CNV recomenda revisão da Anistia e punição a torturadores
A Comissão Nacional da Verdade declarou nesta terça-feira (21), que irá recomendar que agentes suspeitos de terem cometido crimes durante a ditadura militar (1964-1985) sejam responsabilizados judicialmente. A coordenadora da comissão, Rosa Cardoso, disse que o órgão vai seguir os tratados internacionais que classificam crimes de lesa-humanidade, tortura e assassinato por razões religiosas, raciais ou políticas.
“É da natureza da comissão aceitar os princípios internacionais dos direitos humanos e dentro destes princípios, os crimes de lesa-humanidade são imprescritíveis e vamos recomendar que estes casos sejam submetidos à uma jurisdição internacional”, disse Rosa Cardoso, que descartou a possibilidade de a comissão propor a revisão da Lei de Anistia. “Quem tem que propor isso é a sociedade civil”, argumentou.
“As autoanistias, dentro do direito internacional, não valem. Se nós estamos de acordo com isso, nós vamos ter, sim, que recomendar que esses casos sejam judicializados pelo direito interno”, afirmou Rosa Cardoso.
Outros integrantes da Comissão também indicaram a intenção do colegiado de recomendar em seu relatório final a revisão da Lei de Anistia, que impede a responsabilização de agentes públicos envolvidos nas mortes, torturas e desaparecimentos da ditadura militar.
Em 2009, o Supremo Tribunal Federal decidiu manter o entendimento de que a Lei de Anistia se aplica a crimes cometidos por ambos os lados na ditadura. Desde a criação da comissão, militares afirmam que o objetivo final do grupo é responsabilizá-los pelos crimes ocorridos. A maioria dos países da América Latina que tiveram ditaduras militares violentas julgaram e condenaram autoridades que cometeram crimes contra a humanidade, como no caso de Pinochet e Videla.
Paulo Sérgio Pinheiro confirmou as declarações da nova coordenadora. ” A minha posição é igual à da sentença da Corte [Interamericana de Direitos Humanos, que em 2010 entendeu que as graves violações aos direitos humanos no Brasil devem ser punidas].”
Para Maria Rita Kehl, também integrante da comissão, “se a sociedade vai se mobilizar ou não para medir alguma mudança nos termos dessa Lei de Anistia, à qual fomos praticamente submetidos ao final da ditadura, isso vai depender muito da imprensa”.
Tortura e terrorismo
Os integrantes da comissão desmentiram a versão de que a prática de tortura tenha sido efetivada em resposta à luta armada contra a ditadura, iniciada em 1969. “A prática da tortura no Brasil como técnica de interrogatório nos quartéis é anterior ao período da luta armada, ela começa a ser praticada em 1964”, disse a historiadora Heloísa Starling, assessora da comissão. “O que é importante notar é que ao contrário do que supunha boa parte da nossa bibliografia, o que nós temos é a tortura sendo introduzida como padrão de interrogação nos quartéis em 64 e explodindo a partir de 69,” argumentou.
O balanço divulgado pela comissão considera que o uso da violência política permitiu ao regime construir um Estado sem limites repressivos. “Fez da tortura força motriz da repressão no Brasil. E levou a uma política sistemática de assassinatos, desaparecimentos e sequestros.”
A comissão revelou ainda que a Marinha ocultou informações sobre mortes na ditadura, quando foi questionada em 1993 pelo governo Itamar Franco.
De acordo com levantamentos da Comissão da Verdade, cerca de 50 mil pessoas foram presas só no ano de 1964, em operações nos estados da Guanabara (atual Rio de Janeiro), de Minas Gerais, de Pernambuco, do Rio Grande do Sul e de São Paulo. A comissão identificou prisões em massa em navios-presídios.
A comissão também relatou ter identificado 36 centros de tortura em sete estados, inclusive em duas universidades – na Universidade Federal do Recife e na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. “Nós identificamos que as pessoas foram presas dentro dos campus da universidade e as práticas de violência ocorreram dentro do campus”, disse Heloísa Starling.
A historiadora disse que a comissão está no caminho de desmontar a tese de que a tortura foi praticada sem o consentimento do alto escalão militar. Ela apresentou um organograma de 1970, ano de criação do Centro de Operações de Defesa Interna (Codi), que mostra que as informações sobre o que ocorria no órgão eram de conhecimento do alto escalão do Exército, da Marinha e da Aeronáutica.
Toda a bibliografia, segundo a assessora, mostra que a estrutura de comando vai até o segundo nível, onde está o Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa), Centro de Informações do Exército (CIE) e o Centro de Informações da Marinha. “É muito pouco provável que o general Médici [presidente Emílio Garrastazu Médici] não recebesse informações do seu ministro mais importante, que era o ministro do Exército, Orlando Geisel”, disse.
Marinha ocultou mortes
Em 1993, o então presidente Itamar Franco determinou ao ministro da Justiça, Mauricio Correa, o levantamento de informações com a Marinha, o Exército e a Aeronáutica sobre desaparecidos na ditadura militar. A Comissão da Verdade conseguiu identificar 12.072 documentos do Centro de Informações da Marinha (Cenimar) sobre 11 desaparecidos e fez um cruzamento com as respostas prestadas pela Força Armada ao governo Itamar Franco.
Segundo a comissão, um dos documentos, de dezembro de 1972, tratava da morte do ex-deputado Rubens Paiva. Em 1993, a Marinha informou ao Congresso Nacional, ao Ministério da Justiça e à Presidência da República a versão oficial de que Paiva teria fugido quando estava sob custódia do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) do 2º Exército, no Rio de Janeiro, e que seu paradeiro era desconhecido.
“O primeiro resultado parcial [da comissão] é o fato de que a Marinha Brasileira ocultou deliberadamente informações ao Estado brasileiro, já no período democrático. A importância desse documento é que indica que existem na Marinha Brasileira 12 mil páginas referentes aos 11 desaparecidos que apresentamos aqui”, disse a historiadora Heloísa Starling, responsável por sistematizar as informações levantadas pela comissão.
De acordo com a comissão, o cruzamento das respostas das Forças Armadas com os documentos obtidos durante a investigação apontou que a Marinha ocultou as mortes de pessoas. “O Cenimar foi um dos organismos mais ferozes de repressão da ditadura. É uma relação muito extensa das informações que a Marinha tinha sobre as pessoas. Ela sabia que estavam mortas”, disse.
Números do balanço
Os integrantes da Comissão Nacional da Verdade apresentaram o balanço de um ano de atividades no Conjunto Cultural Banco do Brasil (CCBB), na capital federal. Criada para apurar violações de direitos humanos no contexto da ditadura militar, a comissão completou um ano na quinta-feira (16 de maio de 2013). Recentemente, os membros da comissão apresentaram à presidenta Dilma Rousseff um balanço das atividades do grupo e as demandas da sociedade civil para que os trabalhos sejam prorrogados por seis meses.
O decreto de criação do grupo prevê a conclusão das atividades em maio de 2014, mantendo-se o prazo atual, a comissão teria apenas mais seis meses de investigação, pois a previsão é que a fase de elaboração do relatório dure um semestre.
Um dos motivos que levaram ao pedido de adiamento foi a pressão de movimentos sociais, da União Nacional dos Estudantes (UNE) – que também formou sua instância de investigação – e das comissões da verdade nos estados, que pediram a prorrogação dos trabalhos para poder contribuir de forma mais efetiva com os trabalhos.
Até o momento, os estados de Alagoas, de São Paulo, de Pernambuco, de Santa Catarina, do Espírito Santo, Amazonas, Maranhão, Paraná, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e da Bahia já criaram suas comissões. Os estados de Minas Gerais e do Tocantins devem criar suas comissões em breve. Além dos estados, entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), universidades também criaram suas comissões.
Os integrantes da comissão também aguardam uma decisão da presidenta Dilma Rousseff sobre a situação do presidente do grupo, Gilson Dipp, que já entregou seu pedido de desligamento dos trabalhos. No ano passado, Dipp teve que se licenciar dos trabalhos ao enfrentar problemas de saúde. Além disso, ele acumula a função com o cargo de vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
De acordo com dados revisados pela equipe da comissão, 268 depoimentos (de vítimas, testemunhas e agentes da repressão da ditadura civil-militar de 1964 a 1985) foram tomados no primeiro ano de atividades.
Foram ouvidas 207 vítimas e testemunhas de graves violações de direitos humanos cometidas no período de análise da comissão (1946-1988). Dos depoimentos, 59 foram tomados em entrevistas reservadas e 148 durante audiências públicas realizadas pela comissão nas cinco regiões do Brasil.
Até o momento, a comissão já promoveu 15 audiências públicas e uma tomada pública de depoimentos do vereador de São Paulo Gilberto Natalini (PV-SP) e de agentes da repressão, em que foram ouvidos Marival Chaves e Carlos Brilhante Ustra. A Anistia Internacional, entidade reconhecida internacionalmente por atuar na defesa dos direitos humanos, sugeriu à comissão uma sessão pública para tomar o depoimento da presidenta Dilma.
Mais 35 pessoas que estiveram diretamente envolvidas ou que conheceram as práticas usadas pelo regime para violar direitos humanos foram ouvidas em audiências privadas. Desse total, 13 depuseram sob convocação.
Entre os avanços da Comissão da Verdade estão as investigações sobre o desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva, a correção do atestado de óbito do jornalista Vladimir Herzog e as investigações sobre a morte do ex-presidente João Goulart, a Operação Condor e sobre as violações de direitos cometidas contra os índios durante a ditadura militar.
Com informações das Agências de Notícias