NOS SERTÃO DO BRASIL-Parte II

CENA TÍPICA DA SECA

Cuma eu tava dizeno proceis, a seca naquela ocasião tava dimais da conta. Nóis rezava pra São Pedro fazê chovê, pruquê a estiage era grande e a percisão era muita! I, pra num dizê que num inziste uma sem dois nem dois sem treis; veio a onda de tifo, que eu já falei aqui. Naquele tempo, nóis da roça ficava muito longe da cidade i num tinha condução pra levá a gente numa hora de percisão, das emergência de doença. Naquelas parage, só tinha dois médico dotô que pudia atendê nóis. Na verdade um dêis só ficava na cidade (ele era cheio de bosta de galinha); o ôtro, bão que nem um pão, atendia nóis direto nas fazenda. Ele sempre ía n aminha casa pra mode filá bóia, mai nóis tudo gostava dele, principarmente pruquê ele era dotô, mai era simpres. Simpres e bom de coração: ele quage num cobrava de ninguém; noís dava um leitãozinho, uma galinha gorda, uma réstia de áio, i anssim por diante. Naquêis tempo, os remédio era feito nas própria farmácia. E era tanta gente com tifo, que o farmacêutico num conseguia de dá conta de tanto remédio.
Me alembro que nessa ocasião, esse médico apareceu lá na fazenda, pra mode assuntá si o povo tinha cuntraído tifo. Pra isso ele visitava as casa da colonha. Eu fui dijunto com o dotô e meu pai, visitá o Simão Bilu, que tava duente. O Simão Bilu trimia de frio! O corpo dele tava quente que nem tição e sentia pisadêra i dôr; muita dôr! O dotô disse que ele táva entrano em “coma”. Num sabia o quê era coma, mais fiquei assuntano; achava que era os estrimilique da morte! O dotô abriu a mala e pegô uns vidro com uns pózim colorido e pois encima da mesa. Passô arco na mesa da sala e forrô com esparadrapo. Em cima do esparadrapo pois um pratinho donde misturô uns poquim dum e do ôtro. Ele disse pro meu pai que era um purgante forte, que ele ia intentá sarvá o Simão Bilu. O dotô chamô Sá Luciane pra espricá que o remédio tinha mercúrio. Deu o remédio pro Simão Bilu: dispois de uma meia hora, o Simão Bilu abriu os zóio! O dotô falô pra ele drumí. I ele drumiu mêmo! O dotô avisô Sá Luciane que quando o Simão acordasse, désse comida prêle, mais tinha uma coisa: – num pudia dá sár prêle, de jeito e manêra.
-Nada de sal, entendeu Sá Luciane?
–Intendí, disse ela!
Aí o dotô lavô as mão cum sabão de soda e dispois dispejô árco na mão e abanô a mão, pra móde secá.
Logo que saímo da casa do Simão Bilu, o dotô falô pro meu pai que us remédio do Simão Bilu devia de dá resurtado i que ele ia ficá bão logo. Meu pai preguntô sobre o caso de num dá sár na cumida do pobre. O dotô espricô que o sár fervia quando misturasse cum mercúrio da receita do purgante, adonde formava um veneno que matava até cavalo.
Dispois que saímo da casa do Simão Bilu, nóis fumo percorrê a colonha de casa em casa, pra móde vê se tinha arguém duente. Adispois, o dotô foi armoçá cum nóis. Quando acabemo de chegá em casa, minha mãe já começô a pô a mesa do armoço. Curioso, eu vortei na colonha enquanto que o dotô i meu pai armoçava e vi que o Simão Bilu tinha miorado tanto, que tava até tocano o pandero africano que ele tinha. Vortei em casa numa vula i falei isso pro dotô.
O dotô ficô feliz da vida cum a notiça. Mai, logo que acabemo de armoçá, chegô um moleque da colonha, meu amigo. Ele chamô o dotô i foi logo dizeno que o Simão Bilu tinha morrido! Saímo nóis trêis mais o moleque na maió vula, i fumo correno direto pra casa do Simão Bilu, que agora tava cheia de gente triste. Quando cheguemo o dotô perguntô pra Sá Luciene:
-A senhora deu comida sem sal para ele, não deu?
-Num regulei de dá sár ninhum, disse a Sá Luciene. Só ponhei uma pontinha de cavo de cuié no macarrão do pobre. Foi só um tiquinho, que nem carecia de tê dado!
Do zóio do dotô e do meu pai caíro as lágrima. Os dois se oiaram e me chamaram pra saí dali com eis. As carpidera i a tiradêra de terço, iam dá o úrtimo banho no Simão Bilu. Ainda escuitei o dotô falano pro meu pai que sentia muito que a medicina tava tão atrasada; que num inzistia remédio pro tifo. Do meu pai escuitei u contraponto:
-Dotô, cum atraso ô cum avanço da medicina, o que mais me entristece é que a medicina não cura a inguinorânça do povo!

-Eu, ACAS, levei uns trinta ano pra intendê o quê meu pai quis dizê!

 

 

 Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. É natural de Cravinhos-SP. É Físico, poeta e contista. Tem textos publicados em 7 livros, sendo 4 “solos e entre eles, o Pequeno Dicionário de Caipirês e o livro infantil “A Sementinha” além de três outros publicados em antologias junto a outros escritores.