O dinheiro que não existia reaparece
Nada como um trágico banho de realidade para que alguns dogmatismos passem a ser abandonados, mesmo por aqueles que os defendiam ferrenhamente até anteontem. Antes da eclosão da pandemia do novo coronavírus, 9 entre 10 economistas do financismo e ligados ao Paulo Guedes diziam que o Brasil estava quebrado e o que o governo não tinha recursos para mais nada.
Na verdade, essa narrativa demolidora vinha se impondo desde 2015, quando Dilma Rousseff chamou Joaquim Levy para o comando da economia de seu governo. Ao fazer essa opção, patrocinava um claro estelionato contra os resultados das eleições presidenciais de outubro de 2014. Ali tem início a caminhada rumo à desgraça que nos acompanha até os dias de hoje.
O diagnóstico que prevalecia nos meios de comunicação, nas rodinhas dos dirigentes do sistema financeiro e na alta tecnocracia enclausurada nos órgãos da política econômica em Brasília se aproximava, na verdade, de uma chantagem. Ou fazemos as chamadas “reformas estruturais” ou o Brasil quebra. Logo no início, o combo ainda vinha acompanhado de uma política monetária agressiva, de juros oficiais na estratosfera. Quando combinada com uma política fiscal de cortes e mais cortes nos gastos não-financeiros, o resultado já apontava para a desgraça que veio na sequência desses cinco penosos anos.
Afinal, não nos esqueçamos que vivemos dois anos seguidos (2015 e 2016) de uma recessão pesada, com queda acumulada de quase 7% no PIB. Em seguida, foram três anos (2017 a 2019) com crescimento pífio, os chamados “pibinhos” de Henrique Meirelles e Paulo Guedes. Ou seja, a economia cresceu em média 1,2% ao ano. Se contarmos as opções de redução das despesas em programas governamentais como saúde, previdência social, educação, assistência social e outros, aí então podemos compreender o agravamento da crise social para a maioria da nossa população. O Brasil voltou ao mapa da fome e a miséria cresceu de forma significativa em nossas terras.
A austeridade baseada na falta de recursos
No entanto, tudo era implementado sem aparente controvérsia. O discurso hegemônico esmagava qualquer espaço para o contraditório, para que os economistas não alinhados com a ortodoxia pudéssemos apresentar ao grande público nossas propostas. Em nome de uma neutralidade derivada de um suposto “tecnicismo”, a corrente do financismo deitava e rolava sozinha e sem contraponto. E vieram a reforma trabalhista, a Emenda Constitucional 95 (mais conhecida como PEC do fim do mundo), a reforma trabalhista, a reforma previdenciária, as privatizações e otras cositas más.
Além disso, passaram a ser multiplicados pela grande imprensa as grandes mentiras a respeito da real situação de nossa economia e de nossas contas orçamentárias. Enfim, falácias que operavam como argumento para pressionar o Congresso Nacional a ser mais dócil às propostas apresentadas pelo Executivo, em sua cruzada a favor da destruição do Estado e de desmonte das políticas públicas.
“Se não aprovarmos a Reforma Trabalhista, as empresas quebram. Será o único modo de reduzir o desemprego”.
“Os direitos previstos na Constituição de 1988 não cabem mais no Orçamento da União”.
“Se não for aprovada Reforma da Previdência, o Brasil quebra”.
“O governo não tem mais recursos. A política de corte de gastos em políticas sociais é inevitável”.
Um breve corte para o momento atual e para a gravidade da crise provocada pela covid-19. Pois o fato é que até mesmo os neoliberais mais empedernidos passaram a concordar e a recomendar que a saída para todos nós passa pelo aumento imediato e vigoroso dos gastos públicos. Peraí, mas como assim? Se antes não havia recursos para que fossem desenvolvidas as diretrizes constitucionais, como agora o governo pode voltar a gastar de uma hora para outra? Oh, santa heresia!
Recursos para o financeiro abundam
Pois a verdade é que nunca houve falta de recursos para o desenvolvimento de políticas sociais e mesmo para as necessidades de investimento em áreas essenciais e estratégicas. O principal problema sempre foi a falta de vontade política de utilizar o instrumento da administração pública para levar a cabo esses projetos. E dá-lhe cortar despesas no orçamento na área social, ao passo que seguia leve, livre e solto o gasto com a dimensão financeira – pagamento de juros da dívida pública.
Guedes e seus asseclas não se cansavam de encher a boca para mentir que o governo funciona como a economia doméstica: senão tem receita, paciência, não dá para realizar despesas. Mentira! Está mais do que demonstrado que o governo de um país não funciona como um indivíduo ou uma empresa. Ele tem os meios de gerar recursos. Ele é o responsável e monopolista pela emissão da moeda. Ele centraliza a política cambial e acumula reserva internacionais. Ele arrecada impostos. Ele pode criar dívida pública e antecipar recursos futuros para uso no momento presente.
Nossos dirigentes sempre souberam disso, mas praticam o oposto. Algumas informações aqui, apenas para registro. O mesmo governo que dizia não ter recursos, gastou ao longo dos últimos 12 meses (todos sob a responsabilidade do superministro Paulo Guedes) o valor de R$ 382 bilhões na rubrica financeira, para o pagamento de juros da dívida. Para ser mais exato, desde que o Chicago old boy chegou na Esplanada, em janeiro de 2019, ele promoveu a transferência de R$ 433 bi para o povo do outro lado balcão. O seu financismo querido, universo de onde ele veio e que nunca abandonou – ainda mais nessas horas tão difíceis. Sempre esteve aí o dinheiro que os papagaios de pirata da banca diziam que não existia.
R$ 1,3 trilhão na Conta Única do Tesouro
Os recursos do governo federal são centralizados e administrados pelo Banco Central (BC). Ali estão registrados os valores disponíveis para sua utilização a qualquer momento e para todos os fins. Existe uma rubrica famosa no financês da Esplanada, a conhecida e poderosa Conta Única do Tesouro Nacional junto ao BC. Pois essa conta, ao contrário das inverdades do discurso oficialista, sempre se apresentou de forma trilionária ao longo desse período todo da austeridade assassina. No momento atual, por exemplo, ela apresenta um saldo credor de R$ 1,3 trilhão para uso do governo federal.
Pois agora – oh, grande surpresa! – o dinheiro apareceu. Aqueles mesmos recursos que boa parte dos “especialistas” vociferavam e asseguravam não existir está sendo utilizado pelo governo, em seu tímido programa emergencial para combater a crise da covid-19. O problema é que Paulo Guedes e seu séquito ainda não se convenceram de que sua análise é equivocada. Por mais que a grande maioria dos países já tenham abandonado a austeridade fiscal, por aqui a equipe do Ministério da Economia ainda opera na base da rigidez orçamentária e opõe todo o tipo de dificuldade para fazer o dinheiro chegar na ponta, nas mãos dos mais necessitados.
Comportamento oposto ocorre, aliás, quando se trata de oferecer centenas de bilhões de reais e outras benesses aos grandes bancos privados e demais outras instituições do sistema financeiro. Nesses casos, o dinheiro abunda e as facilidades são amplas, gerais e irrestritas.
Não tem jeito mesmo. A realidade é dura e temos de encontrar alternativas. Enquanto o País contar com Bolsonaro no Planalto e Guedes na Economia, as perspectivas são cada vez mais sombrias. O primeiro acha que tudo não passa de uma gripezinha e faz campanha aberta contra o isolamento, uma vez que o Brasil não pode parar. Já o outro, não se convence de que as vidas de mais de 200 milhões de pessoas são mais importantes do que os lucros dos bancos.
*Paulo Kliass é Doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.