Um olhar crítico sobre a cooperação internacional
A partir de 2003 uma nova política externa passou a vigorar no país. Suas diretrizes resultaram em importantes conquistas e também em novos desafios. No plano regional as negociações para a criação da ALCA foram esvaziadas e deram lugar a um grande esforço de fortalecimento da integração regional em suas dimensões política, econômica e social, impulsionada pelo novo ciclo político que se abriu na América do Sul. No âmbito global o Brasil passou a investir em coalizões Sul-Sul – BRICS, IBAS, BASIC nas negociações de mudanças climáticas são alguns exemplos – visando ganhar musculatura para jogar na primeira divisão em algumas arenas, como é o caso do G20. O balanço de uma década da chamada política externa altiva e ativa é positivo, podendo-se afirmar que o Brasil contribuiu de forma substantiva para que o sistema internacional tenda para uma nova correlação de forças.
O aumento do peso da cooperação e investimentos internacionais do Brasil é parte integrante do novo lugar que o país passou a ocupar na política internacional. Se antes os fluxos de cooperação e investimentos eram do Norte em direção ao Sul agora, refletindo a transição que ocorre na ordem internacional, a cooperação Sul-Sul e os investimentos de países membros dos BRICS crescem rapidamente e passam a disputar com os doadores e investidores das potências tradicionais.
O exemplo da África é emblemático. A presença do Brasil no continente tem crescido de forma muito acelerada tanto na modalidade de cooperação técnica quanto em relação aos fluxos de investimentos sob a forma de operações internacionais de empresas brasileiras que lá atuam em projetos de mineração, infraestrutura e grandes projetos agrícolas, e cujas atividades estão concentradas em seis grandes empresas: Petrobras, Vale, Odebrecht, Queiroz Galvão, Andrade Gutierrez e Camargo Correa. Além disso o Banco dos BRICS encontra-se em vias de criação visando prioritariamente proteger os membros do bloco dos impactos da crise global e realizar investimentos em infraestrutura na África. Recentemente a presidente Dilma, em viagem a Etiópia, anunciou o perdão das dívidas de alguns países do continente para viabilizar fluxos de investimentos e negócios de empresas brasileiras nestes países.
Um dos principais países receptores é Moçambique onde a presença do Brasil, em disputa com a China, é percebida em várias áreas. A Vale, em seu maior empreendimento fora do Brasil, adquiriu a segunda maior mina de carvão a céu aberto do mundo, localizada em Moatize na província de Tete, e ali instalou um grave conflito territorial já que realizou um acordo de indenização com mais de 1.300 famílias que tiveram que ser reassentadas e não cumpriu o acordo.
No norte do país, no chamado Corredor de Nacala, em uma área de 14 milhões de hectares onde vivem mais de 4 milhões de camponeses o Brasil, junto com os governos do Japão e de Moçambique, está iniciando um mega projeto agrícola, o ProSavana, cuja referência é o Prodecer, implantado no Cerrado brasileiro. Empresas do agronegócio brasileiro têm visitado a região para identificar oportunidades de negócios, tendo a Agência Brasileira de Cooperação (ABC) organizado uma destas visitas. A Odebrecht está presente na região, construindo o aeroporto de Nacala.
Enquanto a narrativa dos governos argumenta que o ProSavana visa fortalecer a produção de alimentos para consumo interno, ao percorrer a região fica evidente a preparação de uma imensa infraestrutura de portos para a exportação da produção. A análise dos documentos que orientam a implantação do ProSavana não deixa dúvidas: uma grande parte da região será tomada por projetos agrícolas voltados para exportação, e outra parte tratará de incorporar uma muito pequena parcela do campesinato local à cadeia empresarial. Estão planejados monocultivos de soja, milho (para ração animal e não para alimentação humana, sendo que o milho é de longe a principal base alimentar do país), algodão, florestas plantadas de eucalipto, indústria de frangos e produção de alimentos.
As organizações que representam os camponeses do norte de Moçambique temem que o modelo a ser implantado resulte em massivos reassentamentos e expulsão de suas terras, e portanto em um aumento ainda maior da insegurança alimentar no país. A terra em Moçambique é pública e os camponeses têm o direito de uso; porém, a maioria não tem documentação e teme perder suas terras diante da oferta de concessão que em sido feita aos investidores.
A principal demanda das organizações que representam os camponeses é por informações e pelo direito a serem consultados. Tudo o que recebem de resposta dos governos, inclusive o do Brasil, é que quando os planos estiverem prontos eles serão informados. Os camponeses demandam também que, ao invés de grandes projetos empresariais com investidores estrangeiros, a cooperação brasileira priorize levar as experiências de programas e políticas públicas conquistados pelos movimentos sociais do campo no Brasil que apoiam a agricultura familiar e camponesa, como é o caso do Programa de Aquisição de Alimentos.
No Brasil são históricos os conflitos entre a agricultura familiar e camponesa, que coloca 70% dos alimentos na mesa dos brasileiros, e o modelo de agricultura que vem do latifúndio, baseado na concentração fundiária, extensos monocultivos de commodities voltadas para exportação e uso intensivo de agrotóxicos. O crescente peso político e econômico que tem o agronegócio na política interna também está se refletindo nas decisões de política externa, seja nas posições negociadoras de comércio internacional do Brasil seja nas decisões sobre cooperação e investimentos.
Para evitar que o país exporte seus conflitos internos, a solução é criar instâncias de democratização do processo decisório sobre política externa onde os conflitos possam ser processados e o governo exerça seu papel de mediador. Assim os setores sociais que lutam por direitos e por justiça social e ambiental poderão ter uma arena para disputar contra as preocupantes tendências de privatização do processo decisório que hoje ocorre com a cooperação e os investimentos internacionais do país.
*Fátima Melo atua na FASE e no Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais
Publicado no blog Brasil no Mundo.