que no estado de direito ninguém está acima da lei mas esta frase usualmente é complementada por uma outra que a Lava Jato desconhece inteiramente: “todos os indivíduos são iguais perante a lei”.
Nas últimas duas semanas, a Lava Jato no seu zelo em comprovar delitos por parte do ex-presidente Lula distorceu de todas as formas possíveis este postulado ao colher os depoimentos ou melhor delações de Leo Pinheiro e Renato Duque, ambos presos há mais de um ano em Curitiba sem condenação e sem prova formada. Ambos as delações, imediatamente vazadas para a grande imprensa no intuito de provar midiaticamente a culpa do ex-presidente, mostraram todos os perigos da delação premiada, tal como ela foi aprovada em 2013 e implementada pelos procuradores e pelo juiz Sérgio Moro. Neste artigo, procurarei discutir as duas principais falhas do direito penal brasileiro no que diz respeito ao direito de defesa e como elas são usadas pela operação Lava Jato não para julgar Lula e sim para condená-lo apesar da evidente falta de provas.
O principal problema da operação Lava Jato é a não separação entre o juiz que conduz a investigação e o julgamento, não separação esta agravada por não existir em nosso país a obrigatoriedade do sistema do júri. Em um artigo recente, publicado pela insuspeitíssima Foreign Affairs, um ativista americano da área dos direitos humanos traça a origem desta distorção. Trata-se de um sistema português do começo do século XIX e que Portugal já abandonou há muitas décadas. Os problemas deste sistema são evidentes: o juiz investigador familiariza-se com a investigação convence-se da culpa e atua no polo da condenação.
No caso dos Estados Unidos e de todos os países com a obrigatoriedade do sistema do júri este sistema não seria tão complicado. Afinal uma das grandes vantagens do sistema de júri é que a consistência das provas tem que ser defendida e aceita por um conjunto de homens e mulheres leigas que nada sabem sobre o processo e que têm que ser convencidos de que as provas foram obtidas de forma lícita. Nada disso faz parte do repertório da operação Lava Jato. Sabemos que existem fortes dúvidas se as primeiras informações sobre o esquema de propina na Petrobras não foram obtidas através de grampos ilegais instalados na cela ocupada por Paulo Roberto Costa e o doleiro Yousseff.
Daí em diante sabemos das outras ilegalidades, tais como prisões preventivas injustificadas e trocadas por delações na qual houve sugestão sobre o que queria ser ouvido. Vivêssemos em um país com o sistema de júri, a procuradoria estaria agora tentando justificar os seus procedimentos sabidamente ilegais. No entanto, todas as provas que serão utilizadas amanhã contra Lula por um juiz que é parte da investigação são declaradas a priori legais e não passarão por nenhum teste em relação a como foram obtidas, a não ser em caso de apelação. Assim, o direito penal brasileiro se despe de todos os elementos de garantias que fazem parte do estado de direito, na tentativa não de implantar a igualdade de todos frente à lei mas talvez de provar que é possível condenar qualquer pessoa desde que a promotoria e o juiz estejam de acordo.
Mas, é na maneira como a delação premiada é utilizada no Brasil que se encontram as maiores ameaças ao estado de direito no país. A delação premiada é parte de algo que podemos denominar “concepção contratual do direito”. Não é à toa que em inglês ela é denominada de plea bargain, com a ideia de que a barganha é o elemento principal do processo. O plea bargain implica uma troca entre um indivíduo e o estado através da qual cada um será capaz de aferir algum benefício. Vale a pena ressaltar que o objetivo do plea bargain entendido de forma contratual é a redução do risco, para o acusado, de enfrentar a pena máxima e, para o estado, de não conseguir condenar o acusado no Tribunal do Júri. Portanto, a indeterminação representada pela presença do júri no caso de não aceitação da delação ou da não opção pela delação é o elemento principal que força tanto a barganha por parte do acusado quanto a moderação da procuradoria.
No caso brasileiro, no qual a delação premiada existe sem o sistema do júri, a certeza da pessoa presa de que o juiz irá condená-la torna a delação premiada uma pressão completamente indevida do estado sobre o cidadão. Foi isto o que assistimos nas últimas duas semanas nos depoimentos de Leo Pinheiro e Renato Duque. Não há caminho possível para a liberdade ou para ser solto na Lava Jato que não passe pela colaboração com o Ministério Público e o juiz Sérgio Moro. Sendo assim, o Brasil realizou a grande façanha de retirar a delação premiada do campo do direito contratual e colocá-la no campo do abuso das prerrogativas por indivíduos que ocupam cargos no poder judiciário.
Esta enorme distorção foi vista nas delações mencionadas: sabendo que a única maneira de saírem da prisão preventiva era apresentar evidências contra o ex-presidente Lula, Leo Pinheiro elevou ao paroxismo a percepção de que a Lava Jato opera através da falta de provas. Segundo ele, ele destruiu as provas de que o ex-presidente Lula era o dono do triplex do Guarujá, mas não teria qualquer prova sobre o fato. A Lava Jato, ao insistir em provar a propriedade do triplex apesar da ausência de provas, vale-se da capacidade de chantagem embutida na delação premiada. E pasme-se: ela foi capaz de produzir um depoimento para legitimar a ausência de provas, depoimento este que também parece poder prescindir de provas. Certamente, algo desta natureza jamais passaria por qualquer júri em qualquer país, mas é uma via possível na qual delação e direitos penal estão completamente distorcidos.
Assim, o Brasil se vê às portas de um movimento estranho por parte das suas autoridades judiciais. Apoiando-se em movimento de rua que exige o fim da impunidade na política, a Lava Jato abre uma seara perigosa que é o da condenação sem provas ou da produção de provas por meio da coerção. Evidentemente que o estado de direito no Brasil é, na melhor das hipóteses, uma construção em curso. Mas, vale a pena observar que os países que têm um estado de direito mais consolidado não o alcançaram por meio do abuso da autoridade e sim através de movimentos contra estes abusos, como foi o caso nos Estados Unidos durante a convenção constitucional da Filadélfia que colocou o sistema de júri entre os direitos individuais ou da Austrália, cujo mito fundador é a reversão da injustiça provada por meio de um julgamento injusto. A democracia recém conquistada no Brasil só se fortalecerá se a população for capaz de entender que abusos de autoridade devem ser coibidos e que o combate à corrupção não pode prescindir da obediência aos preceitos da legalidade.
Publicado no Jornal GGN