Escândalo Cahuzac expõe esquema global de paraísos fiscais
Os socialistas franceses acabaram atolados em um suculento escândalo ligado à conta bancária que o ex-ministro de Orçamento e Fazenda, Jérôme Cahuzac, mantinha aberta em um banco suíço. O envolvimento de quem estava encarregado da política fiscal do governo em um claro caso de evasão fiscal abriu, por sua vez, uma caixa de Pandora que expôs o nefasto papel que desempenham os chamados paraísos fiscais e a forma pela qual o sistema político recorre a eles, atingindo em cheio ao chefe de Estado do país, François Hollande, em um momento em que o presidente acumula os índices de popularidade mais baixos já registrados desde a Quinta República. Hollande foi eleito em maio do ano passado com o lema da “República exemplar”, mas o caso Cahuzac e a onda de revelações que o acompanha põe em questão essa premissa e lança um denso manto de suspeitas sobre o Executivo socialista.
A história de Jérôme Cahuzac já é uma história sombria em si mesma, mas à luz das revelações quase diárias da imprensa esse escândalo é apenas um capítulo de uma trama de corrupção maior. Uma investigação sobre os paraísos fiscais publicada nesta quinta-feira pelo jornal Le Monde, revela que o tesoureiro da campanha eleitoral de Hollande e amigo do presidente, o editor e empresário Jean-Jacques Auger, tem desde o ano de 2008 duas empresas de contornos obscuros nas Ilhas Caiman, um dos mais célebres paraísos fiscais do mundo, onde boa parte dos corruptos e narcotraficantes do planeta depositam seu dinheiro.
A matéria do Le Monde faz parte de uma investigação mais ampla realizada pela imprensa internacional (pelo Consórcio independente de jornalistas investigativos, ICIJ) ao longo de 15 meses. Seu resultado é impressionante: 2,5 milhões de arquivos, 130 mil contas offshores com igual número de nomes de políticos e empresários de todo o planeta (130 franceses) que usam as Ilhas Caiman para sonegar impostos. Trata-se nada mais nada menos de uma estrutura de delito fiscal em escala planetária que já tem um nome: o “Offshoreleaks”.
O fio condutor desta bomba política foi a teia urdida pelo ex-ministro socialista. O portal de informações Mediapart revelou há alguns meses que o ex-titular da carteira de Orçamento e Fazenda tinha dinheiro depositado em um banco suíço. Jérôme Cahuzac negou, perante a imprensa e o parlamento, a veracidade dessa informação cuja prova baseava-se em uma gravação na qual Cahuzac expressava sua preocupação pela conta e o dinheiro que havia nela. De desmentido em desmentido, o caso se complicou quando a justiça abriu uma investigação, que acabou forçando a renúncia do ministro. Mas a autêntica bomba explodiu esta semana quando, após meses e meses jurando por todos os deuses que não tinha uma conta na Suíça, Cahuzac confessou que a informação era correta.
Antes da confissão, Cahuzac abriu um processo contra o portal Mediapart e chegou a declarar perante o Parlamento: “não tenho e nunca tive contas no exterior, nem agora, nem antes”. Mas, finalmente, ele tinha essa conta. Restou a Cahuzac dizer que estava “devastado pelo remorso” e confirmar aos juízes “a existência desta conta: também informei que já havia dado as instruções necessárias para que a totalidade dos ativos depositados nesta conta, que não é alimentada há uma dezena de anos, cerca de 600 mil euros, seja repatriada para a minha conta bancária em Paris”. Muito tarde. Cahuzac mentiu para todo mundo e essa mentira colocou o governo socialista sob o peso de duas acusações: ou sabia e foi cúmplice do ministro, ou pecou por estúpido e crédulo. Os juízes acusaram Cahuzac de lavagem de dinheiro e fraude fiscal, enquanto a oposição conservadora exigiu hoje que o presidente modifique seu gabinete e troque seu primeiro ministro, Jean-Marc Ayrault.
Na quarta-feira, o presidente francês disse: “Cahuzac não se beneficiou de nenhuma proteção para além da presunção de inocência”. François Hollande assegurou que havia sido enganado por seu ex-ministro e qualificou de “ultraje à República” o comportamento de Cahuzac. A trama de Jérôme Cahuzac é mais explosiva ainda. O Le Monde revelou que, em 1992, a pessoa encarregada de abrir a conta no banco suíço UBS em nome do ex-ministro de Orçamento e Fazenda foi Philippe Péninque, um amigo e conselheiro da presidenta do partido de extrema-direita Frente Nacional, Marine Le Pen. A conta foi administrada a partir de 1993 pela financeira Reyl and Cie, baseada em Genebra. O ex-ministro socialista alimentava a conta através de Hervé Dreyfus, que atuava como gestor. Em 2009, a conta de Cahuzac no banco UBS foi transferida para Singapura.
Suíça, Luxemburgo, Áustria, Ilhas Caiman, Samoa, Ilhas Cook, Singapura, os principados de Mônaco ou de Lichtenstein, os paraísos fiscais são um gigantesco buraco negro da economia mundial. A coincidência do caso de Jérôme Cahuzac com a publicação da investigação do Consórcio independente de jornalistas investigativos (ICIJ) lança luz sobre a existência dessas lavadoras de dinheiro aliadas da vertente mais corrupta do liberalismo.
Em 2009, durante a cúpula do G-30 realizada em Londres, os dirigentes prometeram uma ação decisiva contra os paraísos fiscais. “A época do segredo bancário acabou”, disseram então os membros do G-20. Mas o que está se acabando é o planeta, não os paraísos fiscais. As informações fornecidas pelo ICIJ provêm de um vazamento de informações que demonstra a fabulosa fortuna que circula nos paraísos fiscais. O ICIJ obteve informação de dois ex-membros de entidades financeiras que operam em paraísos fiscais. Essas informações dizem respeito a mais de 170 países e a milhares de personalidades do planeta que camuflam suas riquezas nestes castelos sem a ameaça de nenhuma lei.
O Le Monde cita, em sua própria investigação, James S. Henry, um antigo economista da consultora McKinsey, que calcula que os multimilionários depositaram entre 16 e 24 trilhões de euros nos paraísos fiscais. Esse montante é igual à soma do PIB dos Estados Unidos e Japão.
É difícil apostar em um saneamento do sistema mundial. Até um ministro socialista que tinha como missão ministerial lutar contra a evasão fiscal é hoje o protagonismo de um duplo golpe: contra o Estado ao qual pertence por ter colocado seu dinheiro fora do alcance do sistema fiscal nacional e contra os eleitores. A França votou socialista por causa, entre outras coisas, dessa “República exemplar” que, até agora, os socialistas encarnavam melhor que a direita. Mas o dinheiro derruba a moral e os princípios políticos e termina unindo a todos por igual em um festim planetário de golpes e impunidade.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer para agência Carta Maior