Juro e tomate: o molho azedo do laissez-faire
O aumento da taxa de juro de 0,25%, na reunião do Copom desta 4ª feira, a rigor não muda um centímetro do cenário econômico. Nem é tragédia, nem significa a salvação da lavoura. Não resolve nenhum dos desafios colocados ao desenvolvimento do país. É mais um sinal de satisfação aos mercados para dizer que a ortodoxia não tem o monopólio da cautela em relação ao comportamento dos preços. Se e quando necessário, o governo age. O recado mira 2014.
Os interesses rentistas e a mídia que os vocaliza certamente farão uma leitura diferente. Desde já esfregam as mãos e flexionam os músculos.
Tem 45 dias até a próxima reunião do Copom para calibrar uma nova escalada, ancorada num poder de difusão capaz de pautar o país e o governo. Seria precipitado dizer qual será o vilão da vez. Mas eles conseguem um.
A instabilidade climática que indexou o país ao tomate nas últimas semanas veio para ficar. O Brasil é o quinto lugar do planeta mais alvejado por desastres climáticos na última década. O semi-árido nordestino vive desde outubro uma das piores secas em meio século.
Sendo um dos cinco maiores produtores agrícolas do planeta, o país convive com comida cara numa momento em que as cotações internacionais perdem fôlego, por conta da estagnação global.
Desde agosto do ano passado, segundo o IBGE, bebidas e alimentos acumulam alta da ordem de 16% no país. A deflação mundial das commodities bateu em 9% no mesmo período, diz a FAO.
A resposta ortodoxa para eventos climáticos extremos será sempre a mesma. ‘Sobe o juro!’. Não importam os efeitos. Tampouco as causas.
A ausência de uma política estatal de estoques de alimentos, por exemplo, acentua a vulnerabilidade ao clima desordenado.
O Brasil é conhecido pela pujança de sua agricultura (de custos sociais e ambientais nem sempre computados no saldo da eficiência). A safra de grãos deste ano deve girar em torno de 180 milhões de toneladas. Nos últimos 20 anos o país aumentou em 175% a produção graneleira (com a ressalva anterior). Como, então, fica refém de uma alta de preços, que acua o governo em descompasso com a tendência mundial?
Tido como um dos cinco maiores celeiros do mundo, o Brasil simplesmente não dispõe dos ditos celeiros para intervir no abastecimento. A rede pública de armazéns foi privatizada e sucateada nos governos Collor e FHC. Nunca mais foi recomposta. A tarefa de formar estoques foi transferida à iniciativa privada, gerando fenômenos desconcertantes. Sem ter onde armazenar safras recordes, regiões produtoras ‘guardam’ milhões de toneladas em caminhões, que atravessam o país todos ao mesmo tempo. A frota de armazéns ambulantes cria congestionamentos cinematográficos. Imediações dos portos fazem a alegria da mídia conservadora no auge da safra. A mesma mídia que no passado aplaudiu a extinção das políticas de abastecimento e a privatização da armazenagem.
Não só. O Nordeste nesse momento pode ter seu rebanho bovino dizimado pela seca. Falta milho para o gado. A região brasileira mais vulnerável ao clima –e ao mesmo tempo, a mais previsível– não dispõe de uma rede de armazéns capaz de evitar o cíclico sacrifício de seus rebanhos.
O déficit de armazenagem no país é da ordem de 25 milhões de toneladas. Concentra-se em dois polos: no Centro-Oeste, hoje a maior região produtora de grãos; e no Nordeste, a mais vulnerável e carente de abastecimento. Coisas dos livres mercados.
Esta semana, quando já galgava o patíbulo do Copom, o governo, finalmente, decidiu redefinir a atuação da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). A ordem é para a Conab recuperar o tempo perdido. E espetar armazéns estatais estratégicos em todo o território nacional. Dos 17.962 armazéns disponíveis no Brasil apenas 4% são públicos. O restante o governo aluga. Gasta R$ 300 milhões por ano com isso.
Não é uma jabuticaba brasileira. Nas últimas décadas, a supremacia neoliberal colonizou a agenda do desenvolvimento. A terceirização das responsabilidades do Estado aos ditos ‘livres mercados’ contaminou a esfera da segurança alimentar. Nações, sobretudo as mais pobres, e organismos multilaterais, foram incentivados a renunciar ao comando da soberania alimentar. A ordem era transferir aos livres mercados –‘mais eficientes e ágeis’– a incumbência do suprimento.
Se o mercado mundial é capaz de atender a demanda just-in-time, e a preços mais competitivos, por que carregar estoques estratégicos de custos onerosos? A formação dos preços deveria fluir livre do intervencionismo; a salvo de políticas de abastecimento; sem o ruído dos estoques reguladores estatais.
O laissez-faire moderno materializa-se nas bolsas de mercadorias e na roleta dos contratos futuros, que deveriam servir de garantia ao produtor. Mas foram capturados pelo apetite insaciável dos fundos especulativos.
A crise financeira do 2º semestre de 2007 em diante, e a fulminante espiral dos preços agrícolas que se seguiu , puniu exemplarmente a crendice nas virtudes dos livres mercados. No ápice da escassez e da fome, nações e organismos internacionais viram-se desarmados para intervir. Onde estavam os estoques? Onde continuam a repousar. Em celeiros das grandes corporações que dominam o comércio agrícola mundial e mantém sigilo especulativo sobre os volumes. Business.
A alta do juro nesta 4ª feira condensa essa trama oculta de interesses e engodos. Os ingredientes compõem o molho azedo do laissez-faire. O jogral tomateiro conhece a receita, mas não admite.
O governo, ao mexer na Conab, dá mostras de saber a origem do mico.
Resta saber qual das duas lógicas predominará até a próxima reunião do Copom, em 30 de maio.
A ver.
Publicado na agência Carta Maior