Os anseios e sonhos de nossa (ainda) adolescente cooperação internacional
A adolescência traz muitas ansiedades, mas também muitos sonhos. É um momento crucial para alicerçar nossas escolhas de vida e por isso de grande reflexão, experimentos, ousadia e aprendizado. A cooperação internacional brasileira passa por esse belo momento em que esforços de autoconhecimento vão pouco a pouco revelando com mais clareza suas características e vicissitudes.
Muita gente ainda pensa no Brasil como um país recipiente da ajuda internacional, mas ele é também e cada vez mais um doador da cooperação internacional. Apesar de a história do país como “doador” não ser nova, já que desde os anos 1950 o Brasil vem ajudando outros países e outras populações, só agora chegamos à adolescência do nosso processo histórico nesse tema. Nos últimos cinco anos, o volume de recursos da cooperação brasileira aumentou significativamente. Enquanto em 2005 o montante era da ordem de R$ 633 milhões,1 em 2010 já havíamos atingido o patamar de R$ 1,6 bilhão – aumento de mais de 150% em cinco anos. Embora o montante ainda não seja tão expressivo para um país do porte do Brasil, esse aumento e a nova situação geopolítica do país vêm despertando grande interesse e reflexão de pesquisadores, ONGs, outros doadores internacionais, parlamentares e principalmente do próprio governo brasileiro.
Recentemente o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e a Agência Brasileira de Cooperação (ABC) lançaram a segunda edição do estudo sobre a Cooperação Brasileira para o Desenvolvimento Internacional (Cobradi). O documento traz dados da cooperação internacional brasileira em 2010, dando continuidade à publicação anterior, que cobriu os dados do período de 2005 a 2009. Esses estudos são as primeiras tentativas substantivas de mapear o escopo da cooperação internacional brasileira do governo federal.
O primeiro grande aprendizado desse exercício de autoconhecimento liderado pelo Ipea foi perceber a fragilidade das informações e as dificuldades metodológicas de recolher e analisar os dados. A própria definição do que deve ou não ser considerado cooperação internacional continua sendo tema de grande discussão e debate dentro do governo. A inclusão ou não de investimentos subsidiados como cooperação foi uma das principais causas da demora de quase dois anos na publicação do último relatório do Ipea/ABC.
Outra dificuldade metodológica é que, diferentemente de outros países como o Reino Unido, a cooperação brasileira não é centralizada em um único órgão. Apesar das atribuições específicas da ABC de coordenar a cooperação técnica brasileira com países em desenvolvimento, para realizar esse último estudo o Ipea precisou levantar informações junto a cerca de 90 órgãos e instituições do governo federal que fazem cooperação internacional muitas vezes de maneira autônoma.
É também interessante analisar as relativas oscilações na alocação desses recursos. Por exemplo, o peso relativo dos gastos com os organismos internacionais caíram de 78% em 2005 para 34% em 2010. De outro lado, houve um aumento vertiginoso da ajuda humanitária, que subiu de R$ 1,4 milhão em 2005 para R$ 284 milhões em 2010, elevando seu peso relativo de 0,3% para 17,5%. A ajuda a operações de manutenção da paz também pulou de R$ 147 milhões, ou 25%, para R$ 585 milhões, ou 36% do total da cooperação no mesmo período.
A análise da alocação geográfica do relatório de 2010 mostra que o Haiti recebeu sozinho quase 50% de toda a verba de cooperação internacional destinada à América Latina, enquanto na África, embora cerca de cinquenta países recebam recursos da cooperação brasileira, quase 60% dos valores destinados ao continente são distribuídos entre três países.
Ainda são escassas as análises qualitativas sobre a cooperação internacional brasileira, por isso não podemos avaliar quão efetiva ela é ou deixa de ser. Se na área da saúde o Brasil é reconhecido internacionalmente pela cooperação técnica fornecida a países da América Latina e África no enfrentamento à epidemia de HIV/aids, outros programas são mais controversos. O programa ProSavana, por exemplo, resultado de uma cooperação triangular com o Japão e Moçambique e sob a liderança da Embrapa, que supostamente tem como objetivo melhorar a competitividade do setor rural da região do Corredor de Nacala, vem sendo duramente criticado pela sociedade civil moçambicana2 e brasileira3 por impor o modelo de cultivo adotado pelo agronegócio no cerrado brasileiro, favorecendo as empresas brasileiras em detrimento dos pequenos agricultores moçambicanos.
Baseado em sua experiência de décadas como recipiente da cooperação internacional, o Brasil tem a ambição de ser um doador diferente dos doadores mais antigos e de origem colonial do Norte. Como um adolescente típico, o país já demonstra o desejo de se destacar e quebrar paradigmas, adotando conceitos próprios e reforçando o modus operandi diferenciado da chamada cooperação Sul-Sul. O objetivo é construir um elo baseado em relações de parceria e pautado pela demanda concreta dos países recipientes e pelo respeito à soberania dos países parceiros. Apesar de existir um consenso quanto ao mérito dessa proposta, ainda é muito cedo para saber se na prática nossa cooperação vem exercitando e aplicando esses valores de forma efetiva e qual tem sido o verdadeiro impacto de nossa cooperação.
Está longe de ser trivial a tarefa de ser um doador internacional. Balancear os interesses nacionais e os dos países e populações recipientes, desenvolver sistemas legítimos e eficientes de participação que reflitam as variadas visões de uma gama enorme de stakeholders nacionais e internacionais, construir instituições nacionais capazes de lidar com as burocracias e culturas institucionais de outros países ou ter dados sólidos para subsidiar uma análise robusta e transparente de nossa cooperação não são tarefas fáceis.
Estamos longe de ter uma “P”olítica de cooperação internacional consolidada, e pesquisas como as do Ipea/ABC, de vários pesquisadores acadêmicos e de ONGs são fundamentais para informar o desenvolvimento dessa política. Entramos no processo de amadurecimento de nossa cooperação internacional num período muito rico de mudanças geopolíticas internacionais. Ser adolescente neste momento nos dá a possibilidade e a liberdade de sermos ousados e até mesmo instigarmos e fomentarmos uma necessária revolução global no campo da cooperação internacional para além da lógica colonial e nacionalista das origens dominantes da cooperação internacional. Espero que nosso novo ministro das Relações Exteriores, Luiz Alberto Azevedo, aproveite essa grande oportunidade ampliando a transparência dos dados da cooperação internacional brasileira e estimulando o debate amplo e aberto com a sociedade sobre as práticas adotadas e os rumos de nossa cooperação.
Ana Toni é economista, sócia-fundadora do Gestão de Interesse Público e membro do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI).
1 Ipea/ABC, “Cooperação brasileira para o desenvolvimento internacional: 2005-2009”, Brasília, 2010.
Publicado em Brasil no Mundo