Saúde, cidadania e democracia
Em agosto de 2012, cerca de 300 servidores federais da saúde ocuparam a Avenida Brasil, no Rio, em protesto contra a precariedade dos hospitais federais e das condições de trabalho dos servidores.
A relação estrutural entre saúde, democracia e cidadania em nosso país foi estabelecida no contexto da luta política pela redemocratização inserida no denominado movimento da Reforma Sanitária Brasileira. A máxima que guiava seus componentes nos anos 70 e 80 do século passado era: saúde é democracia e democracia é saúde.
Com a conquista do capítulo saúde da constituição de 88 dá-se uma nova perspectiva a essa relação rompendo com a visão hegemônica que prevalecia até então e abre-se uma nova dimensão nas relações entre saúde, desenvolvimento, liberdade e determinação social. Mas, passados 25 anos, essa relação permanece como gigantesco desafio a ser enfrentado e ultrapassado. No início dos anos 90 o ideário reformista e a luta política para viabilizá-lo enfrentaram grandes obstáculos no contexto do desenvolvimento capitalista brasileiro no qual governos neoliberais criaram constrangimentos estruturais que impediram a plena implementação dos projetos reformistas. Esses obstáculos ficam bem exemplificados na realidade do sub-financiamento do SUS e pelo desenvolvimento de um florescente mercado privado alavancado por subsídios diretos e indiretos ao mercado.
Mas, para nos aproximarmos da realidade em vivências que expressam a negação dessa relação (saúde, cidadania e democracia) soa pedagógico um exemplo bem próximo de todos nós: a questão da mobilidade urbana nas grandes cidades. Existe uma relação estreita entre a política de transportes públicos e seu inconteste impacto na saúde de seus usuários. Aqui surge a interface no contexto da vida urbana entre as possibilidades do homem comum interferir no padrão de transporte dominante, o privilégio dado ao transporte individual, a política tarifária, os acidentes, seus impactos sobre a saúde humana ou interrupção da vida.
Um exemplo mais complexo, e que muito facilmente nos tira o sono, é a relação entre o uso de drogas (no geral abuso) e as diversas formas de violência que acompanham seus usuários (mas não só eles, e sim toda a sociedade). Concentram-se aqui situações inacreditáveis de perdas de referências pessoais, destruição da saúde do usuário e seus familiares, perdas de vidas de jovens que certamente não angariaram a condição de cidadania plena.
E a pergunta que não quer calar: como a política de saúde pode contribuir para o fortalecimento da democracia e sua fruição pelos brasileiros?
Por meio da construção de sistemas universais voltados para a garantia de direitos fundamentais onde os iguais têm suas diferenças reconhecidas e contempladas. E o fortalecimento do mercado privado nos afasta ou aproxima desse ideário? O processo de crescimento do setor privado introduz gradualmente a diferenciação dos indivíduos e famílias pelo nível sócio-econômico garantindo o acesso de determinados grupos a determinados serviços com diferentes padrões de qualidade.
E é possível ter saúde fora da democracia? Evidente que não! Mas será que a democracia formal tem condições de garantir esse direito? Ou será necessário aprofundar a discussão sobre as iniciativas de democracia direta? Na verdade, esse é o nosso paradoxo: temos democracia representativa, garantias legais e constitucionais mas esse direito ainda não foi plenamente conquistado.Como pensar em vida plena e produtiva em um dos países mais violentos do mundo? Entre 2002 e 2010 praticamente 35 mil jovens negros foram assassinados no Brasil.
Por fim cabe refletir como se dá o processo histórico através do qual determinada sociedade, em um determinado contexto histórico, constrói uma consciência coletiva sobre a saúde e suas determinações e como percebe seu sistema de saúde. Dando-lhe um valor diferenciado ao compreendê-lo como um espaço onde todos são iguais, mesmo em um sistema econômico social que produz permanentemente desigualdades? Compreendê-lo como uma conquista do esforço coletivo de gerações? Ou algo que se busca através do processo de ascensão social, status, produto que se compra no mercado?
Na verdade, entende-se que o início da construção desse processo vital está nos anos iniciais da vida, na oportunidade em que a pequena brasileira ou o pequeno brasileiro encontra-se totalmente dependente do ambiente físico e emocional que seus cuidadores poderão ou não prover de forma suficientemente boa para que seus fatores genéticos, suas tendências ao desenvolvimento, possam expressar-se de forma plena e saudável. Este ambiente facilitador a vida, como o temos chamado, coincide nas etapas precoces do desenvolvimento com o suporte ofertado pelo principal cuidador da criança. Pois é o vinculo entre eles, iniciando pela mãe com seu bebê, que permite um apego seguro e uma confiança que concorre positivamente para a ousada tarefa de busca de autonomia e diferenciação criativa da criança sempre em relação com o seu meio. Claro está que uma mãe, um pai, uma família que não usufruam de uma rede de proteção e de um sistema de garantia de direitos democraticamente estabelecido, terá dificuldades bem maiores em ofertar suporte adequado ao desenvolvimento de sua criança. Muitas áreas do conhecimento tem reconhecido na primeira infância – aqui no Brasil o período que vai de zero a seis anos – o espaço em que todos os aportes sociais devem confluir, especialmente em forma de políticas públicas de cunho intersetorial, para que uma atenção integral ao desenvolvimento infantil seja buscado, pavimentando-se com clareza a relação entre o desenvolvimento pessoal e o desenvolvimento social saudáveis. Tanto mais saudável quanto mais e melhor investirmos afetiva, emocional e financeiramente, como sociedade civil e como estado, nesta etapa da vida em que os padrões de saúde física, emocional, capacidades e habilidades cognitivas e de relacionamento social se estabelecem.
Nesta perspectiva, de produção e promoção de saúde física e mental, o cuidado se apresenta como pilar da sustentabilidade para a vida.Uma reflexão bastante interessante que envolve a luta de toda a sociedade pela redução das iniquidades e fortalecimento da relação entre democracia e liberdade.
Para Winnicott, pediatra e psicanalista inglês, que voltou-se ao trabalho com crianças e seus cuidadores durante a segunda grande guerra, “a democracia é uma aquisição de uma dada sociedade, que num certo momento conta com maturidade suficiente no desenvolvimento emocional de uma proporção de indivíduos que a compõem, a ponto de existir uma tendência em direção à criação, à recriação e a manutenção da máquina democrática”. O autor também se refere a algumas categorias básicas da máquina democrática como o voto livre e secreto, não só para que as pessoas escolham lógica e ilogicamente, mas também para que se livrem e removam seus líderes. E é essa escolha, acrescentamos, que permitirá mais ou menos celeremente a caminhada do projeto/processo civilizatório de uma dada cultura. Essa capacidade de influência de cada um sobre o todo, e deste sobre todos e cada um, é característica importante do desenvolvimento de uma sociedade, estando relacionada à possibilidade de amadurecimento da personalidade individual ao longo da vida e dependente de todos os equipamentos que esta mesma sociedade coloca à disposição de seus cidadãos para este fim.
Em seu livro Desenvolvimento como Liberdade, Sen (2000) enfatiza a importância de eliminar todas as privações de liberdade que limitam as escolhas e as oportunidades das pessoas para exercerem sua condição de cidadão. Portanto, se democracia é maturidade, maturidade é saúde, e se saúde é desejável, então vamos trabalhar para sua produção, promoção, proteção, atenção e reabilitação, compreendendo que um de seus fatores essenciais repousa no reconhecimento da importância do homem comum, da mulher comum e do lar comum dos brasileiros no cuidado a suas crianças e a si próprios, devendo esse fator ser seriamente considerado, antecedendo e influenciando o desenho de políticas públicas inovadoras para a área.
*José Gomes Temporão é ex-ministro da Saúde. Liliane Mendes Penello é coordenadora da Política Brasileirinhos Saudáveis do MS-IFF-Fiocruz. Este artigo foi escrito para o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes)