O mundo que teremos após a pandemia
Passei esta semana inteira lendo muitos artigos de intelectuais que obtive na Internet, bem como coletando algumas declarações de personalidades e autoridades que iniciam o debate sobre como será o novo mundo que advirá depois que a pandemia for controlada – e ela será mais dia menos dia – e tenho certeza que ela não será maior que todas as demais que a humanidade conheceu desde a Praga de Justiniano (541-544), Peste Negra (1343-1353) e Gripe Espanhola (1918-1919), considerando as três maiores, que mataram entre 25 e cem milhões de pessoas no mundo (estimativa, pois jamais saberemos ao certo).
Os autores principais que tive contato foram Noam Chomsky, do Massachussets Institute of Tecnology, um dos mais, senão o mais renomado intelectual vivo hoje no mundo. Também o colega sociólogo e professor da UFRJ, José Luís Fiori. Também o professor da FGV de relações internacionais, Oliver Stuenkel. O administrador de empresas Pedro Pinho, do site Dinâmica Global. Por fim, um articulista do principal jornal cubano, o Granmma, Abel Prieto. Todos os links onde é possível ler os referidos trabalhos vão ao final do texto.
Inicio este artigo com comentários sobre os números da pandemia que vêm sendo mostrados diariamente por diversos sites internacionais que informam instantaneamente, o número de infectados, mortos e curados, entre outras tantas informações relevantes. No momento que escrevo, o Brasil havia subido para a 11ª posição. Tentarei demonstrar a falsidade desses números e as razões disso. Ao final, faço uma revisão de meu próprio ponto de vista externado semana passada sobre como vejo o mundo depois da pandemia (quem se interessar pode lê-lo neste link https://bit.ly/3afwPRN).
A mentira dos números da pandemia no Brasil
Debrucei-me sobre uma bela planilha que vem sendo divulgada instantaneamente nas redes sociais com vários indicadores onde podem ser feitas comparações significativas, entre elas: 1. Total de contaminados; 2. Total de mortos; 3. Índice de mortalidade; 4. Mortes por milhão de habitantes e 5. Número de pessoas testadas por milhão de habitantes. O melhor desses sites que divulgam dados da contaminação pelo coronavírus instantaneamente pode ser acessada no seguinte endereço: https://bit.ly/39oyTq2. Atentem que os dados que utilizo são de uma planilha gerada no dia 10 de abril, sexta-feira passada, às 23h53. Hoje esses números seriam completamente diferentes. Eles são publicados para efeitos de comparação com outros países.
Alguns fatos e dados nos saltam aos olhos. O que vai desmistificar inclusive a própria ação do Ministério da Saúde que vem sendo até elogiada. Na verdade, o Brasil vive um momento de luta contra um vírus e contra um verme que ocupa a presidência. Vivemos uma profunda contradição entre um governo e seu ministro da economia, ambos ultraliberais, sendo que necessitaríamos de ações governamentais que “jogassem dinheiro pelo helicóptero” como dizem alguns economistas ironizando o que devería ser feito.
Já ouvimos muitas vezes o dito popular de que deus é brasileiro. Ainda que não creia em nenhuma divindade, começo a acreditar que é verdade, pois deve haver algum ser muito poderoso protegendo nosso povo pelos números da planilha. Ou, que os números que temos visto são absolutamente falsos e completamente defasados da realidade conforme vêm apontando muitos cientistas.
Vamos a esses números globais
1. O Brasil aplica o teste para verificar se uma pessoa está contaminada em apenas 296 pessoas para cada milhão de habitantes! Comparando com outros países, vemos que a Suíça testa 75 vezes mais que nós, a Itália 56 vezes, a Bélgica e os EUA 29 vezes mais! Isso mostra o completo descaso de um governo que devería adquirir milhões de testes e não o faz. A consequência disso está sendo a mortalidade não inclusa nas estatísticas de pessoas que vêm sendo enterradas sem diagnóstico para o coronavírus e por outras causas, em especial síndrome aguda respiratória grave (SARS);
2. O índice de nossa mortalidade, pelos dados oficiais, é de apenas 5,5% (1.223 para 22.192 contaminados com dados do dia 10 de abril). Baixíssimo esse número. Fico me indagando o porquê países de primeiríssimo mundo tem índices mais que o dobro do nosso, como a Itália com 12,72%, a Inglaterra com 12,59%, a Bélgica com 12,14% e a França com 10,85%? Seremos nós muito mais cuidadosos com nossa população que esses países? Ou deus sería mesmo brasileiro? Nada disso. Os nossos números de mortos são absolutamente falsos!
3. Outra comparação que podemos fazer é com o número de casos de diagnósticos positivos por milhão de habitantes (contaminados). Aqui, nesta dita terra abençoada por deus, temos apenas e tão somente 104 casos de infectados por milhão de habitantes. Por que será que a Espanha tem 34 vezes mais que nós, a Suíça tem 28 vezes mais, a Itália e a Bélgica têm 24 vezes mais, para ficarmos nesses quatro países? Serão eles amaldiçoados? Seu povo será mais pecador que o nosso para que mereçam castigo divino, ou dito de outra forma, seremos nós pessoas que não cometemos pecados para receber a proteção de deus? Claro que não! Mais uma vez afirmo: os números são falsos, como começou a reconhecer o governador de São Paulo. Se tivermos com índices parecidos com os da Espanha, é lícito afirmar que podemos estar com 750 mil contaminados em todo o país;
4. Por fim, os dados sobre o número de mortos por milhão de habitantes. Nosso abençoado país tem apenas e ínfimas sete pessoas mortas para cada milhão de habitantes! Por que a Espanha e a Itália, por exemplo, têm quase 400 pessoas mortas por milhão? Que têm essas nações onde morrem 175 vezes mais pessoas do que nosso Brasil. Mais uma vez digo: os números são falsos e não refletem a realidade. E a explicação disso é claramente pelo fato que quase não realizamos testes com a população.
O rei está nu
Um dos artigos mais interessantes que li, do articulista do jornal cubano Granmma, Abel Prieto, inicia seu escrito citando uma passagem de uma das fábulas de Christian Andersen (Dinamarca, 1805-1875). Trata-se da passagem que virou até um dito popular, onde menciona que o rei está nu. A fábula conta onde, certa vez, em um reino dois alfaiates, trambiqueiros quiseram ganhar dinheiro de um rei prometendo-lhe a vestimenta mais rica e chique que ele jamais havia visto. No dia marcado para o rei experimentar o traje real perante a corte e os nobres, os alfaiates disseram que aqueles que não vissem a roupa sería porque eles eram filhos ilegítimos de suas mães. Em seguida trouxeram a “roupa” para o rei, que nada viu, até porque ela não existia. O rei, preocupado com a questão da ilegitimidade, tirou sua roupa e “vestiu” a nova perante todos, que também nada viam, mas a elogiavam exageradamente. Certo dia, em um feriado nacional, durante o tradicional desfile, o rei “veste” a roupa maravilhosa e desfila em seu lindo cavalo. Todo mundo, sabendo da maldição, elogia a vestimenta real. Em certo momento, uma criança, do alto de sua inocência, aponta ao rei e diz em voz alta: O rei está nu! Uma boa metáfora para compararmos com a situação que vivemos na atualidade. Caiu o véu de uma suposta “bondade” do neoliberalismo e ficou claro a barbárie.
Essa foi a forma encontrada por Prieto para dizer de forma clara: o neoliberalismo está nu e caiu a sua máscara. Nos enganaram por 40 anos quando nos disseram que o modelo neoliberal é a melhor forma que as pessoas podem ter em todo o mundo para viver em sociedade. Que o estado tem que ser o menor possível. Que as leis do mercado devem regular tudo. Por aqui, houve até quem disse – o próprio ministro da Saúde! – que o SUS devería ser inteiramente privatizado e que “planos populares de saúde” (sic) deveriam ser criados. Não por acaso, o comandante Fidel Castro disse que o modelo neoliberal conduz o mundo inteiro para o genocídio. E acertou!
E é de Prieto a afirmação de que o sistema vive hoje o grande dilema ético onde os médicos têm que decidir quem vai viver e quem irá morrer! Até porque, vivemos sob domínio de grandes corporações, em especial as farmacêuticas. Entregamos nossos governos às corporações. Para a indústria farmacêutica, que alguns chamam de Big Farma, as pessoas são “clientes” e não “pacientes”. Simples assim.
Criou-se, na visão de Prieto, uma dicotomia entre uma minoria “salvável” e uma grande maioria “insalvável” por assim dizer. Em um primeiro momento, tanto Trump quanto nosso presidente Bolsonaro imaginaram que o vírus atacaria apenas populações “descartáveis”. Mas, o vírus não vem fazendo distinção de classes. Ricos, astros, celebridades e grandes personalidades morrem todos os dias de Covid-19 (o atual presidente do Banco Central chegou a dizer que as mortes favorecem a economia, ao dizer que quanto mais rápido vierem novos casos e mortes por Covid19, melhor para a economia).
Opiniões de algumas autoridades
Nos diversos textos a que tive acesso para escrever este artigo, destacam-se algumas opiniões de autoridades e personalidades fora do mundo acadêmico. Quero mencionar algumas. O secretário-geral da ONU, o português António Guterrez afirmou textualmente: “não podemos retornar para onde estávamos. A pandemia nos recorda o preço que pagamos pelas debilidades dos sistemas de saúde pública. A pandemia deixou clara as desigualdades”. Aqui é importante observar que ele tanto critica o descaso e mesmo as privatizações dos sistemas de saúde em todo o mundo, quanto ao mesmo tempo deixa claro o maior mal que a humanidade vive hoje, que são as desigualdades sociais.
Por ironia do destino, a Inglaterra, que a partir de 1979 com Margareth Thatcher sucateou o que era o melhor sistema público de saúde de toda a Europa, hoje vive sob um governo do mesmo Partido Conservador de Boris Johnson, que conseguiu salvar-se da doença e teve que dizer publicamente que deve a sua vida ao sistema que ele mesmo estava se encarregando de sucatear.
O embaixador Sérgio Amaral, tucano de quatro costados, que jamais pode ser considerado um esquerdista, que foi embaixador nos países do chamado “circuito Elisabeth Arden” (no Itamaraty diz-se sobre as melhores embaixadas no mundo), Inglaterra, França e EUA, em sua entrevista à Band News de 9 de abril passado, menciona que após a pandemia o mundo terá que discutir pelo menos três questões fundamentais: 1. Papel do Estado (e seu tamanho, claro); 2. Desigualdades sociais e 3. Modelo de economia neoliberal (e seu eventual fracasso). Ele está correto. Esses são três pontos centrais a serem debatidos e a esquerda deve estar preparada para enfrentá-lo.
Em seu artigo no Wall Street Journal de 3 de abril de 2020, o provável maior Think Tank estadunidense, Henry Kissinger, secretário de Estado dos EUA entre 1968 e 1976, ele que é grande defensor da globalização e do capitalismo financeiro, se mostra literalmente atordoado quando diz que “os indivíduos não podem garantir segurança, ordem, bem estar econômico e justiça por conta própria. A pandemia provoca um anacronismo, um renascimento de cidades muradas em uma época que a prosperidade depende do comércio global e do movimento de pessoas”, ou seja, ele defende com firmeza a globalização pois vê nela progresso, mas não se conforma com um fato novo que as pessoas e autoridades tiveram que fechar fronteiras!
O grande debate que teremos que fazer, em especial nós de esquerda, será o seguinte: o capitalismo será afetado e poderá morrer? Ou apenas o modelo neoliberal de economia é que estaria comprometido? E mesmo este, decorrente do capitalismo financeiro, não terá fôlego para retornar e com força ainda maior? Quanto ao capitalismo, não tenho dúvida que ele ainda durará por mais tempo. Não nos esqueçamos do grande Lênin que diz “o capitalismo não cairá se não existirem forças sociais e políticas que lhes façam cair. Ele tem demonstrado uma inusual resiliência para processar suas crises e sair fortalecido delas”. Ele não tem toda a razão? O capitalismo não saiu fortalecido das grandes crises de 1929 e mesmo a mais recente de 2008?
Algumas opiniões de intelectuais e acadêmicos
Prieto em seu artigo cita o renomado sociólogo argentino Atílio Borón que, em artigo recente diz: “a primeira vítima fatal da pandemia foi a versão neoliberal do capitalismo, um cadáver insepulto, porém impossível de ser ressuscitado”. Por isso tanto com base em Lênin, quanto lendo esta inusitada citação de Borón, não é realista imaginarmos um colapso iminente do sistema capitalista. Até porque não há correlação de forças na sociedade para dirigir esse processo que terá que ser revolucionário e mais do que isso, com base no marxismo: não há desenvolvimento das forças produtivas que indiquem o surgimento de novo modelo socioeconômico de economia.
O colega Atílio Borón se mostra imensamente otimista quando diz “o mundo pós pandemia terá estado muito mais forte e menos mercado… massas mais politizadas em função do vírus e do neoliberalismo estarão propensas a buscarem soluções solidárias, coletivas e até socialistas”. Estou de acordo que teremos mais estado e menos mercado, mas confesso que não estou otimista quanto às perspectivas coletivas e mesmo socialistas para o mundo que virá.
Outro autor que quero lhes apresentar é o Oliver Stuenkel, da FGV. Ele faz uma introdução afirmando que crises econômicas ou guerras costumam marcar fim de época e início de novas ordens mundiais, pelo simples fato de estas terem o poder de revelar aquilo que estava oculto. Ele menciona a guerra de 1898 dos EUA contra a Espanha em Cuba e a Crise de Suez de 1956 como momentos em que a Europa teve que reconhecer a perda de poder para os Estados Unidos. Para ele, a crise de 2008 deixou claro que os EUA jamais conseguiriam enfrentar a crise sozinho como anteriormente. Tanto que o G-7 perdeu poder à época, dando lugar ao G-20, um grupo maior de países, além das potências mais ricas do planeta.
O advento do “trumpismo” com a posse de Donald Trump como 45º presidente dos Estados Unidos em janeiro de 2017 (de um total de 56 eleições), os EUA se retiram ou minimizam a participação em pelo menos três grandes debates em que a humanidade toda está envolvida, ainda segundo Stuenkel: 1. Liberações comerciais; 2. Crise migratória e 3. Mudança global do clima. Eu mencionei alguns aspectos desse pensamento em artigo que escrevi para a revista Sociologia nesse mesmo ano, de forma que tenho acordo com esse pensamento.
Stuenkel cita o professor Stephen Walt, da conceituada Universidade de Harvard, nos EUA, que diz: “a reputação de expertise de Washington tem sido uma das suas principais fontes de poder; esta pandemia provavelmente acabará com isso de maneira irreversível”, ou dito de outra forma, este autor acredita na perda de poder global dos EUA. Isso, não só eu tenho dito é claro. E no caso da revisão dos autores que estudei, isso é praticamente uma unanimidade.
Para Stuenkel, não basta que um país seja uma potência militar. Ele tem que demonstrar capacidade e condições de resolver problemas internacionais e prover bens públicos globais. Isso é tudo que os EUA não estão fazendo. Apenas a China assume esse papel no momento e também ela – unanimidade entre os autores e como disse semana passada – sairá desta pandemia mais forte do que entrou e despontando como maior líder global. A China enviou equipamentos médicos e profissionais de saúde para muitos países do mundo, assim como a pequenina Cuba. O professor Stuenkel conclui que este momento da história será visto pelos historiadores do futuro como o “momento Suez dos EUA”. Esperemos.
Outro dos autores que estudamos, Noam Chomsky, não está tão otimista quanto os anteriores. Ele concedeu uma entrevista ao site Dossiersul que no Brasil é distribuído pelo site Diálogos do Sul (https://bit.ly/3eClQ8q) a quem recomendo. Chomsky, hoje com 92 anos, mostra-se mais preocupado com outros dois problemas que para ele são até mais cruciais do que a pandemia e afetarão toda a humanidade em futuro próximo, que são as possiblidades de uma guerra nuclear e a questão do aquecimento global.
Chomsky é talvez o autor estadunidense que mais critica os Estados Unidos. Nesta entrevista ele menciona o poder de impor sanções que tem esse país imperialista, como jamais vimos na história. E a Europa, acaba tendo que segui-lo para não ficar fora do sistema financeiro internacional (SWIFT). Ele diz “a Europa tem que seguir o mestre”. O professor Chomsky fala de “uma crise civilizacional, critica o mercado imputando-lhe o que chama de “uma falha colossal” e joga toda a culpa pelo que a humanidade atravessa no modelo neoliberal de economia.
Ao criticar a chamada Big Farma, ele diz que estas “preferem desenvolver cremes corporais do que encontrar uma vacina que proteja pessoas”, pois estas dariam menos lucro que os cremes. Ele cita o exemplo da vacina Salk, para a poliomielite, desenvolvida por Albert Sabin e que não foi patenteada, de forma que ela salvou milhões de vidas e erradicou do mundo essa doença, sendo que qualquer laboratório pode fabricá-la sem pagar royalties.
Chomsky critica todos os governos do mundo que adotam o chamado script Ronald Reagan, que banalizou a orientação “o governo é o problema”. Isso fez com que os países ficassem à mercê de tiranias privadas, das grandes corporações, que jamais tiveram qualquer responsabilidade para com o público.
Chomsky aponta duas possíveis saídas para o mundo nesta crise atual. Uma delas, de caráter autoritário com o crescimento do nacionalismo com viés autoritário e neoliberal, sem grandes mudanças na economia. A outra mudança seria reconstruir a sociedade em termos mais humanos, onde houvesse a preocupação com as necessidades da humanidade e não do lucro privado. Ele não arrisca uma opinião sobre qual mundo adviria pós pandemia.
As polêmicas opiniões do Professor Fiori
Acompanho a produção intelectual do colega sociólogo e professor José Luíz Fiori já há tempos. Desta feita, o site chamado Tutaméia (www.tutameia.jor.br) do casal Eleonora e Rodolfo Lucena realizou com um professor da UFRJ uma extensa entrevista por e-mail. Fiz uma leitura criteriosa e detida, com anotações, do texto cujo título dado pelos entrevistadores é algo como “Está ruim e vai piorar”. Identifiquei-me com a maior parte do texto, ainda que discorde de outras. Quero aqui registrar as suas principais passagens.
Fiori registra que as crises de 1929 e de 2008 foram endógenas, ou seja, causadas por fatores internos. Esta atual, no entanto é uma crise capitalista global e provocada por fatores externos, neste caso, o vírus. Este não obedece às chamadas “leis gerais da economia”. O professor Fiori menciona que as epidemias e pestes jamais produziram em tempo algum, qualquer ruptura histórica ou alteraram a rota expansiva do sistema mundial. Portanto, para ele, esta crise não pode ser comparada com as anteriores e não ocorrerá qualquer ruptura histórica. Estou parcialmente de acordo. Senão vejamos. De fato, a grande pandemia da Gripe Espanhola de 1918 e 1919 – provavelmente a que mais matou em toda a história, com estimados até cem milhões de mortos – não foi a que causou a grande mudança. As causas dessas alterações na geopolítica mundial foram as conferências de Versalhes e San Remo, 1919 e 1920 que puniram a Alemanha, impuseram perdas territoriais a esse país e dividiram entre as potências vencedoras do Oriente Médio. No entanto, o próprio Fiori, citando um historiador inglês – Mark Harrison, da Universidade de Oxford – diz que as delimitações de fronteiras vão começar a ocorrer a partir da Peste Negra (bubônica) de 1343 a 1353 (dez anos!). Ora, então uma peste acarretou mudanças! Eu, pessoalmente, acho que a grande mudança na Europa iria ocorrer apenas em 1648 – 300 anos depois da peste – com a assinatura do Tratado de Westfália. Mas, esse é outro assunto.
Também ele menciona uma característica de todas ou da maioria das guerras. Elas produzem unidades nacionais, muitas vezes acima das classes sociais, enquanto as pandemias, afetam de um modo geral a todos e podem até criar certa animosidade entre nações. Afirma com todas as letras que não vê a menor possibilidade de qualquer mudança no sistema capitalista, em especial na linha “humanitária” (eventualmente da volta ao sistema de welfar state, estado de bem estar) ou mesmo do fim do modelo neoliberal. Ele está no lado oposto ao otimismo de Borón.
Fiori afirma que “essa pandemia não produziu nenhuma grande inflexão geopolítica dentro do sistema mundial. O que ela fará é acelerar a velocidade das transformações que já estava em curso e que seguirão se aperfeiçoando”. Também aqui estou de acordo. Já disse isso em vários artigos e palestras, que vivemos em um mundo de transição, de um modelo de unipolaridade para um mundo multipolar. Mas, isso não está dado. Quiçá esteja certo o professor Fiori quanto ao aumento da velocidade das mudanças. Tal qual outros autores, esta crise de fato tirou o último véu da hipocrisia do que muitos analistas chamam de “ordem liberal” ou anunciam o fim da hegemonia estadunidense. Aqui há unanimidade entre os pensadores analisados. Todos preveem o fim da hegemonia estadunidense. Ou pelo menos o seu declínio significativo.
Fiori, o mais pessimista de todos os autores estudados, acaba por concluir que é mais provável que essa crise acabe por aumentar as desigualdades, bem como crie uma nova onda de nacionalismo dentro do sistema interestatal. Ele aponta que a Rússia, mesmo perdendo muito com a queda dos preços do petróleo, seguirá sendo uma líder mundial e com grande poder bélico. Tal qual eu afirmei em artigo anterior, ele também prevê a possibilidade de desintegração da União Europeia, de seu projeto unitário, iniciado desde a saída da Inglaterra com o brexit, ocorrida no dia 31 de janeiro deste ano. Fiori aponta a China seguindo o curso de seu projeto de hegemonia mundial para meados deste século, ao que acho ocorrerá muito antes disso. É provável que meados da atual década que vivemos.
Também de acordo com o que publiquei na semana passada, Fiori aponta uma diminuição geral na produção geral de bens e serviços – será uma pauperização geral das sociedades? – bem como aumento brutal do desemprego e quebra nas cadeias produtivas mundiais. Claro, ele usa o termo “grande depressão” como outros autores. Ele só não arrisca dizer se será maior que 1929. Essa questão das cadeias produtivas, apenas para explicar melhor, é a forma como o capitalismo mundial adotou de fabricar o produto final eventualmente na China, mas fabricar os componentes desse produto em diversos outros países. Exemplo disso é o aparelho celular chamado Iphone, da empresa Apple, que é montado na China, mas seus componentes internos provêm de cerca de 10 países diferentes. Esta pandemia alterou profundamente esse modelo, pois as empresas trabalham com o sistema just in time (quase sem estoques) e tiveram que interromper as montagens finais dos produtos em função da escassez de peças vindas de outros países. Ou seja, a globalização, tal qual nós conhecemos há 40 anos, está em cheque.
Fiori conclui, com grande pessimismo, em relação às perspectivas de mudanças, apenas no modelo neoliberal. Ele diz que é provável que os países periféricos e mais pobres acabem tendo que enfrentar as suas imensas dívidas decorrentes das medidas para minimizar a pandemia com a volta radicalizada de suas atuais políticas de austeridade fiscal e privatizações de patrimônio público para recuperar o “equilíbrio perdido”. Eu não estou de acordo com isso. Mas, só o tempo é que provará quem estará certo. Um dos tantos artigos que li dizia mais ou menos assim: nós não poderemos jamais voltar ao “normal”, porque o normal era exatamente o problema. (Robson Hamuche no site Resiliência Mag).
A guisa de conclusões
A seguir, para concluir esta revisão de meu próprio pensamento, quero listar aspectos de como vejo esse novo mundo que teremos após essa pandemia. E não quer dizer que isso será feito de maneira rápida. Poderá demorar anos, é claro. Colocarei apenas os títulos gerais, pois a fundamentação desse conteúdo está no artigo da semana passada.
1. Presenciaremos um declínio acentuado do poder dos Estados Unidos com a ascensão da China como maior potência mundial;
2. Teremos estados nacionais mais fortes e mais interventores na economia, como motores de indução ao desenvolvimento, com o consequente crescimento dos nacionalismos, podendo haver desvios para sistemas autoritários de governos;
3. É possível que o sistema financeiro de tipo “cassino”, venha ter sua bolha estourada, ou bastante esvaziada. O PIB mundial encolherá brutalmente. Não será mais possível que capitais internacionais voláteis continuem a atuar livremente ao redor do mundo. Prevejo um maior controle desses capitais, seja por algum organismo atualmente existente ou algum novo que venha a ser criado a partir de acordos entre as potências mundiais;
4. Veremos uma profunda alteração do modelo de globalização tal qual conhecemos na atualidade. Isso implicará alteração das cadeias produtivas dos países. É provável que muitas empresas retornem a fabricação de seus produtos nos seus próprios países de origem;
5. Presenciaremos uma grande alteração do valor das coisas. É possível que tenhamos um empobrecimento geral das pessoas, com aumento do desemprego, perdas significativas de renda das famílias. Isso poderá ter impacto na redução da massa salarial dos trabalhadores em geral, bem como acarretará grandes perdas nas receitas advindas de impostos de todos os níveis de governos;
6. Tudo indica que teremos uma grande luta pela diminuição das desigualdades. O mundo não poderá mais conviver com a brutal desigualdade que faz com que hoje oito pessoas acumulem uma riqueza equivalente a 3,5 bilhões de pessoas (no Brasil seis pessoas concentram a riqueza equivalente a cem milhões de brasileiros). Nesse sentido, acho que a implantação de uma renda mínima universal para todos os que ganham até determinado nível de salários (mesmo os que estejam empregados), deverá ser uma realidade que não se poderá mais fugir a ela.
São meus pontos de vista. Ainda passível, sempre, de sofrer alterações no transcurso da história. A única dúvida que me resta é se esse novo mundo será o de Huxley (Admirável mundo novo) ou o de Orwel (1984). Ou uma mistura de ambos. Veremos.
Links para os artigos consultados para a elaboração deste artigo
Noam Chomsky – https://bit.ly/2XyXWEv;
José Luíz Fiori – https://bit.ly/2z0lKqM;
Oliver Stuenkel – https://bit.ly/2K6mwVy;
Abel Prieto – https://bit.ly/2wE5NFX ;
Pedro Augusto Pinho – https://bit.ly/3bgQySe.
* Sociólogo, professor universitário (aposentado), autor e coautor de 13 livros, atualmente exercendo a função de analista internacional, sendo comentarista da TVT e outros canais por streaming.