Radicalização e crise do Segundo Governo Vargas
A posição que os comunistas brasileiros assumiram em relação ao segundo governo Vargas causa perplexidade em grande parte dos estudiosos brasileiros. A sua definição como “títere do imperialismo norte-americano” soa estranha aos nossos ouvidos, que já se acostumaram com a caracterização deste como anti-imperialista e até mesmo como democrático-popular.
Um estudo mais profundo do conjunto das medidas implementadas durante esse governo nos conduz a afirmar que existiam graves limitações na análise dos comunistas. O segundo governo Vargas não era um governo subserviente ao imperialismo norte-americano. Por outro lado, não era também um governo de caráter anti-imperialista. Era, na verdade, um governo burguês permeado por inúmeras contradições e em permanente disputa entre as correntes entreguistas e nacionalistas. No entanto, no decorrer do tempo, a correlação de forças entre as duas tendências se deslocou num sentido favorável ao nacionalismo.
O importante é constatar que esse resultado não estava dado desde o início do processo. Em alguns momentos a luta pareceu perdida para as correntes que defendiam um projeto de desenvolvimento nacional autônomo. A correlação de forças pró-nacionalismo foi sendo construída através de acirrada luta política e social – que se traduziu também numa luta de ideias entre os defensores de programas econômicos distintos e contrapostos. Foi sendo redefinida também nos choques permanentes entre os interesses do país e os interesses do imperialismo norte-americano, que se colocava contra qualquer tipo de alternativa industrialista.
Tendo em vista as etapas dessa luta podemos, grosso modo, dividir o governo Vargas em duas fases distintas. Uma primeira fase – entre 1951 e 1952 – marcada pela política de conciliação com as correntes entreguistas e os interesses geopolíticos norte-americanos e uma segunda – entre 1953 e 1954 –, na qual predominou uma atitude mais decidida no sentido de dar curso à construção de um modelo de desenvolvimento nacional autônomo. Justamente nesse momento entrou em conflito aberto com o projeto do imperialismo, e de seus aliados no país, e acabou sendo derrubado por um golpe de Estado. Trataremos neste artigo apenas sobre esta segunda fase.
A luta operária e a radicalização do governo
No dia 26 de março de 1953 eclodiu uma das maiores greves operárias da história brasileira, que durou cerca de um mês e envolveu 300 mil trabalhadores paulistas. O Partido Comunista do Brasil, então PCB, teve um papel destacado nesse movimento. A greve causou um forte impacto na vida política nacional. Conflitos violentos ocorreram durante todo o movimento. Milhares de trabalhadores foram presos e espancados pela polícia. Poucas semanas depois entraram em greve nacional mais de 100 mil marítimos. E essas paralisações criaram as condições para que se constituísse um embrião de central sindical, o Pacto de Unidade Intersindical (PUI), sob hegemonia comunista.
Em meio à “greve dos 300 mil” realizou-se uma reunião do Comitê Nacional do PC do Brasil. O informe apresentado por Prestes manteve a visão negativa quanto ao governo Vargas, definindo-o como “um governo de traição nacional, um governo de guerra, de fome e de reação (…) que procura levar o país ao fascismo”. O texto concluía conclamando a necessidade de se “desencadear contra o atual governo a luta firme e sistemática que o desmascare e o isole das massas”. Era este o sentido dado às greves operárias dirigidas pelos comunistas.
Em 15 de junho de 1953, visando a recobrar o terreno perdido para os comunistas junto aos trabalhadores, Vargas indicou o gaúcho João Goulart para o Ministério do Trabalho. Este foi um político muito respeitado e ligado ao sindicalismo. A reforma ministerial, no entanto, foi mais abrangente e alterou seis dos sete ministros civis. O presidente trouxe para o ministério os seus velhos companheiros do movimento de 1930, como Osvaldo Aranha, José Américo de Almeida, Vicente Rao e Tancredo Neves. A reforma derrubou o americanófilo João Neves da Fontoura do Ministério das Relações Exteriores e o neoliberal Horácio Lafer do Ministério da Fazenda. Neste mesmo processo houve o fortalecimento da Assessoria Econômica da Presidência da República, comandada pelo nacionalista Rômulo de Almeida. Estava aberto o caminho para a radicalização da política nacionalista.
Em outubro de 1953 Vargas sancionou a lei que estabelecia o monopólio estatal do petróleo. Em 20 de dezembro denunciou a fuga de divisas promovida por empresas estrangeiras instaladas no país. Por isso, em janeiro de 1954, assinou um decreto estabelecendo o limite de 10% para remessas de lucros e dividendos ao exterior. Neste período foi criada a Eletrobrás e aprovado um ousado plano de eletrificação.
A resposta conservadora não tardou. Em pleno processo de reestruturação ministerial a oposição udenista denunciou o financiamento feito pelo Banco do Brasil ao jornal Última Hora de Samuel Weiner, único órgão de imprensa favorável ao governo.
Diante da ameaça representada pelo movimento grevista, no início de fevereiro de 1954 Goulart apresentou a proposta de reajuste de 100% no salário-mínimo. Algo inédito na história brasileira. Um valor 54% acima da inflação acumulada desde o último reajuste. Levantou-se uma onda de protestos por parte da burguesia e dos setores conservadores da sociedade. A UDN lançou um manifesto denunciando Goulart como subversivo. Em 8 de fevereiro, oficiais das forças armadas lançaram o documento conhecido como Memorial dos Coronéis. Surgiram acusações de que Vargas e Jango queriam instaurar entre nós uma República Sindicalista.
Diante de tal pressão o governo ensaiou um recuo e, no dia 22, retirou Goulart do ministério. No entanto, a destituição não aplacou a oposição de direita, apoiada pelo imperialismo estadunidense. Em abril, João Neves da Fontoura, ex-ministro de Vargas, denunciou a suposta articulação de um pacto entre os governos brasileiro, chileno e argentino visando a se oporem aos interesses dos Estados Unidos na região, que seria o Pacto ABC. Em 16 de junho de 1954, a UDN solicitou o impedimento de Vargas – solicitação essa que foi derrotada por uma ampla margem de votos.
Então, Vargas decidiu manter a radicalização do regime. O objetivo era aproximá-lo das classes populares. No primeiro de maio de 1954, num ato inesperado, fez um discurso no qual afirmou: “Hoje vocês estão com o governo. Amanhã vocês serão o governo” e apresentou o decreto de reajuste de 100% do salário-mínimo, índice que havia sido o motivo para a destituição de Goulart poucos meses antes.
O governo fazia uma inflexão significativa na sua estratégia e apontava para uma aliança preferencial com as classes populares. Era o fim da política de conciliação. O PCB não compreendeu este movimento ocorrido em meados de 1953, após a reforma ministerial, mas a burguesia brasileira sim e, por isso, elevou o tom da oposição ao governo. Delineava-se uma saída golpista.
No seu projeto de programa publicado em dezembro de 1953, quando Vargas já havia avançado na sua guinada à esquerda, o PCB erroneamente ainda afirmava: “O governo Vargas tudo faz para facilitar a penetração do capital americano em nossa terra, a crescente dominação dos imperialistas norte-americanos e a completa colonização do Brasil pelos Estados Unidos (…). A política externa do governo Vargas é ostensivamente ditada pelo Departamento de Estado norte-americano, sendo a delegação brasileira na ONU mundialmente conhecida por sua atuação subserviente ao governo dos Estados Unidos”.
Segundo os comunistas brasileiros, o governo de Vargas continuaria sendo “um governo de preparação de guerra e de traição nacional, um governo inimigo do povo. O governo Vargas é um instrumento útil e necessário aos imperialistas americanos e que facilita a completa colonização do Brasil pelos Estados Unidos”. E concluía o documento: “O povo brasileiro levantar-se-á contra o atual estado de coisas, não admitirá que o governo de Vargas reduza o Brasil a colônia dos Estados Unidos. O atual regime de exploração e opressão a serviço dos imperialistas americanos deve ser destruído e substituído por um novo regime, o regime democrático e popular”. Isto foi escrito quando o imperialismo já estava em franca ofensiva visando a derrubar o governo e substituí-lo por um governo títere.
O golpe contra Vargas
A tentativa de assassinato do jornalista oposicionista Carlos Lacerda e a morte acidental de um major da aeronáutica, ocorridas em 5 de agosto de 1954, seriam os pretextos encontrados para que um golpe fosse dado contra Getúlio. Apesar do envolvimento do chefe da guarda pessoal do presidente, as investigações feitas pelos próprios inimigos do governo não comprovaram qualquer envolvimento direto de Vargas no atentado.
No dia 9 de agosto o jornal Correio da Manhã pediu que Vargas renunciasse. “A renúncia do Presidente da República”, afirmou o jornal, “não significa uma derrota, nem uma humilhação. Deixará o governo sem ser deposto ou vencido (…). Um regime não é um homem, e está nas mãos do Senhor Getúlio Vargas o gesto patriótico de um sacrifício pessoal para que se mantenha de pé o regime e íntegra a Constituição, juntamente com a ordem pública e a tranquilidade dos espíritos”. A mesma conclamação era feita pelo conjunto da grande imprensa brasileira – à exceção do jornal Última Hora. A oficialidade das Forças Armadas, dirigida pelos setores entreguistas, já se movimentava para derrubar o governo constitucional.
Em 24 de agosto, diante do golpe militar em curso, o presidente se suicidou. As condições de sua morte, e especialmente o forte teor nacionalista de sua carta-testamento, levaram a uma verdadeira rebelião popular nas grandes cidades brasileiras. As redações dos jornais e sedes dos partidos oposicionistas foram atacadas pela multidão enfurecida. A massa tentou atacar a embaixada norte-americana, encarada como principal articuladora do golpe de Estado. O líder civil da campanha contra Getúlio, e pivô da crise que levou ao golpe de Estado e ao suicídio, Carlos Lacerda, foi obrigado a se esconder e depois deixou o país.
Até as vésperas do golpe os comunistas se aferraram na sua postura de oposição ao governo. Em 6 de março, pelas páginas do jornal Voz Operária, Diógenes Arruda Câmara reafirmou a opinião de que Vargas era “um instrumento servil dos imperialistas norte-americanos”. No dia 12 de agosto o jornal comunista paulista Notícias de Hoje avaliou que os conflitos políticos de Vargas com a oposição entreguista, encabeçada pela UDN, eram “uma luta entre dois bandos perfeitamente idênticos”, pois os dois grupos defenderiam “uma política de submissão completa aos monopólios norte-americanos e ao governo de Washington”.
Ainda em 24 de agosto, dia do golpe e suicídio de Vargas, outro jornal comunista – Imprensa Popular – publicou uma longa entrevista de primeira página com Luiz Carlos Prestes, secretário-geral do PCB, na qual ele afirmava: “O sr. Vargas já confessou repetidamente que não se sente bem nas suas roupagens de presidente constitucional, mas falta-lhe ainda a força indispensável para realizar o golpe de Estado, liquidar os últimos vestígios constitucionais para implantar a ditadura terrorista que almeja. Neste sentido, a ameaça maior vem da UDN, que cinicamente ainda pretende passar por oposicionista e que tem à frente um grupelho de generais fascistas (…) procuram apresentar-se como salvadores da pátria e pensam ainda poder enganar o povo, criar um ‘novo governo’ (…) que lhe permita, melhor que Vargas, realizar a política de traição nacional, de fome e reação impostas pelos trustes norte-americanos e pelo governo dos Estados Unidos”. Prestes concluía pela necessidade de “defender a Constituição e impedir qualquer golpe de Estado e militar, venha de onde vier”. Em meio a um golpe das forças entreguistas, ligadas à UDN e ao imperialismo estadunidense, Prestes ainda tinha dúvidas de onde ele viria.
No mesmo jornal outro artigo afirmava: “Os patrões norte-americanos que não estão contentes com Vargas, cuja desmoralização cresce dia a dia, tramam, através de seus agentes substituí-lo por outro títere ainda mais dócil e menos desmoralizado”. Os comunistas brasileiros, mesmo diante da ofensiva reacionária contra Vargas, não conseguiram ver diferenças entre os programas político-econômico dos dois grupos conflitantes. Vargas continuava sendo, no plano interno, o principal inimigo a ser vencido. A oposição udenista era criticada por ser uma falsa oposição que em nada diferia de Vargas. Por esta posição antiVargas os jornais comunistas também acabaram sendo hostilizados pela massa popular, embora o principal alvo da fúria popular fosse a direita.
Dando uma guinada abrupta na sua tática, os comunistas tentaram se aproximar das massas e dos políticos getulistas. Um documento publicado logo após a morte de Vargas afirmava: “O momento exige que trabalhistas e comunistas se deem fraternalmente as mãos e juntos lutem em defesa das leis sociais conquistadas” e apelava para que os “operários e operárias, camaradas trabalhistas”, reforçassem “as fileiras do Partido Comunista”. Sob o impacto da morte de Vargas e a redução das tensões internacionais, a tática dos comunistas brasileiros tornou-se mais flexível e menos sectária. O Partido passou a propor políticas de alianças que envolvessem outros partidos como o Partido Trabalhista Brasileiro e o Partido Socialista Brasileiro e mesmo de setores de partidos como o Partido Social Democrático (PSD) e o Partido Social Popular (PSP). Um processo que culminou no apoio dos comunistas à chapa Juscelino-Jango, que venceu a eleição presidencial de 1955.
* Essa é a segunda parte de um ensaio mais longo intitulado O segundo governo Vargas e suas contradições, publicado no Portal Vermelho em 2004. Se interessar clique aqui
** Augusto C. Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros e Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.
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