As misérias da ortodoxia econômica, Ladislau Dowbor
What´s weong with economics? — A primer for the perplexed [O que há de errado com a ciência econômica: uma cartilha para os perplexos], de Robert Skidelsky, publicado pela Yale University Press, New Haven (2020)
É fundamental entender que a economia que ensinamos, e muitas das análises econômicas que fazemos estão atoladas em simplificações metodológicas e interpretações interessadas, profundamente ideológicas, que exigem não mais alguns acertos, mas um deslocamento sistêmico, um reset geral que nos permita evoluir de uma pretensa “ciência” econômica para a mais modesta e produtiva economia política, ancorada na história e nas outras ciências sociais. Skidelsky traz um excelente sobrevoo de como repensar a economia, e é mais necessário do que nunca.
O que deu errado com a chamada ciência econômica? O livro, significativamente, é dedicado aos alunos e professores de economia. O que estamos ensinando ainda é relevante? É cientificamente correto? Celso Furtado, num dos seus últimos escritos, já alertava que o que ensinamos em economia provavelmente não ajudaria os alunos a entender o que acontece. O Papa Francisco lançou um desafio planetário por “uma outra economia”. De Joseph Stiglitz a Jeffrey Sachs, com Amartya Sen, Kate Raworth, Há-Joon Chang, Thomas Piketty e tantos outros, está amadurecendo uma nova visão científica. Esse deslocamento profundo de como interpretamos o mundo econômico vai nos impactar a todos.
No presente trabalho, Robert Skidelsky sistematiza de maneira curta e direta como a economia ensinada, o chamado mainstream, ou economia ortodoxa, enveredou pelo absurdo, construindo caminhos matematicamente complexos, conceitualmente elegantes, mas divorciados da realidade. Não são correções de rumo que precisamos, e sim de um “reset” metodológico, de uma reorientação sistêmica. Por penoso que seja, em particular para professores que passaram anos ensinando visões que pouco funcionam, temos de mudar os rumos. Nossos alunos terminam os cursos com modelos na cabeça e perplexidade quanto ao seu futuro. Rever o que chamamos de ciência econômica não é apenas uma questão de coerência científica, é também uma questão de ética profissional.
Quisera salientar quão oportuno é o livro. Estamos vivendo o colapso de uma era de simplificações, frente à convergência do desastre ambiental planetário, da desigualdade explosiva, e do caos financeiro, sobre os quais desaba a paralisia econômica gerada não por uma invasão alienígena, mas por uma minúscula molécula que simplesmente não se interessa em saber se somos poderosos ou não, homo sapiens ou homo stultus. A disfuncionalidade do sistema que nos rege ficou escancarada. Estamos todos à procura de novos rumos. Um choque de modéstia seria bem-vindo.
Estamos aqui na companhia de um economista que não mastiga as palavras, e vai direto ao ponto: “Hoje estamos vivendo uma crise do liberalismo. O colapso financeiro trouxe para a cena uma insatisfação crescente com a corrupção do dinheiro. O neoconservatismo buscou justificar remunerações fabulosas à plutocracia financeira enquanto as rendas médias estagnam ou mesmo caem; em nome da eficiência promoveu o deslocamento para off-shore de milhões de empregos, o solapamento das comunidades nacionais, e o estupro da natureza. ” Skidelsky qualifica isso como “spectacular failure”, e compreendê-lo facilitaria aos estudantes de economia “se situarem eles mesmos e o ensino que recebem no fluxo de eventos. Ajuda a explicar porque narrativas econômicas, plausíveis numa época, perdem o seu poder em outros. ” (158)
Precisamos “repensar radicalmente a metodologia a metodologia adotada…Se a economia quiser ser útil hoje em dia, precisará modificar a sua crença no mercado autorregulado”. Precisamos de um pouco de distanciamento e de visão de conjunto. “Historiadores futuros, olhando para trás, possivelmente identificariam a globalização dirigida pelas finanças como a raiz causal das atribulações do século vinte e um”. Na visão de uma economia reinserida na análise de conjunto da sociedade, “os tópicos essenciais seriam o papel do Estado, a distribuição do poder, e o efeito de ambos sobre a distribuição da riqueza e da renda” (193).
O problema da desigualdade é central, e Skidelsky denuncia “a escassez artificialmente criada”: “A pobreza no mundo de hoje não é devida à escassez, mas à desigualdade. Há suficiente comida para alimentar uma população global mesmo mais elevada do que a de hoje. Uma economia que priorizasse a redução da pobreza e das doenças buscaria a eficiência da distribuição tanto quanto a eficiência da produção e das trocas ” (24). Esses economistas (do mainstream) “têm sido relativamente cegos quanto à habilidade das grandes corporações privadas extraírem renta (rent).[1] Hoje a maior força de extração de renta é o cartel de grandes bancos, que controlam os meios de financiamento da produção…Ao insistirem que a escassez é dada pela natureza, não pelas instituições, a economia mainstream trava os esforços de regulação dos mercados e de redistribuição de renda” (25).
É essencial deixar de se referir à economia como ciência econômica. Em inglês economics se refere ao estudo da economia, enquanto a própria economia é qualificada de the economy, como por exemplo “the American economy”. O fato de qualificarmos o economics de ciência econômica em português tende a puxar para essa área um manto da cientificidade como o que utilizamos para as ciências naturais. “É porque a ciência econômica (economics) não é uma ciência que ela precisa de outros campos de estudo, notadamente psicologia, sociologia, política, ética, história para preencher os vazios no seu método de entender a realidade. Não devemos ter medo de dizer ao economista, ‘Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que sonhado na sua filosofia’. A tarefa é nada menos que a de resgatar a ciência econômica para as humanidades” (78). Ao se isolar das outras ciências sociais, a economia abandonou o seu nome original, economia política (political economy na literatura clássica) para se chamar economics, no nosso caso ciência econômica.[2]
As aparências de ciência se basearam numa construção teórica que definiu o ser humano, homo economicus, como um agente racional que maximiza de forma individual e calculada as suas vantagens econômicas. As pessoas gostam de se identificar com essa imagem fictícia, lhes assegura uma aura de superioridade, e a ficção pega, mas a verdade é que as nossas decisões são em grande parte determinadas por condições sociais, por grupos aos quais pertencemos, por valores não-econômicos, portanto por dinâmicas cuja compreensão exige, precisamente, o apoio de outras disciplinas. O ser humano simplificado passou a ter comportamentos racionalmente previsíveis. Gera-se assim uma “ciência” que permitiria prever o que acontecerá na economia, com a condição de deixarmos os mercados “livres” para se equilibrarem. É sobre essa premissa não demonstrada, e claramente simplificadora da realidade, que se construíram complexos modelos.
O fato óbvio dos acontecimentos econômicos raramente coincidirem com as previsões, mesmo no caso de desequilíbrios sistêmicos como os da crise de 2008, – “Why didn’t anyone see the financial crisis coming? ”, perguntou a Rainha – é discretamente resolvido com termos como fricções, que dificultariam o restabelecimento de equilíbrios, ou de forma mais geral como efeitos perniciosos das intervenções do Estado. O que permite obviamente jogar a culpa dos erros nos cálculos sobre uma área não-econômica, a política. Como se pudesse haver uma economia não política.
Essa suposta ciência econômica apresenta “uma forte motivação ideológica. Se os mercados se equilibram naturalmente (are naturally self-balancing), não precisam de governos para equilibrá-los. Os governos na realidade, aparecem nesta narrativa como uma das fricções que impedem os mercados de funcionar de maneira otimizada…assim a noção de equilíbrio reforça a visão anti-estado da ciência econômica” (59). A ciência termina assim por se tornar uma construção ideológica, curiosamente na mesma proporção em que se declara científica, portanto isenta de opiniões, apenas presa a fatos. É muito impressionante qualificarmos investimentos nas pessoas como gastos: “Assim, justificamos dinheiro gasto em educação e saúde como meios, em vez de tratá-los como parte do bem-estar, e tão intrinsicamente valiosas. ” (173)
É uma ficção, obviamente, separar a esfera econômica da esfera do poder. “A hostilidade aos monopólios constitui uma saudável tradição. Mas ao modelar o sistema de mercado como um espaço autorregulado povoado por ‘agentes’ atomizados, a economia ortodoxa ignora a estrutura real dos mercados modernos nos quais grandes empresas, plataformas digitais, sindicatos (por vezes), marqueteiros e governos passam a determinar a maioria das decisões (call most of the shots). Assim a maior parte dos economistas minimiza o problema do poder no sistema de mercado” (128). Em vez de apresentar a sua visão como lógica geral do funcionamento da economia, seria melhor os economistas, escreve Skidelsky, “começarem na outra ponta: aceitarem que os mercados em geral não satisfazem, nem podem satisfazer as condições de eficiência que deles se demanda, e identificar aquelas áreas particulares onde funcionam ou podem funcionar” Os mercados eficientes constituiriam assim um “caso especial”. (129)
E se trata sim de resgatar a questão da ética. “Devemos retornar a uma questão central no pensamento pré-moderno, mas posta de lado pela economia ‘científica’: para que serve a riqueza? A ética precisa ser reinserida na base (the ground floor) da economia. Ao tomar os desejos como dados, a economia não apresenta nenhuma crítica quanto à fome humana por acumular riqueza sem limites. Que isso permita aprovar políticas que levam à destruição da espécie humana não seria algo com que alguém que é apenas um economista precise se preocupar. Mas um economista bem formado terá seguramente fazer melhor do que isso. ” (190) “É porque a economia não é uma ciência natural, que a resposta ‘certo’ ou ‘errado’ no caso de um problema econômico é ao mesmo tempo tanto ética e como positiva” (13).
O desafio real que enfrentamos é o desenho de uma metodologia renovada que nos tire da ficção, e permita responder efetivamente aos desafios econômicos, que nunca são apenas econômicos. Trata-se, no conjunto, de assegurar de maneira sustentável o bem-estar generalizado. E aqui, não basta medir o PIB, e se fixar apenas no crescimento. Na parte final do trabalho, Skidelsky enumera os avanços na construção de visões modernas da economia, com autores como os mencionados acima. “É hoje o caso de um repensar radical da metodologia. O economista neoclássico é um conselheiro perigoso para tempos turbulentos, porque promete coisas que mercados não-administrados não podem entregar ” (192). A linguagem simples e direta desse sobrevoo das fragilidades e dos potenciais do estudo da economia ajuda muito, e este pequeno livro vem em bom momento. A economia tem sim de ser repensada. E nós, professores de economia, precisamos repensar o que estamos ensinando.
[1] Traduzo “rente” como “renta”, apesar de não constar no Aurélio, pois não é possível não termos em português o equivalente de “rent”, em inglês, ou de “rente” em francês, diferentes, respectivamente, de “income” e “revenu”. Utilizar “renda” para dois processos profundamente diferentes de apropriação do excedente social tende a confundir. Em português ainda temos “rentismo”, uma aproximação insuficiente, mas “viver de rendas”, como encontramos em alguns personagens de Machado de Assis, apresenta sim o essencial. São pessoas que vivem do trabalho dos outros, ganhos sem contrapartida produtiva. Hoje pode se tratar também de instituições.
[2] A PUC de São Paulo, para dar um exemplo, continua a ensinar Economia Política.
*Ladislau Dowbor é economista e professor titular de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Foi consultor de diversas agências das Nações Unidas, governos e municípios, além de várias organizações do sistema “S”.