O peso de Libra
Marcado para 21 de outubro, o leilão do campo de Libra, o primeiro a ser licitado na área do pré-sal, promete render 15 bilhões de reais e muita dor de cabeça a Brasília. Nos últimos dias, o Brasil assistiu a uma mostra do que promete vir pela frente, com os ânimos inflamados à direita e à esquerda.
A ala pró-mercado critica o governo por uma postura “excessivamente intervencionista”, “anticompetitiva”, que teria afastado da disputa parcela das maiores petrolíferas privadas do planeta. A desistência das americanas ExxonMobil e Chevron e das britânicas British Petroleum e BG Group serviu inclusive para reforçar o discurso pessimista em relação às concessões de infraestrutura.
Os mercadistas consideram ineficiente a Petrobras ser obrigada a operar em todos os campos, com no mínimo 30% do consórcio, e o Estado controlar o ritmo da exploração, por meio da Pré-Sal Petróleo S.A. Também é malvista a concessão pelo regime de partilha, pelo qual o petróleo extraído segue estatal. Além de receber o bônus de assinatura, o Estado receberá royalties, tributos e uma parcela da produção em petróleo, outra diferença em relação ao regime de concessões, em vigor desde 1997.
Pela ótica da esquerda, as críticas vão em direção oposta. Representantes no Congresso, lideranças de movimentos sociais e de centrais sindicais, em carta aberta a Dilma Rousseff, pediram a suspensão do leilão. Formuladores da política energética do governo Lula, caso do economista Carlos Lessa, ex-presidente do BNDES, e do engenheiro Ildo Sauer, diretor do Instituto de Energia e Ambiente da USP e ex-diretor da Petrobras, também se manifestam contra.
Trata-se, dizem, de entregar de bandeja o patrimônio nacional a companhias estrangeiras que se beneficiarão de investimentos da Petrobras para mapear e testar a viabilidade econômica de Libra. Segundo eles, os 50 bilhões de dólares de investimentos necessários seriam recuperados em apenas dois anos de atividade plena do campo. E que resultará, segundo Magda Chambriard, da Agência Nacional do Petróleo, em uma renda para o País de cerca de 900 bilhões de dólares ao longo de três décadas de exploração, incluídos os royalties e a parcela em petróleo. Um montante equivalente, talvez um pouco menor, seria dividido entre as demais empresas participantes do consórcio no período.
“O fato marcante é o açodamento do governo em fazer o leilão, mesmo diante do caso de espionagem contra a Petrobras”, diz Carlos Lessa, que em companhia do senador Roberto Requião, Sauer e sindicatos de funcionários da Petrobras preparam uma ação na Justiça para barrar a iniciativa. Lessa viu na saída das majors uma manobra orquestrada em sintonia com o lobby dos EUA para derrubar os preços do petróleo no mercado internacional.
“Não podemos esquecer que os EUA não reconhecem o direito de o Brasil explorar a plataforma continental onde está o pré-sal, assim como a África. E por isso reativou a IV Frota, orientando a sua diplomacia no Atlântico Sul na mesma direção do que é feito no Atlântico Norte e Oriente Médio.” No horizonte de Lessa, a possibilidade de o País entrar para a Opep tiraria o sono dos EUA, envolvidos na produção do chamado shale gas (gás de xisto) e na quebra do monopólio da Pemex, a estatal mexicana, em andamento.
No xadrez da geopolítica do petróleo, a China joga um papel decisivo e, por isso, as estatais chinesas aparecem como as candidatas com maiores chances no leilão. O país asiático é o segundo maior consumidor de combustíveis fósseis do planeta, atrás apenas dos EUA. E ocupa a mesma posição no ranking global dos importadores: precisa comprar 5,5 milhões de barris ao dia para fazer frente à procura. Diante da dependência crescente, o mais recente plano quinquenal do governo chinês orienta as petroleiras locais a buscar aquisições no exterior. Apenas em 2011, as estatais chinesas investiram 20 bilhões de dólares.
Do trio de chinesas concorrentes em Libra, a Sinopec parece a candidata de maior potencial. Com 1,6 milhão de funcionários e após sucessivos negócios em outros países, suas reservas comprovadas de petróleo saltaram de 309 milhões de barris, em 2009, para 641 milhões, em agosto deste ano, depois da aquisição de 33% de uma petroleira egípcia.
Há três anos a Sinopec amplia a sua presença no Brasil. Em 2010, adquiriu 40% da operação da espanhola Repsol, parceira na disputa por Libra. No ano seguinte, comprou 30% dos ativos no país da portuguesa Galp Energia. A parceria representou a entrada da companhia chinesa na exploração do pré-sal.
Em 2009, o governo chinês emprestou 10 bilhões de dólares à Petrobras, e como contrapartida a Sinopec garantiu o fornecimento de óleo cru até 2019. Em 2010 selou um acordo com a estatal brasileira para construir refinarias. E, em agosto deste ano, uma viagem de dois dias da presidenta da Petrobras, Graça Foster, a Pequim, especula-se, teria selado um acordo para a oferta conjunta no leilão.
Quanto os chineses dispõem para disputar o pré-sal? A rigor cerca de 3 trilhões de dólares, o montante das reservas estrangeiras disponíveis no caixa do governo. Um motivo mais que justificável para espantar as majors privadas, que, diga-se, não vivem seus momentos mais gloriosos. Na década de 1960, detinham 84% das transações internacionais com petróleo. Hoje, as estatais controlam 92% do mercado.
Diante do interesse estratégico, avalia Alexandre Szklo, professor de planejamento estratégico da Coppe-UFRJ, as estatais chinesas virão com todo o apetite. “Elas aparecem como fortes candidatas pelo viés da segurança energética com que o governo olha para as reservas. E a taxa de retorno não será pequena.”
Na ponta do lápis, a remuneração esperada deverá se aproximar da registrada atualmente no campo de Lula, perto de 25% ao ano. Mais questionável, avalia Szklo, é a pertinência de realizar o leilão em outubro, posto que a Petrobras tem os blocos da cessão onerosa (perto de 5 bilhões de barris) a desenvolver.
Também seria duvidosa a capacidade de a indústria brasileira acompanhar o desenvolvimento da exploração a contento e conforme as regras de conteúdo local do pré-sal. Uma medida do esforço exigido, diz Szklo, é o aumento esperado do número de unidades flutuantes de produção e transferência (FPSO, em inglês), o módulo básico para a extração de petróleo no mar. Hoje são cerca de 160 em operação no mundo, das quais 34 no litoral brasileiro. Até 2020, prazo curto para o setor, o País precisará de mais 38 em operação. Não será de se estranhar, considera o especialista da Coppe, se o governo baixar o grau de exigência para facilitar as importações de equipamentos.
Segundo Sauer, da USP, melhor seria cancelar o leilão e deixar a exploração a cargo exclusivo da Petrobras. “Será preciso coordenar o ritmo de produção, mas no modelo de partilha prevalecerá a lógica microeconômica da pressa visando o lucro, que se choca com a lógica estratégica de uma política para o setor, decisivo para o desenvolvimento do País. As reservas de Libra podem ser muito maiores do que os 12 bilhões de barris, e ninguém tem condições de estimar isso no momento.”
Em outra linha de análise, o economista Demian Fiocca, ex-presidente do BNDES e em linhas gerais a favor do modelo adotado, argumenta que talvez fosse o caso de alterar a forma de participação da Petrobras, para evitar a sobrecarga da empresa, descapitalizada pela política de contenção dos preços dos combustíveis. “O que garante uma maior participação do interesse público, no limite, é o direito de a Petrobrás participar, não necessariamente a obrigação de operar tudo”, argumenta (a íntegra da entrevista pode ser conferida AQUI). “A empresa poderia escolher e isso permitiria ao País não retardar o desenvolvimento do setor simplesmente porque é grande demais para ser desenvolvido por uma empresa só.”
O governo, por sua vez, tem reafirmado a disposição para levar adiante a licitação. “Consideramos que será um passo importantíssimo para a entrada do Brasil na área de produção de petróleo e exportação que se inaugurará nos próximos anos”, afirmou Dilma Rousseff, durante um evento que reuniu investidores em Nova York. O governo estuda a possibilidade de financiar a Petrobras, caso o caixa da companhia não dê conta do recado.