A indústria do terror
Terrorismo pressupõe militância em uma organização, ou pelo menos a tentativa de intimidar uma população ou governo com um objetivo político definido. Não parece o caso dos autores do atentado de Boston: não há sinais de laços com grupos organizados, inspiração de um líder político ou religioso ou reivindicação do atentado em nome de uma causa. Ao contrário, por exemplo, de Andreas Breivik, que fez questão de se explicar em um longo manifesto.
Em outros aspectos, Tamerlan Tsarnaev se parece ao norueguês: foi por conta própria que radicalizou e buscou vídeos e foros sobre extremismo. Breivik intitula-se um cruzado do Ocidente contra o Islã, o feminismo e o marxismo e, apesar de não pôr os pés numa igreja há anos, professa ser um “cristão cultural”. O checheno era um muçulmano cultural, que se imaginava numa Jihad, mas raramente ia à mesquita. Sua ideologia, tanto quanto suas bombas, foi uma bricolagem caseira a partir de dados da internet e parece nascida mais de fantasias pessoais que de engajamento real. Os separatistas chechenos têm uma rede de apoio em Boston e Tamerlan pode tê-los contatado ali ou no Daguestão, que visitou em 2012, mas não é crível que apoiassem o atentado: sua luta é contra a Rússia, não contra os Estados Unidos.
Já o comportamento de autoridades e da mídia dos EUA indica não só equívocos policiais e jornalísticos, como a vontade de usar o atentado para intimidar com fins políticos precisos. Mais de 10 mil foram mortos nos EUA (sem contar suicídios) por armas de fogo em 2012, 86 em carnificinas em massa, mas isso é tratado quase como rotina, sequer um motivo sério para restringir a venda de fuzis automáticos. Já a explosão de um par de bombas caseiras deixou uma grande cidade praticamente sob estado de sítio, levou os EUA a emitir um alerta global aos 190 países da Interpol e políticos conservadores a exigir a espionagem rotineira de mesquitas, a cobertura de cidades inteiras por câmeras de segurança e leis mais duras contra imigrantes. Uma palestina e um bengali foram agredidos em Boston e Nova York. Não é receio objetivo da violência, mas exploração do medo subjetivo do “outro”.
Usuários de redes sociais, ao competir por atenção na rede se arrogaram investigadores por trás de seus teclados, selecionando “suspeitos” de fotos da multidão em Boston e os procurando nas redes sociais com mais preconceitos que critérios. Um post no Banoosh, por exemplo, marcava um deles com base nos seguintes “indícios”: “sozinho”, “pardo”, “mochila preta” e “não olhando”, mesmo se dezenas de pessoas enquadradas na foto também não olhavam a corrida, não pareciam acompanhadas e pelo menos duas destas eram homens com grandes mochilas pretas – mas, claro, eram brancos.
O diretor de uma dessas redes, a Reddit, desculpou-se depois pelas especulações perigosas desse inusitado crowdsourcing, que causaram graves problemas a inocentes. Mas os erros mais infames foram do tabloide New York Post, do grupo Murdoch, que repercutiu tais conjeturas e lhes deu o peso da mídia profissional. Antes afirmara que um saudita ferido na explosão fora preso pelo atentado (foi interrogado e a única vítima a sofrer uma busca em seu apartamento, mas jamais detido). A CNN e a AP o seguiram, na ânsia insana de reter a audiência e competir com o Twitter em agilidade, mas ao menos se retrataram.
Não foi o caso do Post, que, para corrigir a primeira afirmação, publicou na primeira página: “Os homens da bolsa: federais buscam esses dois”. Eram jovens marroquinos “pardos”, um dos quais de mochila, em uma das muitas fotos enviadas ao FBI de uma página do Reddit chamada “Encontre os bombardeiros de Boston”. Ao ouvir comentários sobre a denúncia na rádio policial, Anonymous (pseudônimo de um conhecido grupo de hackers) divulgou no Twitter que a polícia “identificara os nomes dos suspeitos”, como uma confirmação. Um dos rapazes, apavorado, buscou a polícia, que o dispensou com a recomendação de fechar sua conta no Facebook, mas continuou com medo de ir à escola.
Quando o FBI revelou as imagens ainda sem o nome dos suspeitos, brancos caucasianos no sentido mais estrito da palavra, outros amadores julgaram identificar no mais jovem um estudante de origem indiana desaparecido há semanas e divulgaram seu nome e perfil. A família, aterrorizada, retirou do Facebook a página onde pedia informações sobre o rapaz, encontrado morto dias depois. Quando os verdadeiros nomes foram revelados, um desocupado criou no Twitter um perfil falso do jovem suspeito no qual divulgou falsas ameaças. O editor do site de notícias Daily Caller jactou-se na rede de ter descoberto o “verdadeiro perfil” de Dzhokhar e outra vez uma falsa notícia foi citada na rádio policial, ouvida por hackers que realimentaram o boato como “confirmado pela polícia”.
Houve vários relatos de outras bombas e detonações “controladas” na cidade, depois desmentidos. O assalto a uma loja de conveniência foi associado aos suspeitos e a polícia depois negou relação com o caso. Em meio à perseguição, um homem preso e despido pela polícia foi mostrado pela tevê como um dos suspeitos, mas aparentemente foi libertado em seguida sem explicações. A polícia alegou que Dzhokhar matou o irmão ao atropelá-lo em fuga, mas os médicos que tentaram salvá-lo não viram sinais de atropelamento, apenas um moribundo crivado de balas e ferido por uma granada.
Mídias respeitadas somaram erros e contradições jamais explicados aos relatos já confusos da polícia, o que decerto alimentará inúmeras teorias conspiratórias. Uma delas não soa totalmente absurda: terão sido os irmãos induzidos pelo próprio FBI? O FSB russo (ex-KGB) suspeitou de Tamerlan em 2011 e pediu ao FBI para investigá-lo. O Bureau de início negou-se, mas depois admitiu que o interrogou e parentes antes de arquivar o caso. Houve muitos casos oficiais de amadores instigados a planejar atentados por agentes provocadores federais, que posaram como radicais islâmicos para prendê-los em flagrante. Se um caso como esse escapasse ao controle, o que não fariam os responsáveis para encobrir o erro?
Publicado em Carta Capital