A quase-extinção da face social do Estado
Em 2018, o então candidato da extrema direita ao Palácio do Planalto corria por fora, operando em raia própria, ainda se sentindo bastante escanteado por parte significativa das elites políticas e econômicas de nosso País. Porém, apesar desse isolamento inicial, Bolsonaro conseguiu trazer para sua campanha um personagem importante, capaz de lhe facilitar o necessário livre trânsito no interior do sistema financeiro.
A partir de então, Paulo Guedes converteu-se no “Posto Ipiranga” do ex-capitão e todas as questões relativas a economia que a imprensa ou demais interessados enviavam a ele eram automaticamente direcionadas ao aprendiz de banqueiro. O interessante é que o candidato não sentia o menor constrangimento ao reconhecer em público que não entendia nada do assunto e que seu assessor iria responder a todo o tipo de dúvida apresentada.
A campanha cresceu em intenção de votos e a presença do old chicago boy era encarada como uma espécie de aval junto ao financismo para o desenho futuro da política econômica do eventual presidente. A convivência entre um deputado federal com um passado bastante intervencionista e defensor do Estado na economia e um neoliberal operador convicto a favor dos interesses da banca era, a um só tempo, desafio e incógnita.
A vitória de Bolsonaro veio combinada à entrega de uma imensa fatia de poder para Guedes. A criação de um monstrengo chamado Ministério da Economia parecia ser a confirmação da autonomia para que o mesmo formulasse e implementasse a política econômica da forma que bem entendesse. O superministro passou a ter sob seu estrito comando as antigas e tradicionais pastas da Fazenda, do Planejamento, da Indústria e Comércio e também do Trabalho. Nunca antes da história do Brasil um subordinado de Presidente da República teve tanto poder concentrado em suas próprias mãos.
Guedes & Bolsonaro: da campanha ao Palácio do Planalto
Pois então o ex-assessor do ditador sanguinário no Chile, o general Pinochet, resolveu aproveitar o espaço a ele oferecido para levar à frente seu projeto mestre. Como bom serviçal dos interesses do grande capital financeiro, Guedes se propôs a missão de destruição do Estado brasileiro e do desmonte das políticas públicas em nossas terras. Isso significa encarar sem pudor aquilo que as demais frações de nossa elite quase nunca tiveram a coragem política de fazer de forma aberta e explícita. O primeiro passo seria a desconstrução de todos os elementos previstos na Constituição de 1988 como constitutivos de nosso arremedo de projeto de Estado de Bem Estar Social.
Uma parte desse “serviço sujo” já havia sido colocada em execução pelo governo de Michel Temer e Henrique Meirelles, com a aprovação da EC 95, no final de 2016. Por meio de tal dispositivo incluído no texto constitucional, o Brasil passou a ser o único país no mundo que se propunha a congelar os gastos públicos pelo longo período de 20 anos. Enfim, nem todas as despesas orçamentárias, uma vez que aquelas de natureza financeira permaneciam livres, leves e soltas para crescer como o governo de plantão assim o desejasse. Um verdadeiro tiro no pé em qualquer intenção de projeto de desenvolvimento nacional e mesmo para necessidades mais modestas, como a adoção de medidas anticíclicas em conjunturas recessivas como a atual.
Paulo Guedes se encarregou da Reforma da Previdência redutora de direitos e demolidora do caráter público do Regime Geral da Previdência Social. Em seguida, aprofundou as maldades da Reforma Trabalhista já esboçada pelo governo anterior, destruindo os direitos previstos na CLT e institucionalizando a precariedade e a informalidade como regra “natural” de nosso mercado de trabalho.
PEC da destruição
A etapa atual, à qual se dedica com toda energia e atenção, é marcada por aquilo que a grande imprensa vem chamando de Reforma Administrativa. Mentira! A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 32 não pode ser caracterizada como tal. A leitura da medida nos convence de que ela não se propõe a reformar nada, mas tão somente a destruir as bases constitutivas do Estado brasileiro. Além disso, não cabe qualificá-la como preocupada com esse todo complexo da administração pública, uma vez que seu foco é exclusivamente o aniquilamento dos servidores. O único argumento repetido por Guedes à exaustão é o mantra da crise fiscal. Mas a própria Exposição de Motivos, que acompanha a PEC, reconhece que ela não surtirá efeitos a curto prazo, mesmo na lógica austericida dos cortes e mais cortes.
A lista de absurdos e equívocos presentes no interior da PEC é imensa. A começar pela motivação explicitada no discurso da austeridade, a partir do qual não haveria mais recursos para dar continuidade às despesas com pessoal nos três níveis da administração estatal em nosso País: federal, estadual e municipal. Como sempre faz nessas horas, o governo mente e exibe gráficos com uma suposta explosão de gastos com recursos humanos ao longo dos últimos 12 anos. Teria ocorrido um crescimento “insustentável” de 145%! O detalhe é que o estagiário foi orientado a não corrigir os valores pelos índices de inflação. Um truque típico da malandragem sem nenhum caráter. Assim, a relativa estabilização ocorrida nesse tipo de despesa se transformaria em um crescimento “descontrolado” das rubricas federais (sic).
A PEC introduz de maneira sorrateira um novo princípio jurídico norteador das ações da Administração Pública no art. 37 da CF. Trata-se da “subsidiariedade”, que aparece de forma matreira no teto constitucional e passaria a dar a legitimidade necessária a todo o processo de privatização e aniquilação da administração. Afinal, os serviços públicos, por exemplo, a partir de sua adoção como fundamento jurídico, deverão ser objeto de produção e oferta por parte do capital privado prioritariamente. De acordo com a nova redação, ao Estado caberia apenas um papel suplementar e subsidiário. Ou seja, no limite estaria pavimentada a via para a sua própria quase-extinção.
Estabilidade do servidor: garantia ao cidadão
A PEC retrocede para o período anterior à nova Constituição e elimina a grande conquista do Regime Jurídico Único (RJU). Sob o discurso falacioso da necessidade de modernizar o Estrado brasileiro, a proposta introduz a possibilidade de constituição de um novo contingente de servidores para União, Estados e Municípios. Assim, os novos contratados não estariam submetidos às caracterizações republicanas essenciais da força de trabalho no serviço público, tais como o concurso de acesso, a estabilidade, os salários condizentes com as tarefas exigidas, entre outros elementos.
Ora, está mais do que evidente que a estabilidade não é privilégio do servidor, mas sim uma garantia para a população de que o serviço público não será descontinuado por mero capricho ou interesse do governante de plantão. Trata-se de um instituto que assegura a manutenção de políticas públicas como educação, saúde, previdência, saneamento, segurança pública, entre tantas outras. A solução para os casos de eventual irregularidade cometida ou ineficiência comprovada passa pela necessária regulamentação da avaliação de desempenho.
No entanto, ao contrário da narrativa construída pelo governo, a medida deixa de fora de sua abrangência as carreiras e categorias que mais pesam quando se trata de combater altos salários, privilégios e falta de transparência. Assim os integrantes do Poder Judiciário, do Ministério Público e os militares, por exemplo, não estariam subordinados às novas regras da flexibilidade destruidora.
PE do autoritarismo e da corrupção
A PEC passa a conferir poderes extraordinários ao Chefe do Executivo. De acordo com o texto apresentado, o Presidente da República passa a ter competência para criar e extinguir todos os tipos de órgãos de sua esfera de administração pública, eliminando a atual necessidade de aprovação pelo poder legislativo. Assim, bastaria uma canetada de Bolsonaro para que as universidades que tanto lhe incomodam sejam eliminadas. O mesmo destino pode ser conferido aos órgãos que apresentam informações que lhe desagradem, como o IBAMA, o INPE ou aqueles que se encarregam de ações contra o trabalho escravo. A PEC retroage quase quatro séculos, inspirada no dito atribuído ao absolutismo do Rei Luis XIV da França: “O Estado sou eu!”.
Imaginemos agora o que ocorreria em cada um dos 5.570 municípios, nos 26 Estados e Distrito Federal, além do governo federal, caso tais intenções fossem transformadas em realidade. Se o Chefe do Executivo passasse a contar com o poder de demitir os funcionários a seu bel prazer, estaríamos frente a uma completa degradação da qualidade dos serviços públicos oferecidos à população, em razão da alta rotatividade de pessoal e dos critérios obscuros e subjetivos para sua contratação. Esse é o caminho para institucionalizar pelo Brasil afora a maneira pela qual a família Bolsonaro sempre pautou sua relação com os recursos públicos. São os esquemas das ilegalidades conhecidas por “rachadinhas”, o mandonismo no trato com os servidores e o manto de “naturalidade institucional” para os métodos de apropriação privada de dinheiro público com a conivência de seus subordinados. Em poucas palavras: trata-se da institucionalização da corrupção.
O Congresso Nacional só tem uma alternativa para a tramitação da PEC 32. Deve rejeitá-la. Caso haja realmente algum interesse no interior do Legislativo em promover melhorias e aperfeiçoamentos na administração pública, a pauta será muito bem-vinda. Há bastante o que fazer se a intenção for de fato aquela de tornar o Estado brasileiro mais útil e competente na sua relação com o conjunto dos setores sociais. Mas a estratégia deveria ser oposta à da PEC 32. Não se trata de fazer terra arrasada da administração pública, mas de torná-la verdadeiramente transparente, eficiente, republicana e democrática.