Para ouvir trechos das músicas citadas no texto, vá a www.sergioricardo.com.

O clima no auditório estava extremamente tenso. As vaias, organizadas pelos fãs-clube, haviam entrado em moda naquela temporada. Elas, muitas vezes, atraiam mais atenções que as composições ali apresentadas. Poucos se davam ao luxo de escapar dos apupos e apitos ensurdecedores. Era 1967 e estávamos na final do concorrido II Festival de Música Popular Brasileira da rede Record de televisão. A parada era duríssima. Entre as finalistas estavam as antológicas “Ponteio”, “Roda Viva”, “Alegria Alegria” e “Domingo no Parque”.  
O circo já estava montado quando Sérgio Ricardo, acompanhado por um coral de operários da Willys e pelo Quarteto Novo, entrou no palco. Antes que soltasse os primeiros versos da bela – e incompreendida – “Beto bom de bola” ouviram-se novamente as vaias. A música era uma homenagem ao grande Mané Garrincha, ídolo do futebol colocado no ostracismo. 

“Quando bate a nostalgia
bate noite escura
mãos no bolso e a cabeça
baixa, sem procura
Beto vai chutando pedra
cheio de amargura
num terreno tão baldio
o quanto a vida é dura
onde outrora foi seu campo
de uma aurora pura.
Chão batido, pé descalço
mas sem desventura.
Contusão, esquecimento
glória não perdura.
Mas, se por um lado o bem se acaba,
o mal também tem cura”.


Os sucessivos pedidos de silêncio não resultaram em nada. As vaias apenas aumentavam. Sem retorno do som, cantor, coral e o acompanhamento se desencontravam. Com as mãos novamente pede o respeito da platéia. Tudo em vão. Quase ao final, o artista explode. Santa ira. “Vocês ganharam! Vocês ganharam!”. Num gesto dramático quebra seu violão e o atira sobre o público. Um ato corajoso – e impensado – que marcaria para sempre sua carreira. A partir de então seria conhecido mais como “o homem que quebrou o violão” do que como grande compositor, músico, arranjador e diretor de cinema que era. Contra a vontade do júri, foi desclassificado sumariamente pela direção da emissora. Mais uma injustiça cometida contra a música popular brasileira.

***Sérgio Ricardo nasceu em 1932 na cidade de Marília – interior de São Paulo. Quando jovem passou por Santos, onde adquiriu alguma experiência com trabalho em rádio, e depois seguiu seu destino: o Rio de Janeiro. Começou a tocar piano nas boates cariocas. As noites em Copacabana ainda eram do jazz e do samba canção.

Naqueles dias aderiu à onda romântica, seguindo a trilha de Lúcio Alves, Dick Farney e Tito Madi. Ia compondo suas músicas e, depois de um momento de indecisão, começou a mostrá-las ao restrito público das boates nas quais se apresentava. A cantora Maysa gostou do que ouviu e gravou uma de suas composições: Buquê de Isabel. A melodia conseguiu um relativo sucesso, o que permitiu que o compositor saísse do anonimato.

No final da década de 1950 surgiu uma nova corrente na música brasileira: a bossa nova. Sérgio estava entre seus primeiros compositores e interpretes. Em 1960 lançou o LP “A bossa romântica de Sérgio Ricardo” (1960). Dois anos depois seria convidado a participar do famoso show no Carnegie Hall de Nova Iorque, ao lado de outros importantes músicos brasileiros, como Roberto Menescal, Carlos Lyra e João Gilberto. Apesar do improviso daquele evento, ele representou um dos marcos do lançamento da bossa nova para o mundo.

O Brasil vivia um momento de euforia no qual desenvolvimento econômico- social buscava andar de mãos dadas com a democracia. O povo nas ruas começava a pedir reformas de base, como a reforma agrária e da educação. Isso tudo impactou no mundo cultural, especialmente entre aqueles artistas que queriam se incorporar ao bloco das mudanças.

A partir daí, Sérgio Ricardo, junto com Carlos Lyra e Geraldo Vandré, começaram a construir outra vertente no interior do movimento bossanovista, mais ligada à temática social e popular. Declarou ele: “O que caracterizou a minha dissidência com a bossa nova foi justamente o Zelão. Era o caminho de uma pesquisa mais popular, com o abandono dos valores pequeno-burgueses de Ipanema (…) aquele negócio de muito sorriso, amor e flor”. Esta preocupação o acompanhará por toda vida, sem nunca abrir mão do lirismo e da qualidade lítero-musical.

“Todo o morro entendeu
quando o Zelão chorou.
Ninguém riu, ninguém brincou
e era carnaval.
No fogo de um barracão
só se cozinha ilusão
restos que a feira deixou
e ainda é pouco só.
mas, assim mesmo Zelão
dizia sempre a sorrir
que um pobre ajuda outro pobre
até melhorar … ”.

Incorporado à vertente nacional-popular resolveu produzir seu primeiro filme, o curta-metragem “O menino da calça branca”, que foi lançado em 1961. Tratava-se da história de um menino da favela que desejava de presente uma simples calça branca. Profundamente poético, o filme conseguiu o segundo lugar no Festival de São Francisco (EUA). Dizia-se a “boca pequena” que poderia ter ganhado em primeiro lugar se “O Pagador de Promessa” já não tivesse sido vitorioso como melhor longa-metragem. Não seria de bom tom dar ao Brasil duas primeiras colocações  num mesmo festival. Contudo, o resultado não foi nada mal para um estreante.

“Olhe bem pra mim.
Veja como é lindo
o meu presente.
Foi o Papai-Noel quem deu.
Eu já ganhei
minha calça branca
como as nuvens.
As mais brancas lá do céu.”

Nelson Pereira dos Santos havia gostado tanto do copião do filme que pediu para ajudá-lo na montagem e começaram a trabalhar juntos. No mesmo estúdio Nelson já estava editando outra película, dirigida por um jovem baiano ainda pouco conhecido chamado Glauber Rocha. Depois de assisti-lo, ainda na mesa de edição, Sérgio Ricardo inspirou-se para escrever uma música que teria o mesmo nome da obra que tanto o encantara: “Barravento”. 

“Noite de breu sem luar
Lá vai saveiro pelo mar
Levando Bento e Chicão
Na praia um pranto e uma oração
Se barravento chegar
Não vai ter peixe pra vender
Filho sem pai pra criar
Mulher viúva pra sofrer”.

Durante o governo Jango cresceu a participação popular e o sentimento de que o mundo poderia ser transformado. Importantes artistas se uniram aos estudantes para construir um novo projeto cultural para o país, cuja expressão maior foi o Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE. Sérgio Ricardo se integrou a esse esforço. 

Em 1963 lançou um dos seus discos mais importantes “Sr. Talento”. Nele se encontravam músicas como: “Folha de Papel”, “Esse Mundo é Meu”, “Enquanto a tristeza não Vem”, “Barravento” e “Fábrica”. No mesmo ano escreveria o roteiro e dirigiria “Esse Mundo é Meu”. De novo seu destino se cruzaria com o de Glauber. Este pediu para Sérgio ajudá-lo na trilha sonora de outro filme que estava produzindo. Tratava-se de “Deus e o diabo na terra do sol”, obra-prima que revolucionaria a cinematografia brasileira e mundial. Deste trabalho conjunto nasceria uma das trilhas mais pungentes do cinema nacional e na qual se destacaria “Perseguição – O Sertão vai virar mar”. Numa passagem, Corisco alvejado gritava a todo pulmão: “mais forte são os poderes do povo!”.

– Se entrega, Corisco!
– Eu não me entrego, não!
Eu não sou passarinho
Pra viver lá na prisão
– Se entrega, Corisco!
– Eu não me entrego, não!
Não me entrego ao tenente
Não me entrego ao capitão
Eu me entrego só na morte
De parabelo na mão
– Se entrega, Corisco!

“Tá contada a minha história,
verdade, imaginação.
Eu espero que o sinhô tenha tirado uma lição:
que assim mal dividido
esse mundo anda errado,
que a terra é do homem,
não é de Deus nem do Diabo!”

“Este mundo é meu” foi – ou deveria ser – lançado em 31 de março de 1964. Ninguém ousou aparecer naquela noite sombria. As ruas da Guanabara eram tomadas pelo Exército e grupos de extrema-direita, ligados ao governador Carlos Lacerda, começavam a fazer a sua festa. No dia seguinte a UNE seria covardemente metralhada e incendiada. Cenas dantescas que foram presenciadas pelo próprio Sérgio Ricardo. Anos sombrios estavam por vir.

“Esse mundo é meu.
Esse mundo é meu.
Fui escravo no reino
e sou
escravo no mundo em que estou.
Mas acorrentado ninguém pode
Amar.
Saravá ogum
Mandinga da gente continua,
cadê o despacho pra acabar.
Santo guerreiro da floresta
se você não vem eu mesmo vou
brigar.”

Em meados da década de 1960 teve início o que se chamou “era dos festivais” e a participação de Sérgio Ricardo neste movimento não se reduziu apenas a quebra de um violão. No Festival Internacional da Canção da rede Globo, realizado em 1968, inscreveu e classificou “Canto do amor armado”. A primeira colocação seria disputada por “Caminhando” de Vandré e “Sabiá” de Chico Buarque e Tom Jobim. As vaias, desta vez, ficariam para a última dupla, que acabou vencendo a disputa.

“Se eu fosse algum plantador
te acalantava com a flor
colhida nos pés dos versos
dos cantos dispersos
do sertanejar.
Mas só trago o amargo rumor
que o asfalto rumorejou.
Só trago a foto da flor
que o beija-flor recusou,
E a terra em canto minguante
refrão de guerra crescente
Armado eu vim só de amor.”

Neste mesmo ano, voltaria a participar do festival da Record com “Dia da Graça”. Trechos da letra foram censurados e, mesmo assim, o público cantou as estrofes proibidas. Afirmou Sérgio Ricardo: “eu e o público paulista, fizemos as pazes naquele festival”. As coisas haviam mudado, estávamos no auge do movimento estudantil e a esquerda dava as cartas nos festivais e nas ruas. Sérgio Ricardo e Vandré eram, para ela, os melhores representantes da contestação cultural ao regime.
No embalo da onda contestatória lançaria “Aleluia – Che Guevara não morreu”. A censura recolheu os seus discos. O mar não estava para peixe, especialmente se ele fosse vermelho.

“Che, eu creio seja eterna
esta rosa agreste e branca
brotada no teu sorriso
que nem mesmo a morte arranca
e que siga em tua estrada
outro irmão com tua mão
com teu fuzil retomado
com teu risco e decisão”.

Ainda em 1968 dirigiu “Juliana do amor perdido”. Após a decretação do Ato Institucional número 5, ocorrido em dezembro daquele ano, Sérgio entrou na lista dos compositores mais censurados e teve que achar uma alternativa para divulgar sua obra. Ingressou no circuito universitário e percorreu quase todo o país fazendo shows para estudantes. Os rádios e TVs continuavam mantendo silêncio sobre ele e suas músicas. Apenas Conversação de Paz – uma denúncia ácida às limitações da ONU diante das guerras, como a do Vietnã – conseguiu alguma divulgação.

É porque Hiroxima não foi por querer
Conversação, conversação de paz
E o Vietnã não sei quantos milhões
Conversação, conversação de paz
África, África … como vai ficar
Conversação, conversação de paz
E o Oriente, Biafra, etecétera e tal
Conversação, conversação de paz
Eis que de repente um pega-pra-capar
Conversação, conversação de paz
Dedos preparados pra apertar o botão
Conversação, conversação de paz

Demonstrando sua coragem, no auge da ditadura militar, compareceu à missa em memória Alexandre Vannucchi Leme, estudante da USP torturado e morto pela repressão em 1973. Para o público que, temeroso, lotava a Catedral da Sé Sérgio Ricardo cantou “Calabouço”, música composta para outro estudante assassinado chamado Edson Luís.

Olho aberto ouvido atento
e a cabeça no lugar
Cala a boca moço, cala a boca moço
Do canto da boca escorre
metade do meu cantar
Cala a boca moço, cala a boca moço
Eis o lixo do meu canto
que é permitido escutar
Cala a boca moço. Fala!
Olha o vazio nas almas
Olha um violeiro de alma vazia.

O LP Sérgio Ricardo (1973) trouxe as músicas “Calabouço” e “Tocaia”, feita em homenagem ao capitão Carlos Lamarca, assassinado no sertão da Bahia. O nome do guerrilheiro podia ser ouvido quando ela cantava “a marca traição”.  Para piorar as coisas, na capa foi estampada a foto do compositor com uma tarja na boca. Uma provocação que chamou a atenção da censura.

Baixava a noite na mata
E havia um pressentimento
Te cuida, te esconde
Apaga o teu rastro do chão

Havia mais que o silêncio
Na noite passada em claro
Batia no peito
O medo do amor se perder

Não era noite nem dia
Era um tempo sem cor nem hora
Tocaia, tocaia, tocaia
E Lamarca à traição

Cravado por mil centelhas
Era o medo matando um homem

Um ano depois 1974 lançou o filme “A Noite do Espantalho”. Rodado na cidade de Nova Jerusalém trazia no elenco, entre outros, Alceu Valença e Geraldo Azevedo. Na fantástica forma de um cordel contemporâneo, o musical denunciava a violência no campo e a penetração do imperialismo. Apesar de muito elogiado e premiado, não emplacou no circuito comercial.

Gianfrancesco Guarnieri após ouvir a belíssima música “Ponto de Partida” num show resolveu montar uma peça com o mesmo nome e convidou o seu autor a colaborar com ele. Nascia então uma das grandes obras do teatro brasileiro, além de um libelo contra a repressão e a tortura. O texto era baseado no caso do jornalista Wladimir Herzog, assassinado no DOI-CODI de São Paulo em 1975.

Não tenho para a cabeça
Somente o verso brejeiro
Rimo no chão da senzala
Quilombo com cativeiro.
Não tenho para o coração
Somente o ar da montanha
Tenho a planície espinheira
Com mão de sangue, façanha.
Não tenho para o ouvido
Somente o rumor do vento
Tenho gemidos e preces
Rompantes e contratempo,

Pensando em transformar o seu “Zelão” num filme, acabou comprando um barraco no morro do Vidigal. Ali esperava se inspirar e encontrar uma locação adequada. O que ele não sonhara é que aquele barracão se transformaria no Quartel General dos moradores da comunidade quando a prefeitura tentou desalojá-los de seus lares. Sérgio Ricardo participou ativamente da resistência, mobilizando a intelectualidade carioca. O movimento foi vitorioso e transformou-se numa referência de lutas futuras. O feito foi descrito musicalmente em “Vidigal”.

“No Vidigal tem uma turminha de bamba,
que não se esquenta com as ameaças do rei.
Se vem o mal
toda favela se levanta
seja lá quem for se espanta
se vem tirar chinfra de lei.
Sua tramóia já sei de cor.
Só porque tem seu poder
pensa que pode mais que um sofredor.
Tramar tramou
mas se derrubou
Não se brinca com o poder
que o poder do povo é bem maior”

Em 1979 participou da caravana de artistas brasileiros que se apresentaria em Cuba. Mais do que um intercâmbio cultural, aquele era um ato de solidariedade a um povo valente que resistia às investidas do imperialismo estadunidense. Nos anos seguintes faria a trilha sonora da peça infantil “Flicts” de Ziraldo e musicaria o poema–cordel de Carlos Drummond de Andrade “Estória de João e Joana”. Outro grande poeta com quem trabalharia nesses anos seria Thiago de Mello.

Estávamos nos anos 1980, a ditadura chegava ao seu final, mas as músicas e os trabalhos de Sérgio Ricardo permaneciam fora da grande mídia por um longo tempo. Mas, como a roda da história não para, boas notícias surgiram nesse último período. Recentemente passaram a serem exibidos nas TVs por assinatura, como o Canal Brasil, os filmes: “A noite do espantalho”, “Juliana do amor perdido”, “Esse mundo é meu” e “O menino da calça branca”. Esses dois últimos, inclusive, já existem em DVDs. Também reapareceram seus principais discos em forma de CDs, como “Um senhor Talento” (1963), “Arrebentação” (1971), “Sérgio Ricardo” (1973), “Noite do Espantalho” (1974), “Da Lagoa a Cachoeira” (1979), “Estória de João-Joana” (1983). Em CDs foram ainda produzidos “Quando menos se espera” (2001) e “Ponto de Partida” (2008). Mais recentemente saiu a caixa com 5 cds intitulada “Bossa romântica e trilhas”. Estes, talvez, sejam os primeiros passos para o resgate de uma rica produção musical e cinematográfica que acabou sendo condenada ao silêncio por anos de ditadura, militar e midiática.

* A primeira versão desse artigo foi publicado no sítio Vermelho em 2008 com o título A volta de Sérgio Ricardo. Desde então muita coisa mudou, entre elas a reedição de vários discos e filmes desse importante artista brasileiro. 

** Augusto C. Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira e Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.

Bibliografia

Pace, Eliana. Sérgio Ricardo: Canto Vadio, Imprensa Oficial, SP. 2010. 
Ricardo, Sérgio. Quem quebrou meu violão – Uma análise da cultura brasileira de 1940 a 1990, Ed. Record, 1991.  
Sítio Oficial de Sérgio Ricardo: http://www.sergioricardo.com/