Verdade: Depoimento indica que EUA monitoravam presos políticos no Brasil
Ex-deputado federal e um dos 15 prisioneiros do regime militar libertados em troca do diplomata norte-americano Charles Elbrick em 1969, Ricardo Zarattini falou nesta terça (19) à Comissão da Verdade paulista. Em seu depoimento, afirmou ter sido interrogado por Richard Melton, que se tornaria embaixador dos Estados Unidos no Brasil entre 1989 e 1993, durante sua prisão no Departamento de Ordem Política e Social (Dops) do Recife (PE), em dezembro de 1968.
O depoimento corrobora a tese de que representantes da diplomacia dos EUA acompanhavam a rotina dos órgãos policiais do regime militar. Há um mês, a Comissão paulista revelou que Claris Rowley Halliwell, adido no Consulado-Geral de São Paulo, visitava com frequência a sede do Dops paulista e lá esteve no dia em que o operário Devanir José de Carvalho, líder do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), foi preso e morto. A presença de Halliwell no local está registrada em livros de ponto da época, encontrados no Arquivo Público do Estado e levados a público pela Comissão.
Amélia Telles, uma das coordenadoras da Comissão Estadual da Verdade, relaciona os dois casos, de Pernambuco e de São Paulo, como uma rotina que pode se confirmar entre diplomatas norte-americanos e os órgãos policiais brasileiros. Para ela, a participação explícita de diplomatas estrangeiros indica que eles viam a possibilidade de o golpe perdurar, o que lhes dava “impunidade e certeza de que nunca iam ser cobrados”.
Preso por incitar a formação de uma “guerrilha rural” na zona canavieira de Pernambuco, Zarattini disse que Melton não participou das sessões de tortura que sofreu. “Cerca de duas semanas depois da minha prisão, no Dops do Recife, o delegado Moacir Sales entrou no lugar onde eu estava preso junto com duas pessoas. Uma delas, com sotaque americano, me perguntou por que eu não gostava dos Estados Unidos. Respondi que eu não tinha nada contra o país e seu povo, e sim contra as ingerências e as pressões que o imperialismo norte-americano fazia sobre nações pobres, como o Brasil”, contou Zarattini.
Melton era então vice-cônsul no Recife, posto que deixaria em 1969. Zarattini disse que reconheceu o seu interlocutor estrangeiro quando, em 1989, Richard Melton foi indicado pelo governo norte-americano para a embaixada dos EUA no Brasil.
“Na época eu fiz essa denúncia. O Itamaraty encaminhou uma consulta ao Ministério da Justiça para saber se a denúncia era procedente, e o ministério respondeu que, consultado o Dops do Recife, não havia provas da passagem de Melton por suas dependências”, relatou Zarattini. Melton recebeu o agreement do governo brasileiro e foi o representante dos EUA em Brasília, de 1989 a 1993..
Melton foi sucessivamente enviado a países que encerravam ditaduras para manter o governo dos EUA informado sobre o rumo político que tomariam. Esteve em Portugal no período seguinte à revolução dos Cravos e foi expulso pelos sandinistas na Nicarágua em 1988, acusado de ser um espião da agência de inteligência CIA.
Voltou ao Brasil quando terminava o governo do ex-presidente José Sarney (PMDB-AP). Correspondentes brasileiros anotaram à época que a escolha era fruto do temor dos EUA de que a esquerda vencesse a eleição. O atual embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Thomas Shannon, trabalhou com Richard Melton.
Zarattini, que é pai do deputado federal Carlos Zarattini (PT-SP) pediu que seu depoimento seja encaminhado à Comissão Nacional da Verdade e à sessão estadual de Pernambuco, para que se faça uma nova apuração do vínculo de Melton com as forças policiais locais à época da repressão. A investigação da participação estrangeira no golpe e no período que o sucedeu é um dos caminhos a ser percorrido pela comissão, a partir desse depoimento.
Segundo Ivan Seixas, coordenador da assessoria da comissão, relatos reservados feitos há uma semana por agentes de órgãos de repressão revelam que cursos de tortura foram ministrados na Escola Nacional de Informações, órgão de inteligência da ditadura. “Nesses cursos havia técnicos falando inglês e as aulas eram práticas, mas não em bonecos, e sim em seres humanos”, afirmou.
Ricardo Zarattini nasceu em Campinas, em 1935, formado em engenharia pela Politécnica de São Paulo, atuava em movimentos trabalhistas na zona canavieira de Pernambuco quando foi preso, em dezembro de 1968. Cinco meses depois conseguiu fugir, mas foi recapturado em São Paulo pela Operação Bandeirantes, em julho de 1969. Trocado pelo embaixador norte-americano Charles Elbrick, foi para o México e depois para Cuba. Voltou clandestinamente ao país, em 1974, e foi preso novamente em 1978. Ficou detido até a anistia, em agosto de 1979.
“Zarattini é um personagem da história do Brasil. É uma das maiores biografias da história de resistência do povo brasileiro”, resumiu o deputado Adriano Diogo (PT), presidente da Comissão Estadual da Verdade.