Sobre o Estado da Palestina
A luta pela proclamação do Estado da Palestina é longa. Aquela terra – considerada sagrada para bilhões de pessoas no mundo – foi palco de conquistas durante os últimos três mil anos. Diversas civilizações e impérios a conquistaram, em especial Jerusalém. Não pretendo discorrer sobre a história dessas conquistas.
O que é certo dizer é que em poucos momentos os palestinos conseguiram ter seu estado edificado, até porque essa concepção de estado nacional é recente – período pós Vestefália, 1648 – e nessa época a Palestina era ocupado pelo império turco-otomano, que dura oficialmente até 1920. Nesse momento, a região já era ocupada pelos ingleses e franceses, basicamente, as potências imperiais de então. Na chamada Conferência de San Remo foi feito uma primeira partilha do Oriente Médio, ficando a Palestina e o Iraque com a Inglaterra e o Líbano e a Síria com a França.
Mais uma vez, os palestinos não puderam ter seu estado nacional, ainda que tivessem uma administração com certa autonomia. Com o chamado mandato britânico, vai ocorrer uma intensa migração judaica para a região (Aliyah em hebraico), incentivada parte pela própria Inglaterra, parte fruto de perseguições aos judeus na Europa. O resto é história e todos sabemos. A ONU, sob a comoção das perseguições e dos massacres ocorridos na Alemanha nazistas que atingiram em especial os judeus, por pressão do sionismo internacional, acaba por votar o Plano de Partilha da Palestina em 29 de novembro de 1947.
Um povo que vivia milenarmente em suas terras, de uma hora para outra vê arrancado de seu território histórico 54% de seus territórios e entregue a um contingente de pessoas que vieram do mundo inteiro e que nada tinham a ver com aquelas terras. Eram estranhos, alienígenas, forasteiros, usurpadores. Baseavam-se pura e simplesmente em uma lenda bíblica que o seu deus havia lhes prometido aquelas terras. Nada contra que cada deus prometa terras para seu próprio povo, mas não a terra de um povo que já era dono dela! Aliás, Israel baseia-se em quatro grandes mentiras e a maior delas sempre foi “uma terra sem povo para um povo sem terra” (sic).
A votação da ONU foi relativamente apertada. A Organização contava apenas com 57 membros. A única ausência foi a Tailândia. Dos 56 que votaram, 33 foram a favor da Partilha (58,8%), 13 contra e houve 10 abstenções. Interessante registrar que a URSS apoiou a criação e anos depois retirou o apoio. Os EUA se abstiveram. O Brasil, com Osvaldo Aranha, presidia a sessão e votou pela Partilha.
Registro aqui um fato muito interessante. No seu discurso final no Congresso Sionista da Basileia (Suíça), em 1897, Theodor Herzl, líder do movimento afirmou que em até 50 anos eles teriam seu Estado na Palestina. Pois em articulação com o imperialismo inglês, o sionismo cumpriu sua profecia e em 29 de novembro de 1947 a ONU partilhava terras que não lhe pertenciam e criava dois estados, coisa que a Carta das Nações jamais permitiria acontecer.
Desdobramentos da Partilha
A Inglaterra, cumprindo o que anunciara e em comum acordo com o sionismo, retira suas tropas da Palestina no dia 13 de maio de 1948, menos que seis meses da aprovação pela ONU da Partilha. No dia seguinte, o mais destacado sionista daquela época, Ben Gurion, proclama a criação do Estado de Israel. Também daí em diante já sabemos a história. Conforme podemos ver no mapa que ilustra essa matéria, o que era 54% passou a mais de 70% e hoje os sionistas e seu projeto colonial já dominam 80% de toda a Palestina histórica.
Bem, os árabes à época, que compunham a Liga Árabe, eram praticamente apenas o Egito, a Jordânia, o Iraque, o Líbano e a Síria. Seus exércitos tentaram ainda impedir a tomada das terras. Mas, as forças sionistas, muito melhor armadas, preparadas, usando de métodos do terror, acabaram vencendo o despreparado exército árabe. O Estado de Israel era uma realidade. Coube aos árabes negar o tempo todo essa partilha, não reconhecendo o novo Estado sionista.
O primeiro Estado árabe a reconhecer Israel foi o Egito, em polêmica decisão que acabou custando a vida do seu então presidente Anuar El Sadat assassinado em 1981. Visitou Israel em 1977 e em 1979 assinou um acordo de paz, vigente até os dias atuais. Depois disso, apenas a Jordânia reconhece Israel, dos 21 países árabes (fora a própria Palestina que ainda não tem o seu Estado nacional). Ou seja, transcorreram 32 anos da decisão da ONU até que um estado árabe reconhecesse Israel.
Passaram-se 40 anos, mais precisamente em 15 de novembro de 1988, a OLP, Organização para a Libertação da Palestina, em seu histórico Congresso de Argel, quando reunia o chamado Conselho Nacional Palestino, uma espécie de parlamento no exílio, votou o que foi chamado Declaração de Independência e Yasser Arafat foi indicado presidente da Palestina, como a própria ONU passou a chamar a OLP (era membro da Organização como observador).
Dessa votação no parlamento no exílio participaram delegados/deputados de todos os palestinos espalhados pelo mundo, assim como os que viviam nos territórios ocupados. Foram 309 pessoas de todas as correntes e partidos que integram a OLP. Os termos da Declaração de Independência, ao mesmo tempo que proclama o Estado da Palestina, reconhece a existência de Israel.
O resultado da votação foi expressivo: 253 votos a favor, ou 81,87% dos votos, 46 contra, ou 14,88% e apenas 10 abstenções ou 3,23%. Arafat sai fortalecido desse processo, mas em todos esses 25 anos decorridos da proclamação de Independência, Israel e EUA jamais reconheceram o direito dos palestinos terem o seu Estado nacional.
A ONU votou na Assembleia Geral das Nações Unidas em setembro de 2012 a admissão da palestina como Estado não-membro e o resultado foi 138 votos a favor (73,4%), com insignificantes 9 votos contrários ou 4,78% dos votos (EUA, Canadá, Panamá, Israel, República Tcheca e países-ilhas do pacífico, Palau, Micronésia, Ilhas Marshal e Narau). Houve ainda 41 abstenções (21,8%) entre 188 votantes (cinco ausências de 193 estados-membros).
De fato, a reivindicação era de que a Palestina seria o 194º Estado membro da ONU. No entanto, a correlação de forças ainda não permite essa solução. Praticamente todos os países defendem a solução de “dois estados para dois povos”, ou seja Israel teria o reconhecimento de todos os países árabes e do mundo como já é reconhecido, mas os Palestinos ganham, finalmente, o seu Estado autônomo, independente.
Essa votação, ainda que simbólica já que a Palestina é apenas um estado não-membro, status que apenas o Vaticano possuía, mostra uma grande derrota do sionismo e do imperialismo estadunidense. Ficaram isolados. Obama, que faz apenas o que os sionistas decidem, insistiu em “negociação direta entre as partes” (sic). Isso é uma verdadeira falácia. Imaginemos que o seu vizinho invada a sua casa armado até os dentes e tome-lhe 80% de sua propriedade. Ou você chama um terceiro mais poderoso para ajudar-lhe ou negocia “direto” com o ocupante e em condições de completa desigualdade de condições. É como se o oprimido negociasse a sua libertação com os opressores. Por isso, só com a luta os palestinos conquistarão alguma coisa.
A concretização do Estado da Palestina
De meu ponto de vista, estamos longe ainda de termos um Estado edificado com todos os seus direitos. A Palestina não sabe qual é seu território. Não pode ter o seu exército, a sua moeda, não arrecadam impostos diretamente, não possuem nenhum aeroporto com voos regulares. Não existe no mapa. No máximo, vemos dentro do mapa de Israel uma pequena área chamada de “territórios palestinos ocupados”. A primeira vez que fui para a Palestina, entrei por Tel Aviv. Além do interrogatório e transtorno de horas com a polícia secreta, exigi que meu passaporte não fosse carimbado. Até porque não estava indo para Israel, mas para a Palestina ocupada.
Como expliquei em artigo anterior, em SP optamos por criar um Comitê de Apoio à criação do Estado da Palestina. Quase 80 entidades entenderam que é fundamental apoiar a criação desse sonhado Estado da Palestina. No entanto, como estão as coisas hoje no chamado “processo de paz” na Palestina?
Não vou aqui entrar no debate teórico se devemos defender apenas um Estado, chamado “Palestina”, que seria o fim de Israel. Isso é inconcebível na atual correlação de forças de poder no mundo. O imperialismo estadunidense está decadente, mas ainda eles são a maior potência econômica da terra e imbatíveis militarmente. Os palestinos tomaram a decisão de ter o seu Estado em território que eles controlem. Esse assunto tratei em meu último livro intitulado E se Gaza cair… (Editora Anita).
Aqui, temos dito que existem três pontos que são fundamentais nas discussões. São eles: 1. Qual o território deveria ter o Estado da Palestina? 2. Como receber os cinco milhões de refugiados palestinos de volta? 3. Como instalar a capital em Jerusalém?
Como analista internacional, temos que acompanhar o curso dos debates. Mas, sou extremamente pessimista neste caso. Não só pelo fato que a crise na Síria roubou completamente o foco da causa palestina, como o recente golpe da direita na Ucrânia move as atenções do mundo para a Ásia. No entanto, a imprensa noticia quase que diariamente opiniões, seja do governo israelense, seja do presidente palestino Mahmoud Abbas sobre o “andamento das negociações de paz”.
Não vejo nenhuma evolução no processo de paz. Na verdade Israel, ou pelo menos o governo direitista que comando o Estado sionista hoje, não quer nem paz, nem garantir a existência de um Estado da Palestina, mesmo que a ONU e 138 países reconheçam a Palestina nessa condição (com embaixada e tudo mais; dados de novembro de 2012). Quero comentar cada um dos três pontos polêmicos listados acima.
1. Território do Estado – Hoje se toda a Cisjordânia fosse devolvida aos palestinos com a Faixa de Gaza, o novo Estado teria uma extensão de no máximo 22% da Palestina histórica e ainda assim sem ligação por terra entre essas duas áreas. Mas, seguindo a linha de que mesmo com um quinto de suas terras originais, os palestinos aceitassem essa proposta (essa era a área que os árabes controlavam antes da Guerra dos Seis Dias em junho de 1967), surge um problema a meu ver quase intransponível. As colônias e os assentamentos judaicos na Cisjordânia. E uso esses termos sob protesto, pois nada têm a ver com as experiências brasileiras de colônias e assentamentos agrícolas.
Nunca saberemos o número exato. Os dados mais confiáveis dão conta de que existem – oficialmente – 168 assentamentos com 400 mil judeus neles morando. No entanto, fala-se em 250 assentamentos e meio milhão de judeus, neste caso os mais ortodoxos possíveis e armados até os dentes e protegidos pelo Exército de Israel. Nas duas vezes que fui à Palestina vi esses assentamentos. São casas luxuosas, a maioria com piscinas, muros de cinco metros ao redor.
Nunca me esqueço o desmantelamento de apenas sete assentamentos na Faixa de Gaza, feito de forma unilateral pelo general Sharon em 2005 quando primeiro Ministro. A comoção nacional, a resistência dos colonos, o enfrentamento. Ai fico me indagando: que forças hoje tirariam meio milhão de judeus dos 250 assentamentos?
2. Direito de Retorno – A primeira Lei que Israel votou quando de sua proclamação como Estado nacional formado pela ONU foi a chamada Lei do Retorno. Ela diz resumidamente assim: todo e qualquer pessoa em qualquer parte do mundo que professe o judaísmo, se proclame judeu e queira voltar para a Palestina/Israel é imediatamente reconhecida como cidadão israelense, possui cidadania e passaporte desse país e tem todos os direitos.
Isso é sumariamente negado aos donos originais das terras. Milhões de refugiados, seus filhos e netos que nasceram em outros países por mera impossibilidade de viverem em suas terras e se consideram palestinos, não podem jamais voltar para a Palestina.
Como resolver esse problema? Israel tem hoje 8,1 milhões de habitantes, dos quais 1,4 milhões são palestinos-árabes. Ai estão computados apenas os que ficaram dentro do território israelense, mais Jerusalém. Isso significa que 17% de toda a população de Israel é árabe.
Imaginemos que nos acordos de paz a Lei do Retorno valha para os palestinos espalhados pelo mundo, ou seja, qualquer palestinos e seus descendentes nascidos no exílio – diáspora forçada – tenham o direito de voltar e receber a cidadania Palestina. Isso significa 6,4 milhões que somados aos 4,2 milhões que vivem em Gaza e na Cisjordânia totalizariam 10,6 milhões. Um desequilíbrio populacional que deixaria em pânico os fundadores do estado sionista, que ficariam em minoria.
Surge assim, nas mesas de negociação uma proposta alternativa, que seria admitir a volta de um percentual – não há proposta de índice – e os restantes receberiam uma indenização. Aqui surgem as dúvidas: mesmo não tendo direito de fixar residência na Palestina, esses que não voltariam seriam considerados cidadãos palestinos e poderiam visitar as suas famílias seja na Palestina seja em Israel? Se for acordado o pagamento de indenização, que faria esse pagamento? Israel? A ONU? Os países imperialistas? Não se tem resposta alguma a essas questões.
Por fim, o último e não menos polêmico quesito.
3. Jerusalém como Capital – Tanto os palestinos quanto os israelenses praticantes do judaísmo, consideram essa cidade sagrada (além dos cristãos e muçulmanos, claro). O sonho de Israel desde 1948 era ter Jerusalém como capital de seu país, reivindicação essa que nem seu maior apoiador, os EUA, admitem. Sua capital oficial é Tel Aviv.
A parte antiga de Jerusalém, sempre foi majoritariamente árabe e palestina. Lá moram em torno de 1,2 milhões de palestinos. No entanto, praticamente todas as semanas nos chegam notícias de que Israel autorizou a construção de uma nova colônia judaica na parte árabe da cidade.
Como solucionar esse problema? As propostas que acabam aparecendo na mesa dos negociadores é Israel ficar com a parte moderna da cidade e a parte histórica com os palestinos. Isso nos apresenta dois imensos problemas. O primeiro, são as colônias judaicas nessa região chamada também de Oriental. Como desalojar milhares de judeus ortodoxos das suas casas e demoli-las todas? O outro e maior problema é que justamente nesta parte da cidade fica o chamado Muro das Lamentações, que os judeus acreditam que teria sido parte do que restou do famoso Templo de Salomão (a que não se tem registro histórico algum de suas existências, nem do personagem, um dos muitos mitos bíblicos e nem do templo em si).
De nossa parte, apoiaremos o povo palestino e sua liderança qualquer que venha a ser a decisão que eles tomem. Não cabe a nós, do movimento da solidariedade, dizer o que os palestinos devem fazer, mas sim apoiá-los.
Quero finalizar, no entanto, que sigo pessimista sobre a possiblidade de uma paz longa, duradoura, justa que assegure direitos aos palestinos, em especial a do seu Estado soberano, autônomo e independente.
*Sociólogo, professor escritor e arabista. É colaborador do portal Vermelho, da Fundação Grabois e da Revista Sociologia da Editora Escala.