O Brasil frente aos grandes desafios globais
Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos (2009/2010) e secretário Geral do Itamaraty (2003/2009) no governo do presidente Lula, Pedro Bocca, secretário de Relações Internacionais do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra/MST, Paulo Fagundes Visentini, coordenador do Núcleo de Estratégia e Relações Internacionais (Nerint) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS e coordenação de Matilde Ribeiro, secretária adjunta da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial da Prefeitura Municipal de São Paulo.
No painel “O Brasil frente aos grandes desafios globais”, da Conferência Nacional de Política Externa, realizada na Universidade Federal do ABC – Campus São Bernardo do Campo, na manhã desta terça-feira (16) o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães apontou as falácias do “livre mercado”.
Em meio aos grandes temas que envolvem as relações internacionais, a questão econômica marcou a abordagem adotada pelos palestrantes do painel “O Brasil frente aos grandes desafios globais” ”, da Conferência Nacional de Política Externa, realizada na Universidade Federal do ABC – Campus São Bernardo do Campo, na manhã desta terça-feira (16). A começar pela exposição simpática e cheia de ironias do Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, a crise econômica recente permitiu elucidar a perversidade do capitalismo no que tange às consequências da especulação financeira e ao poder das multinacionais.
“Esta crise vem a influir e condicionar a política econômica interna, ela pode incidir em um modelo de enfrentamento da crise equivocado – que é o da austeridade, da contenção de despesas, da redução de programas sociais, e assim por diante, que é o que vem sendo aplicado”, explicou.
Outra reflexão de Guimarães recai sob o aspecto ideológico e que despertou definições de que sua origem estaria diretamente ligada ao modelo econômico neoliberal aplicado, principalmente, pelos países do chamado primeiro mundo por conta da desregulamentação do mercado financeiro internacional. “O sistema capitalista é um sistema especulativo desde a sua essência. Nenhum capitalista tem certeza de que seu investimento dará lucro, isso não existe. Há uma expectativa de lucro que se aguça no sistema financeiro”.
Abordar as relações internacionais perpassa sobre a regulação da atividade. Para Guimarães, não há “livre mercado”, como é constantemente pregado pelos defensores do capitalismo. As regras existem e são definidas seja por órgãos oficiais ou pelo próprio empresariado. Fato histórico que marcou esse processo foi a Rodada Uruguai iniciada em 1986 no encontro do Acordo Geral sobre Pautas Aduaneiras e Comércio, no inglês General Agreement on Tariffs and Trade (GATT), que serviu de base para a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC). “Ela (OMC) tem, de uma forma geral, o papel de desregulamentar, reduzir o papel do Estado e permitir a ação das empresas. Isso é uma forma de os países desenvolvidos impedirem que os países em desenvolvimento venham a utilizar o mesmo tipo de política econômica que na época adotaram os países como a Alemanha”, avaliou, deixando claro que as regras valem para fortalecer os mais fortes.
Como um desafio global, o embaixador destacou que a crise de 1929 envolvia as empresas nacionais, enquanto na recente crise que atingiu sobremaneira a Europa, viu-se um papel destacado das empresas multinacionais. A importância desse fato é que, enquanto a Europa adotou equivocadamente um modelo de austeridade com redução dos programas sociais e das despesas, as multinacionais com sua capacidade de mobilidade e grande capital se instalaram na fronteira do capitalismo – a China – e de lá seguiram exportando para os grandes países do mundo. Dessa forma, a crise econômica se tornou social e a concentração de riqueza se manteve.
Em 1929, muitas empresas foram à falência já que suas sedes estavam fincadas em solo americano. Com os efeitos da globalização, as gigantes estão em diversos países, blindando dessa maneira que as recessões locais as afetem. “Do ponto de vista da empresa, (o mercado) não está indo mal porque está se beneficiando da expansão da China. Quem se prejudica são os trabalhadores que não podem sair de Ohio (EUA) para China e receber os salários adequados”, exemplificou.
Por outro lado, o crescimento chinês às custas da classe operária e das multinacionais tem afetado o mercado mundial. No caso do Brasil, criou-se demanda elevada por produtos primários, como soja e minério de ferro, fazendo com que o país aumente os investimentos da economia para esta área. “Isso afeta os parque industriais que enfrentam essa competição e atrasa a retomada do crescimento”, assinalou o diplomata que emendou ainda: “Os empresários brasileiros, apesar de todas as benesses que recebem, com desonerações em grande escala, não retomam os investimentos. E como os empresários podem ser convencidos de retomar os investimentos se sofrem a concorrência externa? Não só a chinesa, mas a americana e a europeia”.
Essa constatação converge com a exposição do professor Paulo Fagundes Vizentini (Núcleo de Estratégia e Relações Internacionais – UFRGS), que também apontou para a financeirização como um grande desafio global e provocou os participantes ao afirmar que se promove a imagem de uma realidade tranquila, para dentro e para fora do país, mas que é, na verdade, falsa. Ainda que possa ter sido apenas “uma marolinha”, a crise impactou o Brasil e se refletiu em esforços de normatização das atividades econômicas, o que demonstra o condicionamento da política econômica interna e alerta sobre a dificuldade de lidar com a relação entre o setor empresarial e o Estado.
Como outros desafios globais, Samuel Pinheiro Guimarães levantou a importância dos desafios militares com foco na urgência de o Brasil ter um serviço de inteligência efetivo; desafios ambientais, constatados como distantes da agenda atual, apesar de sua inegável importância mundialmente, e os desafios políticos, centrados na formação de grandes blocos no mundo.
Quanto ao tema dos grandes blocos, vale ressaltar a assimetria existente entre os países que constituem a Unasul e o Mercosul, organizações fundamentais para decidirem suas questões políticas sem interferências externas, por um lado, e dedicadas a negociar, pelos Estados, a regulamentação do comércio que muitas vezes é equivocadamente tratado como “livre comércio”. Para o embaixador isso constitui uma grande falácia. Se os Estados não organizam a ação das empresas multinacionais, estas determinam o que deve ser produzido e exportado de um país para o outro.
Integrado dentro do Mercosul, os países da América Latina possuem semelhanças que difere seu bloco de outros organismos internacionais, na opinião de Guimarães. Embora, ele mesmo reconheça a necessidade de fortalecimento das relações entre os latinos, os dados apresentados por ele indicam uma polarização, tanto do ponto de vista de um prioridade para a Argentina quanto para o setor automotivo. “Hoje estamos num processo de expansão dos investimentos e verificamos que cerca de 90% se dá entre Brasil e Argentina e 50% a 60% é do setor automotivo, que é regulamentado, ou seja, não é comércio livre”. Com a experiência de atuar no Itamaraty, ele explicou que esses ‘acordos’ determinam a quantidade de produção e estabelece cotas de exportação, sendo o mesmo feito com outros segmentos. “Para nós o desafio é organizar o comércio, mesmo o comércio de produtos primários que hoje é feito por grandes multinacionais. Esse é um desafio político e econômico para o Brasil, Argentina e outros países”.
Além disso, a questão tecnológica também se relaciona com o papel das multinacionais. A grande problemática é que o capital multinacional se encontra engendrado em nossa economia. Sendo assim, é preciso fazer com que as empresas instaladas no Brasil contribuam efetivamente para o desenvolvimento tecnológico nacional, o que exige algumas condições destacadas como primordiais: poder financeiro de crédito e de compra do Estado, e política tarifária.
No entanto, a necessidade da presença do Estado não acompanha a condição insuficiente que este apresentou principalmente depois da blindagem sofrida nos anos 1990. Para Vizentini, foi justamente essa blindagem a qual debilitou o Estado e ao mesmo tempo garantiu condições que o fizesse parecer responsável por todas as mazelas da sociedade. “As pessoas acham que o Estado é algo separado da sociedade e conseguem convencer as pessoas que o seu problema está no Estado, que o dinheiro público tem que ter virtude. Engraçado é que tem corrupção, mas não tem corruptor, num período de grande evasão de dinheiro privado. Esse é o quadro em que surge a reedição de uma diplomacia ativa, autonomista e global com o presidente Lula”, assinalou o professor.
Esse cenário permitiu que a chamada nova política externa tivesse condições de se construir pela exigência de uma diplomacia autonomista. O mundo em transformação permitiu novas alianças, e a sensibilidade do ex-presidente Lula aos fenômenos sociais fez diferença no modo de se enxergar o Brasil no mundo. Por tudo isso foi possível construir conexões Sul-Sul no desenvolvimento da África e na aproximação política com a América Latina.
Com relação ao posicionamento do Brasil, ele entende que uma “folga” dada por Barack Obama foi o que permitiu que houvesse maior protagonismo internacional. Entretanto, ele também frisa que nos últimos anos, os Estados Unidos estiveram envolvidos em conflitos maiores, principalmente, pelo Oriente Médio e sua própria crise armamentista.
Apesar dos avanços, o colonialismo continua presente sutil e permanentemente, ponto alto de concordância nas falas de todos os painelistas. Para Pedro Bocca, Secretário de Relações Internacionais do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), a Política Externa progressista desenvolvida a partir de 2003 apresentou conquistas de autonomia, mas também contradições que precisam ser pontuadas para seguirmos avançando na forma solidária de nos relacionarmos com o mundo. “Como esse governo foi eleito com uma série de contradições internas que se refletem na própria composição do governo, claro que a política externa extremamente progressista também traz contradições”, afirmou. Entre as contradições que Bocca aponta, ele reconheceu a necessidade de fortalecer as relações com os países do Caribe, mas, paralelamente, o Brasil mantém tropas do exército lá. “Enquanto movimento social, é bom lembrar que o Haiti não precisa de soldado, ele precisa de médico, de engenheiro, de professor. Parece-me que o Brasil pode avançar nessa solidariedade”. Os exemplos se seguiram em relação à Palestina, quando o país também se posiciona de maneira favorável, por outro lado, mantém tratados comerciais com Israel.
Para avançar, é imprescindível que os movimentos sociais estejam próximos do governo, do Itamaraty, e que possam estar representados não apenas em modelos consultivos de participação na política externa, mas sejam envolvidos reconhecidamente como atores dessas relações internacionais. Bocca avaliou que o Brasil tem condições políticas e econômicas de oferecer alternativas nas questões externas frente à mundialização do capital, da informação e da crise de representatividade das instituições internacionais tradicionais.
Nessa perspectiva de que um único ator não contempla as necessidades do mundo, Pedro enfatizou na fala de encerramento que a lógica tradicional do universo acadêmico não serve a governos progressistas, e por isso deve-se lutar por uma política externa a qual, além de ativa e altiva, possa vir a ser efetivamente popular.
Dentre os vários pontos abordados durante as intervenções dos participantes destacaram-se a prioridade da democratização da mídia para romper com o controle hegemônico a que está submetida no Brasil, e a importância da educação para combater preconceitos sobre nossas sociedades vizinhas. Para Samuel Pinheiro Guimarães a cooperação se faz possível por causa do conhecimento que adquirimos sobre o outro. Dessa forma, o tom do debate, crítico e descontraído, garantiu que o painel se desenvolvesse de forma bastante direta e que as contribuições de todos os presentes fossem tão provocativas quanto os grandes desafios globais para a política externa atual.
Com informações de Aline Andrade Rocha e Sandra Paulino