Reservas internacionais e autonomia de política macroeconômica
Um dos temas econômicos do debate eleitoral entre os candidatos à presidência refere-se ao direcionamento de parte das reservas internacionais, seja para o pagamento da dívida pública, seja para o financiamento de investimentos no setor de infraestrutura. Essas propostas têm em comum a hipótese que a economia brasileira teria atualmente um estoque de reservas internacionais superior ao necessário.
Este artigo não pretende discutir a pertinência ou não desse direcionamento, mas chamar atenção para alguns aspectos negligenciados nesse debate que dizem respeito às justificativas para a necessidade de acúmulo de reservas internacionais e às métricas utilizadas para mensurar o seu nível adequado e, portanto, seu suposto excesso.
No sistema monetário e financeiro internacional contemporâneo, caracterizado pela alta mobilidade de capitais e por uma hierarquia de moedas na qual o dólar é a moeda-chave, as reservas internacionais são um “colchão de segurança” que reduz o risco de crises cambiais provocadas pela saída maciça de divisas em países que não emitem moedas aceitas internacionalmente e que possuem um elevado grau de abertura financeira. A necessidade de constituir esse colchão tornou-se evidente após as crises financeiras das economias emergentes nos anos 1990. Após essas crises, os governos de várias dessas economias, dentre os quais a brasileira, passaram a perseguir a estratégia que ficou conhecida como “demanda precaucional por reservas”. Todavia, essa estratégia tem um custo que equivale ao diferencial entre a taxa de juros externa que remunera as reservas (predominantemente aplicadas em títulos do Tesouro norte-americano) e a taxa de juros interna que incide sobre as chamadas operações de esterilização do impacto monetário da aquisição de divisas pelo banco central de cada país. Vale lembrar que no caso Brasil esse custo foi muito expressivo até recentemente devido ao patamar da nossa taxa de juros básica, em geral a primeira ou segunda mais elevada entre os países emergentes.
Exatamente em função desse custo, emerge a questão do tamanho suficiente desse colchão de liquidez em dólares. Existem diferentes formas de medi-lo. As diferentes métricas comparam esse estoque com fontes potenciais de demanda por divisas, como meses de importações, dívida externa de curto prazo e percentuais dos meios de pagamento ampliados e/ou dos investimentos estrangeiros de portfólio no país. No entanto, tais indicadores – inclusive o mais abrangente utilizado pelo FMI – subestimam o nível de reservas necessário para proteger um país contra crises financeiras. Esse nível deveria considerar todas as fontes potenciais de demanda pelas reservas, que incluem o resultado em conta corrente, a dívida externa de curto prazo, as amortizações de dívida externa de longo prazo nos próximos doze meses e o valor total desses investimentos aplicados em ações e títulos de renda fixa. No início de setembro, a soma dessas fontes superava em cerca de 50% o valor das reservas brasileiras (US$ 381 bilhões). Contudo, também existe uma imprecisão nessa métrica, pois esses investimentos (atualmente a principal fonte potencial de demanda de divisas) estão denominados em reais e uma liquidação das posições pelos investidores não residentes resultaria em queda dos preços das ações e desvalorização cambial e, consequentemente, na redução do seu valor em dólares.
Como não há uma métrica precisa e inquestionável, no caso de um país como o Brasil – emissor de uma moeda não aceita internacionalmente, com um elevado grau de abertura financeira, mercados financeiros líquidos, déficit em conta corrente e pauta de exportações concentrada em commodities – é melhor pecar por prudência na avaliação do nível adequado de reservas do que subestimá-lo.
Também é preciso chamar atenção para outros motivos, não capturados por essas métricas, que justificam o acúmulo de reservas internacionais por um país com essas características. Por um lado, a constituição de um colchão de liquidez internacional impacta igualmente o chamado rating soberano atribuído pelas agências de classificação de risco de crédito. O aumento desse rating também foi um dos objetivos da estratégia precaucional adotada pelo Brasil e outros países emergentes no período de boom de fluxos de capitais que precedeu a crise financeira global. Isso porque, além do efeito reputação positivo, ratings mais elevados possibilitam que títulos desses países sejam adquiridos por investidores institucionais com perfil menos especulativo, como fundos de pensão. Por outro lado, a detenção desse colchão é um dos elementos cruciais considerados pelos investidores globais na avaliação da situação de vulnerabilidade externa desses países; ao influenciar as expectativas desses agentes, ele também tem repercussão no risco-país avaliado pelo mercado. Finalmente, as reservas constituem um ativo em moeda estrangeira dos governos, que deve ser contraposto aos seus passivos em (ou denominados em) moeda estrangeira. Como o Tesouro aproveitou aquele período para pré-pagar grande parte da sua dívida externa e reduziu para praticamente zero o estoque de títulos indexados à taxa de câmbio (NTN-cambiais), desde 2006 o setor público brasileiro tem uma posição líquida positiva em dólares. Com isso, no momento do efeito-contágio da crise, a forte desvalorização cambial teve impacto positivo sobre as contas públicas, aumentando o raio de manobra para a adoção de políticas contracíclicas, ao contrário do observado nas crises cambiais precedentes. Se subtrairmos o valor atual do passivo em (ou denominados em) dólares – swaps cambiais (US$ 67 bilhões) e dívida externa pública (US$ 123 bilhões) – do valor das reservas, essa posição equivale hoje a cerca de US$ 190 bilhões, valor que não parece excessivo considerando as características da economia brasileira mencionadas acima. Ademais, esse impacto positivo também deve ser considerado na avaliação do custo do acúmulo de reservas.
Se levarmos em consideração todos os motivos pelos quais um país como o Brasil deve deter um estoque expressivo de reservas internacionais (mas cujo nível adequado é de difícil mensuração), pode-se afirmar que esse estoque amplia a autonomia da política macroeconômica num contexto de elevado grau de abertura financeira, reduzindo sua vulnerabilidade aos ciclos de boom-bust de fluxos de capitais comandados pela política monetária do emissor da divisa-chave, os Estados Unidos. Mesmo que o principal instrumento de política cambial sejam os swaps, um derivativo cambial liquidado em reais – em função das características do mercado de câmbio brasileiro – e as reservas sejam pouco utilizadas na prática, a redução do seu estoque afeta negativamente as expectativas dos investidores. Elas possibilitam, igualmente, o uso de leilões de linha (venda de divisas no mercado à vista com acordo de recompra) que foram utilizados novamente pelo Banco Central no início de setembro deste ano e funcionam como contrapartida dos swaps no balanço patrimonial do setor público brasileiro.
Não há dúvida que os benefícios em termos de ganho de autonomia superam os custos da estratégia precaucional. No entanto, há alternativas mais eficazes e menos onerosas para atingir esse objetivo. A principal delas é a redução da abertura financeira mediante a regulação dos fluxos de capitais e dos derivativos de câmbio para reduzir a volatilidade e evitar pressões tanto de depreciação como de apreciação cambial (que reduz a competitividade externa, contribuindo para tornar nossa pauta exportadora ainda mais dependente das commodities, bens com preços voláteis e de menor valor agregado). Nesse contexto, os impactos das mudanças das expectativas dos investidores sobre as taxas de câmbio e de juros seriam minimizados, abrindo espaço para a redução das reservas internacionais (e, consequentemente, do seu custo) e conferindo maior grau de liberdade no seu uso.
*Daniela Magalhães Prates, Maryse Farhi e Saulo Abouchedid são, respectivamente, professora associada do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisadora do CNPq, professora doutora do Instituto de Economia da Unicamp e doutor pelo Instituto de Economia da Unicamp e professor da Facamp.
Publicado em Le Monde Diplomatique