História da comunicação ou história da mídia?
Texto de referência para palestra de abertura do 9º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia (Alcar), realizado em Ouro Preto, MG, de 30 de maio a 1º de junho de 2013; título original “História da comunicação ou história da mídia? Fronteiras conceituais e diferenças”
I
Três razões me levaram a aceitar o convite para falar na abertura deste 9º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia (Alcar).
Primeiro, certa ousadia, quase um atrevimento. Os que me convidam certamente sabem que a história da mídia brasileira não é minha área de formação e nem tem sido meu objeto de pesquisa ao longo dos anos. O que teria eu de interessante a dizer para renomados especialistas na abertura de seu encontro nacional?
A segunda razão – em contraponto à primeira – decorre de ter entendido o convite como um desafio. Lembrei-me da conhecida máxima de Terêncio – embora seu significado original tenha sido outro: “Homo sum. Nihil humani a me alienum puto”, isto é, “Sou homem. Nada do que é humano me é estranho” ou, digo eu, deveria ser estranho. Ademais, por uma feliz coincidência, o convite me chegou exatamente quando preparava uma proposta de programa de investigação histórica sobre as ideias de liberdade de expressão e opinião pública no liberalismo brasileiro, para apresentar ao Cerbras, o Centro de Estudos Republicanos Brasileiros da UFMG.
Por fim, a terceira razão é pessoal. Ouro Preto é parte constitutiva de minha própria identidade. Menino-adolescente-rapaz, aqui vivi dos 12 aos quase 19 anos, primeiro como aluno interno do Colégio Arquidiocesano, depois como morador de pensões e repúblicas, nos tumultuados anos do final dos 1950 e início dos 60. Militante de JEC, Juventude Estudantil Católica, aqui dei a largada para minha formação intelectual e política e fui me transformando do futuro engenheiro desejado pela família, no improvável sociólogo de causas chamadas de subversivas e utópicas.
Como não retornar a Ouro Preto, palestrante convidado, exatos 50 anos depois de ter partido ainda estudante do ensino secundário?
II
Apresentadas as justificativas para aceitação de convite tão honroso, passemos ao tema proposto: história da mídia ou história da comunicação?
Recorro a um precioso livro, pouco conhecido entre nós, embora publicado no Brasil em 2007 (Boitempo), escrito pelo professor de Cambridge Raymond Williams, prematuramente falecido. O livro tem o emblemático título de Palavras-Chave – Um vocabulário de cultura e sociedade.
Williams explica tratar-se de palavras-chave em dois sentidos conexos:
“São palavras significativas e vinculantes em certas atividades e em sua interpretação; são palavras significativas e indicativas em algumas formas de pensamento. (…) Naturalmente, nem todas as questões poderiam ser entendidas mediante a simples análise das palavras. Ao contrário, a maioria das questões sociais e intelectuais (…), persistiam no interior e para além da análise linguística. Contudo, descobri que não se poderia refletir exaustivamente sobre muitas (…) questões, e algumas, creio, não podem ser abordadas, a menos que tenhamos consciência das palavras como parte dos problemas.”
E continua Williams:
“É necessário insistir que os problemas mais ativos de significado estão sempre primordialmente embutidos nas relações reais, e que tanto os significados quanto as relações são caracteristicamente diversos e variáveis, dentro de estruturas de ordens sociais específicas e dos processos de mudança social e histórica”.
Não sem razão, duas das palavras-chave discutidas no vocabulário de Williams são exatamente mídia e comunicação.
III
Creio não haver dúvida de que atravessamos um período de profundas mudanças nos campos de significação das palavras mídia e comunicação. Uma das muitas indicações dessas mudanças ocorre no uso que se faz dessas palavras, por exemplo, para designar o tipo de formação profissional que se oferece em universidades. Começo com um exemplo que conheço de perto.
Depois de um longo processo de consultas que durou mais de um ano, aberto a alunos, ex-alunos e professores, um dos mais tradicionais centros de ensino e pesquisa da comunicação nos Estados Unidos, mudou de nome em 2008: o College of Communications da Universidade de Illinois, em Urbana-Champaign, passou a se chamar College of Media.
A Universidade de Illinois é uma instituição pioneira no ensino de jornalismo, lá introduzido em 1902. Em 1927 foi criada a School of Journalism que mudou de nome, em 1950, para School of Journalism and Communications. Em 1957, mudou novamente para College of Journalism and Communications e, em 1968 para College of Communications. Não foi, portanto, a primeira vez que seu nome é alterado.
Na justificativa que apresentou para a substituição de communications por media, o, então, Dean do College, professor Ronald Yates afirmou:
“O que nos realmente fazemos é estudar e ensinar `comunicação midiatizada´ [mediated communications] (…). Nós estudamos e ensinamos mídia – mídia velha, mídia nova, mídia emergente, mídia futura. Em resumo, o College of Communications é sobre mídia. O mais importante de tudo isso (…) não é encontrar uma nomenclatura precisa, mas dar conta das mudanças que estão ocorrendo (…). A enorme mudança que produz informação e entretenimento a qualquer hora, em qualquer lugar, tem forçado as pessoas a se adaptarem constantemente. (…) Essas mudanças nas formas de distribuição [de informação e entretenimento] e na maneira como as pessoas pensam a respeito da mídia provocaram mudanças no escopo das comunicações como disciplina.”
Ainda no campo da formação profissional universitária, noticiou-se no final de 2010 que “a Universidade do Colorado estuda fechar seu curso de graduação em Jornalismo para criar um programa que combine preceitos jornalísticos e de ciência da computação”. O novo curso seria algo próximo de uma “graduação em mídias”. Além disso, informa-se que não é só a Universidade do Colorado “que estuda mudanças drásticas na grade de Jornalismo ou até mesmo a extinção do curso. Ao menos outras trinta escolas, entre elas Wisconsin, Cornell, Rutgers e Berkeley, consideram modificar os cursos para que se adequem às novas tendências do mercado de trabalho”.
Embora continue a se interessar pela comunicação face-a-face, o estudo da mídia e da comunicação se afasta cada vez mais desse objeto. Nos Estados Unidos os antigos departamentos de speech communication estão também mudando os seus nomes para departamentos de communication.
Dessa forma, o que parece caracterizar hoje tanto a formação profissional quanto a pesquisa da mídia e da comunicação é que elas lidam com a comunicação midiatizada por ferramentas tecnológicas (mediated communications). Se essas tecnologias, durante muitos anos, definiram os “departamentos” acadêmicos – televisão, rádio, cinema, jornal, revista – a revolução digital e a convergência tecnológica das últimas décadas, além de ter introduzido novas “mediações tecnológicas” – o computador, a internet, o celular – também diluíram inteiramente as diferenças existentes entre as velhas tecnologias.
IV
Seria o caso de se perguntar, então, com Raymond Williams: a quais relações reais, diversas e variáveis, dentro de quais estruturas e processos de mudança social e histórica, correspondem hoje as significações expressas nas palavras mídia e comunicação?
A comunicação midiatizada – aquela que constitui o espaço onde se forma a opinião pública – não escapa hoje da intermediação tecnológica. Estudar a mídia, para além de suas caraterísticas de tecnologia, significa, portanto, estudar as condições de construção da comunicação pública e de formação da opinião pública.
No Brasil, existe debate publico formador de uma opinião pública democrática? Qual tem sido a nossa tradição no que se refere ao acesso a esse debate e à formação da opinião pública? Ao longo de nossa história quem tem desfrutado da liberdade de expressão, isto é, quem tem tido voz e quem tem tido a voz ouvida?
Para lidar com algumas dessas questões farei um excursus ao século XVII valendo-me do padre Antonio Vieira antes de voltar ao século XXI através da “arqueologia” do conceito de cultura do silêncio de Paulo Freire [reproduzo aqui partes do artigo “Da cultura do silêncio ao direito à comunicação”, Observatório da Imprensa, nº 699 de 22/11/2011].
V
O poeta, ensaísta e historiador Robert Southey (1774-1843), nascido em Bristol, na Inglaterra, nunca esteve no Brasil, mas valeu-se de preciosa biblioteca organizada por seu tio, pastor anglicano da comunidade inglesa em Lisboa, e escreveu a primeira história publicada do nosso país que abrange o período colonial do “descobrimento” até a transferência da corte portuguesa em 1808. [A primeira história escritado Brasil foi a do Frei Vicente de Salvador (1564-1635). Concluída em 1627, cobria o período de 1500 ao início do século XVII e só foi publicada em 1888.] A História do Brasil, originalmente publicada em inglês, em três volumes (1810, 1817 e 1819), teve sua primeira edição em português em 1862 e continua sendo um importante documento sobre os primeiros três séculos de construção da sociedade brasileira [uma nova edição da História do Brasil de Southey, em três volumes, foi publicada pelas Edições Senado Federal em 2010].
Em boa parte do volume I de sua História (2010), Southey trata do período da invasão holandesa no nordeste brasileiro e da longa e sofrida guerra para expulsão dos comandados do Conde Mauricio de Nassau. Ao final do extenso capítulo XVII, relata a chegada à Bahia do Marques de Monte Alvão, indicado vice-rei em 1640, ano em que a dinastia dos Bragança retoma da Espanha o controle de Portugal à qual estava unido desde 1580.
Para descrever a situação em que se encontrava a colônia neste período, Southey recorre ao pregador jesuíta Padre Antonio Vieira (1608-1697), que saúda o vice-rei com um de seus famosos sermões, o da Visitação de Nossa Senhora, proferido no dia 2 de julho de 1640. [Existem dois sermões de Vieira identificados como da Visitação de Nossa Senhora. Citamos aqui o referido por Southey, Berlinck e Freire pregado em 1640. O outro é de 1638.]
Registre-se que o púlpito era talvez a única tribuna livre existente naquele período. E Vieira aproveita-se sabiamente da festa do dia no calendário litúrgico da Igreja Católica para “pintar” ao vice-rei um quadro sombrio da Terra de Santa Cruz.
O relato da Visitação de Nossa Senhora, logo após receber a “anunciação” de que seria mãe de Jesus, à sua prima Isabel, também grávida de seis meses e que dará à luz João Batista, está no capítulo 1 do Evangelho de Lucas. Vieira [1959] cita diretamente da Vulgata Latina, parte do versículo 44 – Ut facta est salutationis tuae in auribus meis, exultavit in gaudio infans [a íntegra do versículo 44, do capítulo 1, de Lucas, é: “Ecce enim ut facta est vox salutationis tuæ in auribus meis exultavit in gaudio infans in utero meo”, isto é, “Logo que a tua saudação ressoou nos meus ouvidos, o menino pulou de alegria no meu ventre”] – e prossegue:
“Comecemos por esta última palavra. Bem sabem os que sabem a língua latina, que esta palavra, infans, infante [do Latim infans, infantis: que não fala, incapaz de falar, infantil; de fari, falar], quer dizer o que não fala. Neste estado estava o menino Batista, quando a Senhora o visitou, e neste esteve o Brasil muitos anos, que foi, a meu ver, a maior ocasião de seus males. […] O pior acidente que teve o Brasil em sua enfermidade foi o tolher-se-lhe a fala: muitas vezes se quis queixar justamente, muitas vezes quis pedir o remédio de seus males, mas sempre lhe afogou as palavras na garganta, ou o respeito, ou a violência; e se alguma vez chegou algum gemido aos ouvidos de quem o devera remediar, chegaram também as vozes do poder, e venceram os clamores da razão” [p. 330].
Para Vieira, portanto, o maior dos males do enfermo Brasil na primeira metade do século XVII era ter sido mantido no mesmo estado dos infans, infantes, isto é, sem fala, sem voz: “o pior acidente que teve o Brasil em sua enfermidade foi o tolher-se-lhe a fala”. Além disso, afirma Vieira, nas muitas vezes em que o Brasil tentara manifestar-se através dos “clamores da razão”, havia sido vencido pela violência e pelo poder. [Apenas quatro anos após o sermão de Vieira, 1644, aparece na Inglaterra o clássico Aeropagitica de John Milton. Chamo a atenção para o abismo existente entre as condições históricas brasileiras e inglesas em relação às liberdades de expressão e de imprimir, nos séculos XVII e seguintes.]
Um século e meio depois de Southey, em livro pouco conhecido, Berlinck (1948) [não se encontra referência a este autor e/ou ao seu livro na literatura acadêmica brasileira, salvo naqueles poucos que estudam as origens do pensamento de Paulo Freire; aparentemente trata-se do engenheiro civil carioca, radicado em São Paulo, Eudoro Lincoln Berlinck (1899-1976), ativo no setor de segurança do trabalho e prevenção de acidentes e nome de rua no Bairro do Butantã, na cidade de São Paulo] descreve o que considera “fatores adversos” na formação brasileira e recorre igualmente ao sermão da Visitação de Nossa Senhora (através da História de Southey). Para ele, Vieira “achava, apesar de estar no século XVII, que estas terras já deveriam conter representantes do povo para expressar as aspirações dos habitantes, e influir na marcha dos negócios públicos. Vontade de falar, de se queixar, havia, mas o regime de opressão que já se iniciara, impedia que a opinião pública se fizesse ouvir” (p. 89).
Para Berlinck, a “opressão política” é um “mal endêmico” no Brasil. Afirma ele:
A opressão política começou logo depois do governo de Mem de Sá [1558-1572]; atravessou o período da dominação espanhola e firmou-se definitivamente no reinado bragantino. A escola que se formou e perdurou por séculos, prosseguiu no Brasil Império, e tem refulgido na república em inúmeros atos de governos constitucionais ou não. Não há tradição colonial que tenha resistido tanto à ação corrosiva do tempo e ao progresso da humanidade quanto esta (p. 86).
Além disso, Berlinck compartilha de posição que viria a ser consensual entre os principais intérpretes de nossa história, isto é, a de que o Brasil era “um país sem povo”. Nesse sentido, escreve: “não se formara, como só depois da abolição da escravatura se formaria, uma classe que se poderia chamar de ‘povo’. Eram, ou senhores ou escravos” (p. 92).
Pouco mais de uma década depois de Berlinck, Paulo Freire, na tese “Educação e Atualidade Brasileira” que escreveu para o concurso da cadeira de História e Filosofia da Educação na Escola de Belas Artes de Pernambuco, em 1959, antecipa muitas das observações que vão aparecer revistas e atualizadas, em seu conhecido “Educação como Prática da Liberdade”.
Freire parte de uma reflexão sobre a “inexperiência democrática” brasileira explicada pela interpretação [presente em Berlinck] de que o Brasil era “um país sem povo”. Ele se referencia no trabalho de isebianos históricos como Guerreiro Ramos, responsável pelo departamento de Sociologia do ISEB [o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), vinculado ao Ministério de Educação e Cultura, foi criado durante o governo de Café Filho, em 1955, com autonomia administrativa e liberdade de pesquisa, de opinião e de cátedra; a maioria dos seus membros era comprometida com uma ideologia nacionalista de desenvolvimento, entre eles Hélio Jaguaribe, Roland Corbisier, Guerreiro Ramos, Nelson Werneck Sodré, Antonio Cândido, Ignácio Rangel e Álvaro Vieira Pinto. Foi extinto pelo regime militar, em abril de 1964, e vários de seus membros foram exilados do Brasil], que em seu “Condições Sociais do Poder Nacional” (1957), afirma:
“O que sociologicamente é relevante é assinalar que, durante o período de dominação dos fazendeiros, o Brasil foi um país sem povo. Mesmo a observadores desarmados de categorias sociológicas foi fácil fazer essa observação. Já na fase colonial, o padre Antonio Vieira dizia: ‘cada família é uma república’. E Simão de Vasconcelos confirmava: ‘nenhum homem nesta terra é repúblico’. O francês Louis Couty escrevia em 1882 que ‘o Brasil não tem povo’. Observação que Silvio Romero fez sua em 1907. Outro estudioso seguro, Alberto Torres, declarava, em 1914, que no Brasil ‘a sociedade não chegou a constituir-se’.”
Guerreio Ramos conclui observando: “Não se pode duvidar que são perfeitamente exatas essas verificações” (p. 14-15). No contexto deste “país sem povo”, Freire vai também recorrer, através de várias citações do livro de Berlinck, ao sermão da Visitação de Nossa Senhora de Vieira [nota 1, p. 82], e, pela primeira vez, ainda em 1959, fala no “mutismo brasileiro” [Álvaro Vieira Pinto (1956), isebiano de grande influência em Freire e por ele fartamente citado, também usa a palavra “mutismo” quando se refere ao “total mutismo das grandes massas ignorantes e apáticas” (p.11), mas não remete ao sentido original derivado de Vieira] que é definido em nota específica:
“Entendemos por mutismo brasileiro a posição meramente expectante do nosso homem diante do processo histórico nacional. Posição expectante que não se alterava em essência e só acidentalmente, com movimentos de turbulência. A constante, mais uma vez era o mutismo, o alheamento à vida pública.” [p.83-84].
Alguns anos mais tarde, no “Educação como Prática da Liberdade” (1967), antes mesmo de retomar o tema da “inexperiência democrática”, Freire, registra a “emergência” do povo na história do Brasil e afirma:
“Se na imersão [o povo] era puramente espectador do processo [histórico], na emersão descruza os braços e renuncia à expectação e exige a ingerência. Já não se satisfaz em assistir. Quer participar. A sua participação (…) ameaça as elites detentoras de privilégios. Agrupam-se então para defendê-los (…). E, em nome da liberdade ‘ameaçada’, repelem a participação do povo. Defendem uma democracia sui generis em que o povo é um enfermo a quem se aplicam remédios. E sua enfermidade está precisamente em ter voz e participação. Toda vez que tente expressar-se livremente e pretenda participar é sinal de que continua enfermo, necessitando, assim, de mais ‘remédio’. A saúde, para esta estranha democracia, está no silêncio do povo, na sua quietude” (p. 55).
Nesta passagem de Freire, o povo que estava imerso (ausente) da história, emerge. E a influência do jesuíta seiscentista se manifesta claramente, tanto na ideia de “enfermidade” quanto na ausência de voz, no silêncio do povo, como características “estranhas” de democracia.
O segundo capítulo do “Educação como Prática da Liberdade”, é inteiramente dedicado à discussão da “inexperiência democrática”. Freire enfatiza a ausência de uma vida comunitária na experiência colonial brasileira. Apoiando-se em Oliveira Vianna [1949], compara a situação do Brasil com a das comunidades agrárias europeias (espanholas), nas quais, por meio da participação no poder local, o povo adquiriu uma vasta experiência política. Ele sustenta que “o Brasil nunca experimentou aquele senso de comunidade, de participação na solução de problemas comuns […] senso que se ‘instala’ na consciência do povo e se transforma em sabedoria democrática” [p. 70-71].
Após analisar as consequências da herança colonial e da ausência de autogoverno no Brasil, Freire conclui seu argumento fazendo um conjunto de perguntas sobre os “fatores adversos” de nossa colonização. Pergunta ele: “Onde buscarmos as condições de que tivesse emergido uma consciência popular democrática, permeável e crítica, sobre a qual se tivesse podido fundar autenticamente o mecanismo do estado democrático […]? Na ausência de circunstâncias para o diálogo em que surgimos, em que crescemos?” (p. 79-80, passim).
Ao particularizar “a ausência de circunstâncias para o diálogo em que surgimos, em que crescemos”, Freire retoma o tema do mutismo brasileiro. Retorna, então, a passagem do sermão da Visitação de Nossa Senhora de Vieira – já citado na tese de 1959 – e prossegue afirmando que o mutismo é característico da sociedade a que se negam a comunicação e o diálogo e, em seu lugar, se lhes oferecem “comunicados”. Insiste que essas sociedades se tornam preponderantemente “mudas” e chama a atenção para o fato de que o mutismo “não significa ausência de resposta, mas sim uma resposta que carece de criticidade.”
Logo depois, em 1968, Freire utiliza pela primeira vez a expressão “cultura do silêncio” referindo-se ao contexto global da América Latina. Seu trabalho junto ao Instituto de Capacitación y Investigación de la Reforma Agrária (ICIRA) chileno, na década de 60, colocou-o em estreito contato com os “campesinos”, em cujo ambiente cultural encontrou fortes traços de semelhanças com aquele dos camponeses do Nordeste brasileiro. Àquela época, portanto, ele vivenciou diretamente as consequências tanto da colonização portuguesa como da espanhola na América Latina. Assim, no Informe de Actividades do ICIRA para 1968, Freire alarga os horizontes conceituais do mutismo para toda a América Latina e coloca:
“Estamos convencidos – hoje, mais do que nunca – que aquilo que chamamos de cultura do silêncio, introjetada como “inconsciente coletivo” pelos camponeses, não pode ser transformada mecânica ou automaticamente pela mudança infraestrutural operada através do processo de reforma agrária. Esta cultura do silêncio, tão característica de nosso passado colonial, nutre-se e deita suas raízes no solo favorável da estrutura de propriedade da terra na América Latina. Histórica e culturalmente, esta cultura do silêncio assumiu a forma de uma “consciência camponesa”, ou na definição de Hegel, uma “consciência servil”.
No contexto latino americano é possível melhor compreender o significado mais profundo da cultura do silêncio. Todavia, Freire insiste que, embora sua análise esteja voltada primordialmente para a realidade latino-americana, “isto não invalida a possibilidade de sua aplicação a outras áreas do Terceiro Mundo, ou àquelas áreas das metrópoles que se identificam com o Terceiro Mundo enquanto ‘áreas de silêncio’.” [Para Freire (1976) “o conceito de ‘Terceiro Mundo’ é ideológico e político, não geográfico. O chamado ‘Primeiro Mundo’ possui dentro de si e contra si o seu próprio ‘Terceiro Mundo’. E o ‘Terceiro Mundo’ tem o seu ‘Primeiro Mundo’, representado pela ideologia dominante e o poder das classes dirigentes” (p. 105-127).] Dessa forma, ele argumenta no ensaio “Ação Cultural para a Liberdade” (original 1970; 1976):
“Só é possível compreender a cultura do silêncio se a tomarmos como uma totalidade que é, ela própria, parte de um todo maior. Neste todo maior devemos reconhecer também a cultura ou culturas que determinam a voz da cultura do silêncio. […] A compreensão da cultura do silêncio pressupõe uma análise da dependência enquanto fenômeno relacional que acarreta diversas formas de ser, de pensar, de expressão, tanto da cultura do silêncio como da cultura que “tem voz” […]. Apenas, quando o povo da sociedade dependente rompe as amarras da cultura do silêncio e conquista seu direito de falar – quer dizer, apenas quando mudanças estruturais radicais transformam a sociedade dependente – é que esta sociedade como um todo pode deixar de ser silenciosa face à sociedade metropolitana” (p. 70-71).
Pode-se afirmar, portanto, que cultura do silêncio é um conceito freireano que tem sua origem numa observação de Vieira no século XVII, se constrói a partir da análise isebiana da herança colonial brasileira e se consolida no quadro teórico da “teoria da dependência”, em voga início da segunda metade do século passado. Referindo-se inicialmente à sociedade brasileira, foi posteriormente ampliado para abranger não somente outros países da América Latina, mas todas as sociedades do Terceiro Mundo e os oprimidos em geral. Nesse sentido, Freire sustenta que os séculos de colonização portuguesa e espanhola na América Latina resultaram numa estrutura de dominação à qual corresponde uma totalidade ou um conjunto de representações e comportamentos. Esse conjunto ou “formas de ser, pensar e expressar” é tanto um reflexo como uma consequência da estrutura de dominação. A cultura do silêncio, por fim, caracteriza a sociedade a que se nega a comunicação e o diálogo e, em seu lugar, se lhe oferece “comunicados”, vale dizer, é o ambiente do tolhimento da voz e da ausência de comunicação, da incomunicabilidade.
Sociedade em que predomina a cultura do silêncio é aquela onde apenas uns poucos desfrutam a liberdade de expressão.
VI
Diante da histórica característica brasileira de cultura do silêncio, como lidar com a nossa questão? Haverá como separar mídia e comunicação no século XXI? Ou essas seriam palavras-chave constitutivas de um mesmo e secular problema, vale dizer, a ausência de condições concretas que possibilitem a formação de uma opinião pública plural e diversa onde a maioria das vozes se expresse e seja ouvida no debate público?
Vale a pena lembrar ainda que a perspectiva “dialógica” da comunicação elaborada por Paulo Freire, no seu ensaio “Extensão ou comunicação?” [1969], se diferencia da tradição dialógica clássica. Ele recorre à raiz semântica da palavra-chave comunicação e nela inclui a dimensão política da igualdade, da ausência de dominação. Para Freire, conceitualmente, a comunicação implica um diálogo entre sujeitos mediados pelo objeto de conhecimento que, por sua vez, decorre da experiência e do trabalho cotidiano. Ao restringir o significado da palavra comunicação a uma relação entre sujeitos, necessariamente iguais, toda “relação de poder” fica excluída.
A comunicação passa a ser, portanto, por definição, dialógica, vale dizer, de “mão dupla”, contemplando, ao mesmo tempo, o direito de voz e o direito de ser ouvido, além do direito de acesso aos meios tecnológicos necessários à plena liberdade de expressão. O próprio conhecimento gerado pelo diálogo comunicativo só será verdadeiro e autêntico quando comprometido com a justiça e a transformação social.
Até recentemente, este modelo da comunicação dialógica parecia inadequado para qualquer tipo de aplicação no contexto da comunicação midiatizada, vale dizer, da mídia. Na verdade, Freire teorizou a comunicação interativa antes da revolução digital, antes da internet e das redes sociais. Hoje as TICs reabrem a possibilidade da interação permanente e on-line no próprio ato da comunicação. O modelo normativo construído por Freire, portanto, ganha atualidade e passa a servir de ideal para a comunicação publica midiatizada.
Freire – mesmo sem que isso fosse explicitado – se filia à corrente do humanismo cívico do republicanismo moderno. A concepção implícita de liberdade na sua definição dialógica de comunicação equaciona autogoverno com participação política, contrariamente à liberdade negativa do liberalismo clássico.
Como sabemos, a liberdade liberal tem sua matriz no liberalismo que se constrói a partir do século 17 na Inglaterra, depois como reação conservadora à Revolução Francesa e se consolida no século 19 em complemento à ideia de mercado livre, isto é, à liberdade privada de produzir, distribuir e vender mercadorias. Prevalece o caráter pré-político da liberdade, como um direito exclusivo da esfera privada. A versão mais conhecida dessa perspectiva é a que reduz a liberdade à ausência de interferência externa na ação do indivíduo, a chamada liberdade negativa.
A liberdade republicana, ao contrário, se associa historicamente à democracia clássica grega, à república romana e ao humanismo cívico do início da Idade Moderna. Nela prevalece a ideia de liberdade associada à vida ativa, ao livre-arbítrio, ao autogoverno e à participação na vida pública.
São tradições distintas: a republicana se origina em Atenas, passa por Roma e se filia modernamente a pensadores como Maquiavel, John Milton e Thomas Paine. A liberal, em Hobbes, Locke, Benjamin Constant e, mais recentemente, em Isaiah Berlin.
Para Freire, o eixo principal da vida pública está na participação ativa, no direito à voz e a ser ouvido. A liberdade não antecede à política, mas se constrói a partir dela.
VII
Termino com mais questões do que respostas sobre as fronteiras conceituais e as diferenças entre a história da comunicação e a história da mídia.
Antes de concluir, todavia, relembro o legado de Darcy Ribeiro (1922-1997) que herdei como professor de sua universidade por quase 30 anos – a Universidade de Brasília. Dizia Darcy que uma instituição de ensino deve produzir conhecimento para transformar a realidade e contribuir para o desenvolvimento e a justiça social.
Nesses tempos em que a preocupação dominante na universidade, seja pública ou privada, muitas vezes parece reduzida à competição individualista entre pares que buscam obcecadamente o cumprimento de exigências burocráticas e a rápida ascensão funcional, reafirmo a urgente necessidade da democratização do acesso ao debate público hoje irremediavelmente mediatizado por tecnologias de comunicação. Não há como se falar em democracia sem comunicação pública, sem acesso a mídia, sem a universalização da liberdade de expressão, vale dizer, sem a formação de uma opinião pública republicana, plural e diversa.
Venício A. de Lima é jornalista e sociólogo, professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado), pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras) da UFMG e autor de Política de Comunicações: um Balanço dos Governos Lula (2003-2010), Editora Publisher Brasil, 2012, entre outros livros.
Artigo publicado no Observatório da Imprensa.