Astrojildo e a última visita a Machado de Assis
Já há dias Astrojildo Pereira lia aflito os jornais que traziam as notícias do agravamento do estado de saúde de seu escritor predileto: “Machado de Assis cujo estado continua desesperador (…)”. Era a segunda metade do mês de setembro de 1908. Astrojildo morava em Niterói, estava para completar dezoito anos e conhecia toda a obra de Machado publicada. Sabia de cor o endereço e acompanhava o romancista pelos jornais, lendo artigos e até desenvolvendo e solucionando os problemas de xadrez que o grande escritor publicava nos periódicos.
À noite do 27 de setembro, Astrojildo leu que a piora da saúde de seu ídolo sobrepunham demais às chances de melhora, o Bruxo, como Machado era conhecido, estava morrendo. No fim da manhã do dia 28, Astrojildo saiu de casa sem dizer nada à família. Comprou os jornais, foi para a barca da Cantareira e atravessou a Baía da Guanabara. Desembarcou e seguiu para a Rua Cosme Velho no bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro.
Fachada da casa de Machado de Assis (Foto: Arquivo)
Astrojildo, muito timidamente, bateu à porta. Tão timidamente que foi necessário bater mais de uma vez. Foi recebido por um conjunto de outros escritores que ele também conhecia e admirava. Entre eles Euclides da Cunha, Mário de Alencar e José Veríssimo. Foi perguntado: “Da parte de quem?” e, entre nervoso e tímido, respondido “É desnecessário dizer. Ninguém me conhece, nem o dono da casa. Gostaria de ver o enfermo. Ou deem-me notícias.”
Todos dentro da casa conheciam-se e não conheciam o rapaz. Diante desse impasse houve um burburinho que chegou ao ouvido do doente. Este se encontrava num quarto improvisado no térreo da casa, pois há tempos não podia subir escadas. Era cuidado por pessoas próximas, amigas e vizinhas que o admiravam. Ao ouvir as recusas e aceites, pela entrada do rapaz, Machado pediu que o conduzissem até os pés da cama.
Calmamente, Astrojildo se aproximou da cama, debruçou seu corpo como quem fosse dar um beijo na testa, mas o escritor o afastou por um gesto silencioso com a mão. O garoto pegou a mão do ídolo, ajoelhou, beijou-a como um afago de filho e segurou-a em seu peito por alguns segundos. Quase se formou um sorriso, uma expressão de agradecimento, naquele rosto já bem enrugado. Olharam-se. Não foi dita uma palavra que quebrasse o silêncio da cena assistida por todos os presentes emocionados.
Astrojildo levantou, devolveu a mão de Machado e saiu.
À porta, José Veríssimo perguntou seu nome. Astrojildo respondeu e saiu.
Horas depois, já no dia 29, partia o “Bruxo do Cosme Velho”, o fundador da Academia Brasileira de Letras, o maior escritor nascido em terras brasileiras. A comoção geral que assolava o país entre necrológios, artigos, cartas para os jornais teve num artigo sua expressão, talvez, mais marcante das últimas horas de Machado de Assis: “A última visita”, de Euclides da Cunha no Jornal do Commercio, do dia 30. (Veja reprodução ao final)
Euclides afirmou ter levado mais de três horas para redigi-lo e num parnasiano tão característico daqueles dias, remonta a história mas não diz o nome do “anônimo juvenil”.
Astrojildo se tornou um dos maiores nomes do anarquismo brasileiro, rejeitou essa ideologia, se tornou marxista, fundou o Partido Comunista do Brasil, conheceu Stálin, foi dirigente da III Internacional. Num intervalo forçado de sua militância foi vendedor de frutas, seguindo a carreira do pai. Nunca mencionou aquele fim de tarde na casa do grande escritor.
Mas a biógrafa de Machado de Assis, a talentosa Lúcia Miguel Pereira, amiga de Astrojildo, foi a primeira pessoa para quem ele contou a história. No seu livro “Machado de Assis – estudo crítico e biográfico”, de 1936, foi revelada a identidade daquele jovem na página 325 da primeira edição.
Como outros eventos de sua vida, Astrojildo não falava muito desse dia com o escritor preferido. Esse momento foi lembrado outra vez durante o Congresso da Associação Brasileira de Escritores, no Teatro Municipal de São Paulo, em 1945; quando Oswald de Andrade apontou Astrojildo, diante daquela plateia com centenas de escritores e intelectuais, e disse: “Está aqui, pessoalmente, o menino que beijou por nós todos a mão agonizante de Machado de Assis”.
A paixão pela literatura e por Machado de Assis nunca abandonou Astrojildo. Octávio Brandão, outro dirigente comunista histórico, considerava Machado um niilista. Por isso fez diversas provocações a Astrojildo em razão de sua predileção por aquele escritor. Não foram poucas as discussões entre os dois por conta desse tema. Em 1956, Astrojildo publicou seu livro “Machado de Assis – ensaios e apontamentos avulsos” onde constam, dentre outros, dois textos importantes de Astrojildo sobre Machado: “Romancista do Segundo Império” e “Pensamento dialético e materialista”.
Meses antes de Astrojildo Pereira falecer, Francisco de Assis Barbosa publicou no Correio da Manhã relembrando aquele dia no Cosme Velho. História, com um momento mágico, que Euclides da Cunha sintetizou como;
“Naquele momento o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo – no meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis, aquele menino foi o maior homem de sua terra.”
*Fernando Garcia de Faria é historiador, mestrando em História Econômica na USP, coordenador do Centro de Documentação e Memória (CDM) da Fundação Maurício Grabois e integra o Conselho Editorial da Editora Anita Garibaldi e o Conselho Consultivo da Revista Princípios.
Foto de capa – Reprodução: PEREIRA, Astrojildo. MACHADO DE ASSIS: Ensaios e Apontamentos Avulsos. Brasília: Fundação Astojildo Pereira, 2003.
Artigo de Euclides da Cunha publicado na Renascença (Foto: Arquivo)