Um ato na Cinelândia, no Centro do Rio, relembrou ontem os 49 anos do Golpe Militar de 1964, com manifestantes de vários movimentos sociais e partidos políticos pedindo que a Comissão Nacional da Verdade abra os arquivos da ditadura e que os crimes dos militares durante o regime sejam punidos.
Grupos de defesa de direitos humanos, partidos políticos e representantes de sindicatos se concentraram em frente ao prédio do Clube Militar durante o protesto.
Entre os presentes, Daniel Iliescu, presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), a jornalista Hildegard Angel, filha da estilista Zuzu Angel e irmã de Stuart Angel, ambos mortos durante a ditadura, além de representantes do grupo Tortura Nunca Mais.
Em frente ao cinema Odeon, foram espalhadas fotos de desaparecidos políticos, entre eles, Joaquim Câmara Ferreira, Carlos Lamarca, Maurício Grabois, Helenira Rezende e Carlos Marighella.
“A Cinelândia é um espaço emblemático, e este ato é um reencontro da sociedade brasileira com a História. Para nós, não há anistia para crime de tortura. Achamos importante que o Brasil faça esse debate”, disse Iliescu, lembrando que a UNE criou sua própria Comissão da Verdade: “Vamos apresentar um dossiê no próximo congresso nacional, em Goiás. O Cláudio Fonteles, que coordenou a comissão nacional, comprometeu-se a abrir os arquivos que façam referência ao movimento estudantil para a UNE. Nós queremos ter uma agenda permanente sobre o tema.”
“Vim enterrar os meus mortos”
Durante um discurso emocionado, Hildegard lembrou que o corpo de seu irmão nunca foi encontrado, disse que a Cinelândia representa “um muro das lamentações, mas também um muro da democracia brasileira”:
“Soube da manifestação pelas redes sociais e vim enterrar um pouquinho os meus mortos com vocês. Aproveito então para fazer desse manifesto um velório.”
Perguntada sobre os trabalhos da Comissão da Verdade, Hildegard disse achar tudo “lento”.
“Fui procurada, mas vejo tudo avançando lentamente. Ainda quero saber quem matou minha mãe, e onde está o corpo do Stuart. Foi mesmo jogado ao mar? Um livro conta quem articulou o assassinato da minha mãe, mas não vejo a comissão avançar nessa história, por exemplo.”
Diretor do Grupo Tortura Nunca Mais, Sérgio Moura também faz críticas à Comissão da Verdade:
“Acredito que podiam apurar a responsabilidade da cadeia de comando do golpe, mas não é isso que temos visto. Também gostaria que todos os documentos fossem públicos, não queremos novos arquivos.”
No fim de semana, grupos que representam militares da reserva criticaram em nota a Comissão Nacional da Verdade por investigar apenas crimes cometidos pelos agentes da repressão, e não militantes que lutaram contra o regime militar.
Durante o evento, um grupo se reuniu para protestar contra o governador Sérgio Cabral (PMDB-RJ) e a favor dos índios da Aldeia Maracanã.
Defesa
O atual coordenador da Comissão Nacional da Verdade (CNV), Paulo Sérgio Pinheiro, rebateu ontem as diversas críticas veiculadas sobre o trabalho do grupo e garantiu que a presidente Dilma Rousseff está satisfeita com as atividades do colegiado.
“Vi alguns comentários ‘psicografados’ sobre o que ocorre dentro da comissão, ‘entre o secretismo e a divulgação’. Isso não existe. Todas essas notinhas ‘mediúnicas’ de que a presidente Dilma não está gostando [do trabalho] da Comissão… só se estão fazendo telepatia. O que a presidente me diz não é isso”, afirmou exaltado o coordenador. Ele se referia a reportagem do jornal O Globo que dão conta de uma insatisfação da presidente com os rumos do trabalhos do colegiado, que pretendia mais aberto a sensibilizar a opinião pública com divulgação das apurações feitas.
“Da mesma maneira que uma investigação criminal não pode ser acompanhada em tempo real na internet, alguns depoimentos não podem ser públicos. Assim foi na África do Sul, no Chile, no Peru. Não achamos necessidade de informar cada passo do que fazemos”, argumentou Pinheiro, que participou do evento de publicação na internet de 1 milhão de páginas de documentos produzidos pela Delegacia Estadual de Ordem Política e Social, DEOPS-SP, encontro do qual o governador Geraldo Alckmin foi o anfitrião. O coordenador da CNV aproveitou o ensejo para anunciar a digitalização até julho de 16 milhões de páginas de documentos do Serviço Nacional de Informações (SNI) localizados no Arquivo Nacional.
O comentário de Pinheiro ocorreu pouco depois de um protesto feito pelo movimento Levante Popular, durante a abertura do acesso digital a documentos do antigo Departamento de Ordem Pública e Social (Dops) paulista, no Arquivo Público do Estado. Os jovens subiram ao palco, exibiram cartazes e cobraram “mais transparência” da comissão. Além disso, o grupo pediu a divulgação de relatórios parciais, a prorrogação do trabalho do colegiado por mais dois anos e a organização de audiências públicas junto à sociedade.
Pinheiro disse que a CNV identificou de 200 a 250 agentes da repressão e já estabeleceu um cronograma para ouvi-los. “Nós almejamos que todos os torturadores sejam chamados a depor, ninguém precisa nos convencer disso. Temos um grupo de pesquisadores extremamente capazes conosco”.
Em 29 de abril, a comissão realizará em São Paulo audiência pública com mais de 90 representantes de familiares e comitês de memória de todo o país. “Vamos decidir com os familiares um mecanismo para dar essa agilidade que nos está sendo cobrada, mas não é verdade que vamos deixar tudo para o relatório final”, observou.
A conclusão dos trabalhos da CNV está prevista para maio de 2014. Questionado pelo grupo estudantil “Levante Popular da Juventude” sobre uma possível extensão do prazo, Pinheiro disse ser esta uma prerrogativa da presidente da República. “Não é algo que desejamos ardentemente, mas se ela decidir, estamos aí”. A divulgação de um relatório parcial no próximo mês, quando a CNV completa um ano, está sendo estudada.
A Comissão, garantiu o coordenador, não está tendo dificuldade em acessar documentos relativos ao período investigado. “Temos acesso a qualquer documentação, não importa o nível de sigilo, e estamos exercendo isso. Pouquíssimas comissões no mundo contaram com a profusão de arquivos a que temos acesso”. Pinheiro contou ainda que há pesquisadores ligados à CNV na busca de documentos junto ao alto comissariado das Nações Unidas para refugiados, no comitê internacional da Cruz Vermelha e em arquivos nacionais de países das Américas.
O governador Geraldo Alckmin (PSDB) saudou o trabalho do Arquivo Público na busca de informações sobre a ditadura militar. “Foi um triste período de violência e arbítrio do país. As pessoas terão acesso de casa, não precisa de senha nem cadastro. Tenho certeza de que esse exemplo de São Paulo fará com que outros Estados façam o mesmo”, afirmou.
Publicado em O Globo, O Estado de S. Paulo e Valor Econômico – 02/04/2013