O caso português é emblemático da totalidade da crise e de seus desdobramentos sobre o mundo do trabalho europeu. Entre 2008 e 2012, o PIB da Grécia recuou 20%, de Portugal 7% e da Espanha 4%. Objetivamente, entre as economias mais atingidas pela crise, a portuguesa está a meio caminho entre o colapso grego e a esperança de recuperação espanhola. Além disso, tendo em vista a influência direta do ex-Primeiro Ministro lusitano, José Manuel Durão Barroso, atual presidente da Comissão Europeia, sobre o Ministro das Finanças, Vitor Gaspar, seu antigo assessor e ex-funcionário do Banco Central Europeu, Portugal transformou-se em um autêntico laboratório vanguardista para as experiências de ajuste executadas em diferentes ritmos no sul da Europa.

Na realidade, trata-se de uma agressiva política de corte dos gastos públicos com efeitos devastadores sobre o nível de vida das famílias trabalhadoras. Apenas para citar dois exemplos, em setembro do ano passado, o Primeiro Ministro português, Passos Coelho, anunciou o aumento da contribuição dos trabalhadores para o sistema de segurança social de 11% para 18%, ao mesmo tempo em que desonerava a contribuição patronal. Os ataques aos direitos trabalhistas, sintetizados no novo código do trabalho português aprovado em agosto de 2012, são seguidos pela política de cortes salariais e pela demissão em massa – ou aposentadoria compulsória – de inúmeros grupos de trabalhadores mais velhos e mais experientes em termos políticos e sindicais. (Apenas para ilustrar: em março deste ano, os estivadores do porto de Lisboa receberam uma carta informando que seus salários passariam de 1.700,00 euros por mês para 550,00 euros).

O objetivo final dessa política é, não apenas capitalizar os bancos e restabelecer a taxa de lucro das empresas por meio de uma derrota histórica dos trabalhadores lusitanos e do decréscimo do custo unitário da força de trabalho, mas transformar a estrutura social portuguesa em uma plataforma de exportações de bens de consumo não duráveis. Isto representa um flagrante recuo em relação ao esforço nacional, associado e tardio, vale lembrar, desde a década de 1960, ao menos, de industrializar Portugal conforme os moldes do fordismo semiperiférico.

De fato, a financeirização da economia tem perseguido esse objetivo: na suposta impossibilidade de competir com os manufaturados chineses, os diferentes países semiperiféricos devem ser reinseridos em condições socialmente desastrosas na nova divisão internacional do trabalho. Enquanto existem hoje 1 milhão e 400 mil desempregados em Portugal, a lucratividade dos principais grupos empresariais exportadores (EDP, Galp, Mota Engil, Grupo Melo e Lactogal, entre outros) aumentou nos últimos três anos. Isto revela a natureza regressiva do capitalismo globalizado: de alternativa ao capitalismo neoliberal estadunidense, a União Europeia transformou-se em um modelo de involução social a ser evitado.

Em se tratando de reviravoltas históricas, não há como não nos lembrarmos daquela afamada passagem do Manifesto comunista onde Marx e Engels afirmam: “Tudo que é sólido e estável se volatiliza, tudo que é sagrado é profanado e os homens são, finalmente, obrigados a encarar com sobriedade e sem ilusões sua posição na vida”. Para 115 milhões de trabalhadores em risco de pobreza e de exclusão social vivendo na Europa em 2010, a atual ditadura das finanças significou a dolorida dessacralização da época burguesa.  

Quais os efeitos da combinação de uma política de ajuste estrutural apoiada sobre a “austeridade fiscal” com uma política de reestruturação do trabalho baseada na acumulação flexível sobre os trabalhadores? Segundo dados divulgados recentemente pelo instituto estatístico da União Europeia, o Eurostat, o número de portugueses vivendo em risco de pobreza e de exclusão social chegou, em 2010, aos 2,7 milhões, isto é, 25,4% da população total do país. Em consequência, aqueles centros sociais de Portugal que oferecem comida e abrigo estão superlotados. Em suma, o país foi conduzido a uma situação na qual a população trabalhadora aproxima-se aceleradamente do limiar que define o “precariado”, isto é, uma condição proletária plasmada, por um lado, pelo aumento da exploração econômica e, por outro, pelo risco permanente da exclusão social.

Conforme os padrões portugueses, essa condição social encontra uma tradução monetária, ou seja, viver com menos de 434 euros, algo como 1.190 reais, por mês. Trata-se do valor limítrofe do pauperismo em Portugal. Em 2010, 1,2 milhões de cidadãos portugueses sobreviviam com uma renda inferior a esta. Estamos falando em mais de 11% da população do país, tendo aumentado 12% em relação a 2009. Ou seja, ao aplicar obedientemente as políticas propugnadas pela Troika, o governo português empurrou mais 150 mil de seus cidadãos rumo ao abismo social. Não é de se espantar que tanto José Sócrates, quanto seu sucessor, Pedro Passos Coelho, desfrutem de popularidade tão raquítica.

No Brasil, a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República entende que a chamada “nova classe média” seria formada por aqueles cuja renda está entre 291 e 1.019 reais mensais. Ou seja, estamos abaixo da linha da pobreza em Portugal. Uma comparação entre os custos de vida em São Paulo (12ª cidade mais cara do mundo) e Lisboa (108ª), apenas serviria para adicionar injúria à ofensa. Além da conclusão de que os padrões portugueses para contar os pobres são muito mais realistas do que os brasileiros, esta comparação grosseira nos leva a outra ponderação. E nisso, somos de fato imbatíveis. A maneira claramente otimista como encaramos nosso futuro.

Com o mercado de trabalho aquecido, tornou-se usual encontrarmos casais onde ambos estão empregados e recebem juntos 2.000 reais mensais. Frequentemente, eles provêm de experiências de informalidade, tendo conquistado um lugar ao sol no mercado de trabalho formal: discreto, porém, efetivo, progresso social. É de se esperar que esse casal olhe para o futuro com uma expectativa otimista. No caso de Portugal, milhares de famílias trabalhadoras que foram seduzidas pela promessa da prosperidade com proteção social encaram atualmente o abismo.

É claro que diferentes percepções da trajetória ocupacional futura alteram a avaliação política a respeito da situação presente. Basta considerarmos a popularidade dos governos de Pedro Passos Coelho e de Dilma Rousseff pra obtermos uma prova disso. No entanto, uma questão objetiva emerge da comparação com a atual crise europeia: o governo brasileiro deliberadamente subestimou a magnitude e a profundidade de nossa pobreza em benefício de uma ideologia conservadora cuja capacidade de convencimento se volatiliza diante do mínimo escrutínio crítico. Como diriam Marx e Engels, ao colherem lições da nova época burguesa, é necessário encarar com “sobriedade e sem ilusões nossa posição na vida”. Caso contrário, o otimismo em excesso poderá bloquear nossa percepção do perigo que se avizinha.

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Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (São Paulo, Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (São Paulo, Xamã, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista, tema abordado em seu mais novo livro, A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

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