Embaixada não é DOI-Codi e nem a Casa de Saboia
Embaixadas são as missões diplomáticas que os países mantêm em outros países. As construções que as abrigam são, em geral, bastante confortáveis. Não costumam recordar masmorras e prisões, embora algumas pessoas que lá trabalhem possam sentir-se metaforicamente prisioneiras. Lá também não é usual a prática da tortura, além da, por vezes, asfixiante rotina burocrática. Nada, porém, comparável aos dramáticos recursos do pau de arara e dos choques elétricos.
Mesmo para um asilado, que pode circular por suas dependências, uma embaixada, com suas “gassetianas” circunstâncias, é muito mais aprazível que as celas do DOI-Codi, nas quais muitos foram torturados e assassinados. Nas embaixadas, morre-se pouco. E, em geral, come-se bem. No DOI-Codi, dizem, comia-se muito mal, quando comida havia. O seu room service definitivamente não era lá essas coisas.
Portanto, as embaixadas servem mal aos propósitos da tortura e dos maus tratos. Estão lá, na realidade, para finalidades mais elevadas. Como representar os interesses de um Estado em outro Estado. Tarefa elevada e muito difícil. Trata-se, afinal, de defender os interesses do país em terra estranha. Por isso, Clausewitz comparava diplomatas a militares. Ambos defendem a Nação. Uns com armas, outros com penas e vozes. Não por acaso, ambas as carreiras são rigidamente hierarquizadas e funcionam com cadeias de comando verticalizadas. Defender a pátria requer disciplina, hierarquia e comando.
Nas relações entre Estados, nada pode ser deixado ao acaso ou ao sabor de idiossincrasias pessoais. Tudo tem de ser muito bem pensado e calculado, levando em consideração múltiplos fatores e os interesses maiores do país. Os diplomatas não estão lá para se representar a si mesmos ou a suas preferências pessoais, sociais, culturais, ideológicas ou políticas. Seus interesses são os interesses do Estado e suas políticas são a política externa.
Em nossa república, cabe constitucionalmente ao presidente da república a prerrogativa de definir essa política e conduzi-la. Às embaixadas incumbe operá-la. Ergo, assim como elas não são celas do DOI-Codi, elas também não são castelos habitados por membros da realeza, pequenos monarcas a proclamar l´ambassade c´est moi.
Pois bem, o ministro Eduardo Saboia parece ter confundido tudo. Celas com embaixadas e embaixadas com castelos. A sua aventura de enredo altiplano e suas declarações altissonantes posteriores sugerem isso.
Só se pode especular sobre as motivações subjetivas do diplomata. Muitos, como eu, preferem acreditar em motivos puramente humanitários. Saboia, comovido com a situação do pobre senador boliviano, que conseguiu aumentar a sua fortuna pessoal em meros 290% em seus anos de atividade política, decidiu, em solitária e torturante decisão monocrática, e convenientemente sigilosa, retirar o político da garra dos seus algozes indígenas e livrá-lo do peso da vintena de processos que a justiça boliviana tem contra ele.
A figura magra e longilínea do ministro, a evocar traços quixotescos, favorece essa interpretação heroica e idealizada. É fácil imaginá-lo a subir em seu rocinante motorizado e a percorrer, lança em punho, os perigosos meandros das estradas andinas povoadas por gigantes aimarás.
Tampouco se pode descartar a hipótese de que o medo da morte do senador não passasse de mera transferência psicoanalítica. Com efeito, é possível que Saboia estivesse sofrendo daquela “morte imperfeita e temporária”, “aquela outra” à qual se referiu Guimarães Rosa, também um diplomata vítima da asfixia física e existencial do soroche, a espalhar angústia pelos páramos.
Outros, mais maliciosos, interpretam a aventura rocambolesca do diplomata como uma ação planejada por grupos políticos de direita, uma espécie de empreitada binacional, orquestrada para causar embaraços aos governos de ambos os países. Testemunhos dão conta de que Saboia, Biate (o embaixador que deu asilo a Pinto Molina) e o senador compartilhavam simpatias ideológicas e um profundo desprezo pelo governo de Evo Morales. É possível. Afirmam até que Evo Morales dizia que a embaixada do Brasil em La Paz era o centro da oposição ao seu governo. Talvez, quem sabe.
Também é possível que Saboia tenha escutada a voz de Deus, como disse. Deus que, segundo consta, é onipresente, pode ter perfeitamente passado pela embaixada do Brasil em La Paz e sussurrado algo ao ouvido do nosso diplomata. Uma mensagem espiritual, sem dúvida, como convém ao Ser Supremo.
Também, sem dúvida, não foi uma mensagem muito racional. Percorrer 1.600 quilômetros pelas perigosíssimas estradas bolivianas transportando o senador sem salvo conduto e, portanto, sem nenhuma garantia do Estado boliviano é um excelente enredo de filme de aventura, mas uma história pouco edificante para a diplomacia brasileira.
Porém, qualquer que tenha sido a motivação subjetiva de Saboia, é preciso considerar que objetivamente ele foi inconsequente e irresponsável. Inconsequente e irresponsável porque colocou em risco a vida e a segurança de um asilado que estava sob a responsabilidade do Estado brasileiro. Se o senador ameaçava suicidar-se, como alega, a solução era chamar uma equipe médica, e não tentar ajudá-lo na empreitada.
Inconsequente e irresponsável, do mesmo modo, porque a sua aventura provocou danos consideráveis. Provocou a demissão do Ministro Patriota, causou grande mal-estar nas relações bilaterais Brasil/Bolívia, expôs o governo brasileiro ao ridículo e, sobretudo, abriu um precedente perigoso na disciplinada Casa de Rio Branco.
Já há até um presidenciável insuflando a rebeldia entre diplomatas. Coisas de político de província mediterrânea, e não de estadista.
Saboia, que consegue conversar até com Deus, poderia, ao menos, ter enviado uma mensagem criptografada à Brasília informando da sua decisão de urgência e pedindo auxílio. Nesse caso, os riscos poderiam ter sido reduzidos e planos de contingência poderiam ter sido elaborados. Talvez não o tenha feito porque sabia que seria desautorizado, diriam os maliciosos. Afinal, hoje em dia qualquer um se julga no direito de afrontar a soberania da Bolívia.
Resta agora aguardar com serenidade os desdobramentos do caso. É provável que o tema chegue ao nosso STF. Lá, os ministros, ouvindo a voz da Constituição e das convenções internacionais, além do Ser Supremo, decidirão se o senador, já condenado por corrupção e acusado de participação no massacre de 19 indígenas em Pando, merece o asilo ou o refúgio, ou, ainda, a extradição.
Da mesma forma, com muita serenidade teremos de recompor nossas relações com a Bolívia, próximo membro pleno do Mercosul.
Será tarefa de Estado, difícil e delicada. Mas, para isso, somente para isso, estão as embaixadas.
Marcelo Zero, sociólogo, é assessor da bancada do PT no Senado Federal.
Publicado no blog Brasil no Mundo