A primeira prestação de contas do presidente Nicolás Maduro perante a Assembleia Nacional venezuelana esteve marcada pela lembrança de seu padrinho político, Hugo Chávez. O que parecia uma menção como tantas outras acabou ganhando sentido com as novidades anunciadas. O governante venezuelano decidiu aprofundar a aposta econômica idealizada pelo líder bolivariano, deixando de lado qualquer concessão pragmática esboçada no início de seu mandato. “Construir esse modelo será a tarefa principal da revolução nos próximos cinco anos, mas a tarefa principal da Nação será construir um novo modelo de paz”, disse ao final de seu pronunciamento.

Esta última frase foi talvez uma das mais esperadas da noite. Enquanto Maduro avançava em seu copioso discurso – outro modo de homenagear seu falecido antecessor, que falou em 2012 sem parar na mesma tribuna durante nove horas ‒, o impacto causado pelo assassinato da atriz Mónica Spear e de seu marido parecia já ter se diluído na cúpula do Governo. Maduro pediu à sua ministra de Comunicação, Delcy Rodríguez, uma revisão a fundo da programação dos canais assistidos na Venezuela. O Governo atribui uma parte importante do aumento da violência no país à programação televisiva. Essa determinação precedeu uma promessa feita pela qual Maduro prometeu se empenhar. “Este ano será o começo de um plano de pacificação social. Temos de reconstruir a Venezuela a partir dos valores sagrados da paz e do respeito à vida.”

Em 4 de fevereiro, quando será comemorado o 22º. aniversário da intentona golpista que projetou Hugo Chávez, o vice-presidente da área social, Héctor Rodríguez, e o vice-presidente executivo, Jorge Arreaza, deverão apresentar ao presidente um plano concreto para reduzir os índices de criminalidade. Trata-se de uma oferta que busca reverter a surra que o Governo levou como consequência do homicídio de Spear. A linha de opinião prevalecente sugere que a insegurança tem aumentado no país em virtude da cessão do princípio de autoridade.

Foram os anúncios econômicos, porém, que atraíram o maior interesse dos venezuelanos. Até esta quarta-feira o Governo não havia autorizado o uso dos cartões de crédito para compras pela internet. Em um país tão consumista como a Venezuela, o assunto despertou inquietação. Esperava-se então o anúncio de uma desvalorização que acabou não vindo. Ou veio de forma disfarçada, conforme o parecer de alguns economistas que comentavam o pronunciamento de Maduro pelas redes sociais. A Comissão de Administração de Divisas (Cadivi) foi extinta. Todo o trabalho de alocar dólares subsidiados pelo Estado será assumido pelo Centro Nacional de Comércio Exterior, a ser presidido por Alejandro Fleming. O câmbio oficial de 6,30 bolívares por dólar será mantido ao menos neste ano.

O governo pensa em fortalecer o Sicad, um segundo mecanismo criado em 2013 para distribuir dólares para setores econômicos específicos, por meio de leilões semanais que geralmente movimentam em torno de 100 milhões de dólares. A taxa de câmbio nessa modalidade é quase o dobro da oficial, 11,30 bolívares por dólar. Os analistas consideram que, ao fortalecer o Sicad, o governo fez uma desvalorização implícita, porque a maioria das importações será faturada por essa taxa mais alta.

Não foi a única mudança crucial para entender por onde caminha a economia local. Maduro anunciou também a fusão dos ministérios dos Bancos Públicos e de Economia. O grande atingido é o pragmático ministro de Finanças, Nelson Merentes, que voltará a presidir o Banco Central da Venezuela. Nos primeiros meses do novo governo, Merentes foi partidário de flexibilizar o controle cambial, convidou o empresariado para o diálogo e prometeu atender às suas solicitações de divisas a cotações preferenciais. Parecia assim passar à frente de um dos ideólogos da política econômica chavista, o titular do Planejamento, Jorge Giordani. Por fim, a influência de Giordani no gabinete se mostrou mais forte. Prosseguirão as importações para o Estado à taxa de 6,30 bolívares por dólar, e haverá um controle férreo das importações do setor privado e uma maior impressão de dinheiro sem lastro. Maduro pareceu vingá-lo ao mencioná-lo em duas passagens de seu discurso e ao citar seus trabalhos acadêmicos. Giordani sorria. “Equivocaram-se os inimigos do gigante [um dos tantos eufemismos usados para aludir a Chávez]. A revolução bolivariana não desapareceu com sua morte”, acrescentou.

A menção a Chávez foi quase uma constante, mas Maduro tampouco perdeu a chance de mandar outras mensagens que revelam as contradições do interior do movimento que lidera. Em um trecho, criticou a ultraesquerda abrigada dentro do projeto bolivariano, a qual considera que o presidente adotou uma corrente restauradora, longe do socialismo idealizado por Chávez. “Os dogmas só serviram para infringir derrotas ao movimento popular”, disse o governante em resposta a essas observações. Pareceu uma clara alusão ao coletivo Grão de Milho, que denunciou a falsificação do “Plano da Pátria”, o último programa de governo redigido pelo comandante-presidente antes de ganhar as eleições de 2012. Talvez essas críticas internas demonstrem as amplas interpretações que o legado do líder permite. Por um lado, Maduro anuncia que não entregará mais dólares a empresas fantasmas; por outro, também está consciente de que é impossível ser tão rigoroso, e que um ou outro importador acabará recebendo divisas subsidiadas para em seguida revendê-las no mercado negro. Nos próximos meses, ele estará sujeito a pagar um alto custo político se mantiver a obsessão de centralizar todas as importações e substituir o trabalho que cabia ao setor privado.

A ofensiva econômica – a fiscalização e eventual confisco de mercadorias para arrematá-las a preços fixados pelo Governo – continuará nos próximos meses. O comércio deverá ajustar as margens de lucro. Para isso, Maduro poderá lançar mão de uma Lei de Preços Justos, que aprovará com os poderes legislativos recebidos do Parlamento e que estabelecerá um teto de 30% nos ganhos; de uma superintendência de preços justos e dos fiscais que o Estado contratará para vigiar até o último palmo do país. “Tenham a certeza de que fiscalizaremos todos, cedo ou tarde”, avisou o presidente.

Publicado em El País Brasil