Marx, Lincoln e a Guerra Civil Americana
“Uma casa dividida contra si mesma não subsistirá. Acredito que este governo meio escravista e meio livre não poderá durar para sempre (…) ele se transformará só numa coisa ou só noutra” (A. Lincoln).
“A atual contenda entre o Sul e o Norte não é outra coisa senão uma luta entre dois sistemas sociais, entre o sistema da escravidão e o sistema do trabalho livre. A guerra começou porque os dois sistemas já não podem coexistir pacificamente no continente norte-americano. Somente pode terminar mediante a vitória de um sobre o outro sistema” (K. Marx).
Introdução
Em 9 de abril de 1865, o general confederado Robert E. Lee se rendeu, pondo fim a um dos acontecimentos mais sangrentos de nosso continente: a Guerra Civil Norte-Americana. Seis dias depois, em meio às comemorações da vitória, morria Abraham Lincoln. A União fora salva, mas o principal arquiteto desta obra estava morto, vítima daqueles que Marx chamou de “deuses infernais da escravidão”. Para o autor do Manifesto do Partido Comunista, Lincoln havia sido um grande estadista e um homem sensível às aspirações de seu povo. Marx, que não era de esbanjar elogios, afirmou que o presidente norte-americano foi “um dos raros homens que lograram converter-se em grandes sem deixar de serem bons”. Em outro lugar diria: “Na história dos EUA e da humanidade Lincoln tomará o lugar a seguir ao de Washington”.
Nunca um movimento foi tão rememorado, mas, ao mesmo tempo, nunca um movimento foi tão pouco compreendido. As razões para isso são, de um lado, os interesses das classes dominantes estadunidenses em obscurecer os verdadeiros motivos do conflito e o seu conteúdo de classe. De outro, o desinteresse da própria esquerda, que não nutre nenhuma simpatia pela história do “grande irmão” do Norte. Embora esta última posição possa até se sustentar devido aos anos de opressão que o imperialismo ianque impôs aos povos de todo o mundo, ela é fundamentalmente equivocada, pois existe também um lado progressista na história daquela nação – basta lembrarmos o valor histórico da Revolução Americana de Washington e Jefferson. A Guerra Civil foi outro desses momentos decisivos da história da humanidade e por isso deve ser resgatada.
Marx compreendeu muito bem a importância daquele acontecimento e, desde a execução do abolicionista John Brown, acompanhou atentamente o que ocorria no território norte-americano. Alguns meses antes de se iniciar o conflito, numa carta a Engels, afirmou: “Segundo penso os maiores acontecimentos da época atual no mundo são, de um lado, o movimento dos escravos na América que começou com a morte de John Brown; de outro, o movimento dos servos na Rússia.”.
Uma casa dividida
As particularidades do desenvolvimento histórico das diversas regiões deram origem a uma profunda cisão no seio dos Estados Unidos da América. Na região Sul, desenvolveu-se uma economia baseada na monocultura agro-exportadora, no latifúndio e na escravidão negra. No Norte, uma economia moderna baseada na indústria, na pequena e média propriedade rural, com uma produção intensiva e utilizando principalmente a mão de obra assalariada livre. As duas regiões, portanto, possuíam interesses políticos e econômicos bastante distintos, e mesmo antagônicos.
O Norte industrial interessava-se pela manutenção de uma política tarifária protecionista, que restringisse o ingresso de produtos manufaturados estrangeiros, interessava-se pelo aumento dos investimentos públicos na montagem de uma infraestrutura que permitisse a expansão do comércio e da indústria; as classes populares exigiam a distribuição gratuita das novas terras no Oeste. As diversas classes sociais do Norte defendiam, por motivos diversos, a restrição da escravidão.
Os proprietários do Sul, pelo contrário, defendiam o livre cambismo, que permitisse a aquisição de produtos importados mais baratos e facilitasse o escoamento da produção agrícola para o exterior. Eram contrários à distribuição gratuita, ou a baixo preço, das terras do Oeste americano. Temiam que o surgimento de milhares de novos pequenos proprietários pudesse diminuir o peso político dos grandes fazendeiros dentro da União. E, por fim, eram radicalmente contra qualquer medida que visasse a restringir a escravidão.
A União só poderia continuar existindo enquanto se mantivesse este frágil equilíbrio entre esses dois poderosos interesses conflitantes. E Isso só foi possível graças a uma hábil política de concessões mútuas, em geral, favorável aos escravocratas do Sul.
Desde 1787 a escravidão havia sido suprimida da todos os Estados a noroeste de Ohio. As razões para isso, afirmou Marx, eram de que “os primeiros revolucionários, embebidos de preconceitos do século 18, viam a escravidão como um mal importado (…) que deveria ser eliminado com o correr do tempo”. No entanto, isso não ocorreu no Sul e, pelo contrário, ali o que se viu foi a expansão da escravidão.
Até os primeiros anos do século 19 existiu certo equilíbrio entre as populações das duas regiões, mas este foi sendo alterado rapidamente em favor do Norte industrial. Isso se refletiu diretamente na correlação de forças dentro do Congresso. Em 1819 os nortistas já possuíam 105 deputados contra 81 deputados sulistas. Para manter o antigo equilíbrio dentro da União, o poder real foi sendo deslocado para o Senado, no qual todos os estados, independentemente do tamanho da sua população, tinham a mesma representação. Os Estados Unidos tinham então 22 estados, sendo 11 escravistas e 11 abolicionistas.
Entre 1820 e 1850 a situação foi mantida através do ingresso na União, de par em par, de estados escravistas e não-escravistas. Ingressaram do lado nortista: Maine, Michigan, Iwoa e Wisconsin; do lado sulista: Missouri, Arkansas, Flórida e Texas.
Em 1850 este arranjo institucional começou a dar mostra de certo esgotamento. Três territórios (Califórnia, Novo México e Utah) pediram o seu ingresso, enquanto estados livres e o Sul escravista não possuíam mais nenhum território nestas condições. Através de um novo acordo, somente Utah foi admitido, mesmo assim à custa de inconcebíveis concessões aos escravocratas, entre as quais se incluía a “Lei do escravo fugido”, pela qual o governo federal era obrigado a utilizar todos os meios para reaver os escravos que fugissem do Sul, e impunha pesadas multas para quem acobertasse um negro fugitivo.
A lei dava ainda todos os poderes para os senhores de escravos e proibia aos negros acusados de se defenderem perante um tribunal, mesmo nos estados onde a escravidão havia sido abolida. As falsas acusações multiplicavam-se e os caçadores de escravos inundaram os estados do Norte, causando conflitos com abolicionistas.
Em 1854 foram revogados os antigos limites para além dos quais era proibida a expansão da escravidão. Através do mecanismo da “soberania popular”, os próprios colonos passavam a ter o “direito” de decidir sobre o futuro da escravidão nos territórios. “Pela primeira vez na história dos EUA” – afirmou Marx – “todo o limite legal e geográfico à expansão da escravidão nos territórios foi removido (…). Bastava o Sul mandar alguns aventureiros com um pouco de escravos para além de suas fronteiras para que, com a ajuda do governo central, se estabeleça uma representação popular fraudulenta.”.
Os ânimos se acirram
Mal havia sido aprovada a “soberania popular” sobre a escravidão, bandos armados do Sul desceram como gafanhotos sobre o território livre de Kansas, tentando intimidar os colonos na sua maioria antiescravistas. A invasão do Kansas acirrou os ânimos. Por todo o Norte foram organizadas milícias de voluntários para combater ao lado dos colonos.
O governo federal, então infestado de escravistas, proibiu qualquer apoio às forças abolicionistas e enviou tropas para “pacificar” a região. Desenvolveu-se então uma guerra de guerrilhas que terminou com a derrota militar dos antiescravistas. Este conflito foi apenas o prólogo de outro mais prolongado e sangrento.
Os escravistas, com o controle sobre a presidência e a Corte Suprema (5 entre os 9 juízes), passaram à ofensiva. Em 1857 foi aprovada uma resolução que garantia a todo cidadão o direito de levar consigo para qualquer território da União toda propriedade reconhecida pela Constituição, na qual se incluía o escravo. Através desta resolução qualquer “senhor” poderia individualmente introduzir a escravidão em um território livre, mesmo contra a vontade da maioria dos colonos.
Diante da arrogância dos escravistas, cresceu o movimento pela emancipação imediata da escravidão. Em muitas cidades do Norte realizaram-se comícios e manifestações. O ódio popular se concentrou na “Lei do escravo fugido”. Inúmeros caçadores de escravos foram espancados e suas presas libertadas. À frente deste amplo movimento se encontravam inúmeras lideranças negras, como Frederick Douglas, que mais tarde seriam responsáveis pela organização das tropas negras durante a guerra civil.
Em outubro de 1859, o líder abolicionista radical John Brown tomou de assalto um arsenal federal na Virgínia. A rebelião foi sufocada e ele julgado e condenado à morte por traição. Diante de seus carrascos, afirmou categórico: “Estou convencido de que somente o sangue apagará o grande crime deste país pecador”. A sentença seria cumprida poucos anos mais tarde. A notícia de sua morte causou profunda indignação nos estados do Norte. Em várias cidades os sinos repicaram e mulheres colocaram panos pretos nas janelas em sinal de luto. Multiplicaram-se os comícios abolicionistas. A Nação americana estava definitivamente cindida.
A eleição de Lincoln e o início da guerra
Nas eleições de 1860 as forças escravistas se apresentaram divididas – o que permitiu, pela primeira vez, a vitória do Partido Republicano. Um partido recém-fundado que era composto de industriais nortistas, pequenos e médios proprietários rurais e urbanos, e mesmo de operários. No seu Programa constava a restrição do trabalho escravo e a distribuição a baixo preço das terras do Oeste. O candidato vitorioso foi Abraham Lincoln – filho de pequenos proprietários rurais, que se destacou por seus discursos contra a expansão da escravidão nos territórios livres.
Apesar das constantes declarações de Lincoln de que respeitaria a Constituição e, portanto, não interferiria na escravidão nos estados onde ela já existisse, os escravistas do Sul começaram a pressentir que, com sua vitória, a abolição passava a ser uma questão de tempo. Sabiam que a proibição da expansão da escravidão para os demais territórios, como propunham os republicanos, era uma sentença de morte anunciada.
A decisão pela secessão – e a possível guerra civil – já estava tomada antes mesmo da posse do novo presidente. Imediatamente após o anúncio do resultado eleitoral, cinco estados sulistas declararam a sua separação. Reunidos em um congresso em Montgomery, decidiram pela formação de um novo país: os Estados Confederados da América. “A pedra angular do nosso governo” – afirmou o vice-presidente confederado – “é a profunda convicção de que o negro não é igual ao homem branco e de que a escravidão, a submissão à raça superior, é o estado social normal para os negros”. O que distinguia a Constituição confederada daquela feita por Washington e Jefferson, afirmou Marx, é que “pela primeira vez a escravidão era reconhecida como uma coisa boa e como alicerce de todo o edifício do Estado”.
No seu discurso de posse, Lincoln, referindo-se aos rebeldes do Sul, afirmou: “Em suas mãos e não nas minhas está a grave questão da guerra civil. O governo não irá atacá-los. O conflito só surgirá se vocês mesmos forem os agressores.”. Poucos dias depois, em 11 de abril de 1861, os exércitos escravistas bombardearam o Fort Sumter. Era o início do conflito armado que sangraria a nação americana por cerca de quatro anos e custaria mais de 600 mil vidas.
Assim Marx descreveu as atitudes belicosas do Sul contra a União: “a guerra não surgiu por culpa do Norte e sim do Sul. O Norte se encontrava na defensiva. Durante meses, limitou-se a observar, enquanto os separatistas se apropriavam dos fortes, dos arsenais, dos estaleiros, das alfândegas, dos barcos e o abastecimento de armas da União; insultavam sua bandeira e tomavam prisioneiros no corpo das tropas. Finalmente, os separatistas, resolveram obrigar o governo a sair de uma atitude passiva, mediante um sensacional ato de guerra e somente por este motivo procederam ao bombardeio do Forte Sumter.”.
Nesse mesmo dia o objetivo expansionista do Sul ficou estampado na declaração do ministro da guerra confederado: “Ninguém pode dizer onde terminará a guerra começada hoje (…). Antes de 1ª de maio, a bandeira da Confederação do Sul tremulará na cúpula do velho Capitólio de Washington, e, dentro de pouco tempo, quem sabe, na Faneuil Hall de Boston.”. Por isso, escreveu Marx, “a guerra da Confederação do Sul não é uma guerra de defesa, e sim uma guerra de conquista, uma guerra de conquista com o objetivo de estender e perpetuar a escravidão.”.
Em outro artigo afirmou: “Os intentos da Confederação do Sul no sentido de anexar Missouri e Kentucky, contra a vontade dos referidos estados, demonstram a vacuidade do pretexto de que está lutando contra a intromissão da União.”. E concluiu, ironicamente, “aos Estados individuais com os quais conta a União, o Sul lhes confere o direito de separar-se, porém de modo algum permanecer nela.”. O objetivo final do Sul não era simplesmente se separar e sim reorganizar a União, reorganizar “sobre a base da escravidão, sob o controle reconhecido da oligarquia escravista”.
Marx e a guerra civil
Havia por parte das potências europeias um grande interesse que os Estados Unidos permanecessem divididos. Por isso nutriam uma simpatia pela causa sulista. Coube a Marx e Engels o importante papel de esclarecer a classe operária europeia sobre as raízes do conflito bélico no continente americano e organizar um amplo movimento contra a intervenção inglesa ao lado das forças escravistas. Para eles, a raiz da guerra estava na contradição antagônica existente entre o modelo econômico assentado no trabalho escravo e o assentado sobre o trabalho livre (assalariado), entre as classes que defendiam um modelo industrialista e as que defendiam uma economia agrário-exportadora.
Marx desmascarou a farsa que a grande imprensa londrina tentava impor ao povo, apresentando o movimento de secessão como um movimento de natureza pacífica e defensiva, apresentando a causa nortista como uma simples tentativa de “subjugar oito milhões de anglo-saxões sulistas pela força”. A burguesia e seus porta-vozes buscavam caracterizar o conflito como uma “mera guerra tarifária, uma guerra entre o sistema de proteção e o sistema de mercado livre e naturalmente” – observou ironicamente Marx – “a Inglaterra estaria do lado do mercado livre”.
Ao contrário do que afirmava a grande imprensa, Marx alertava para o caráter belicista e expansionista da Confederação escravista. “O Sul precisa de todo o seu território e vai obtê-lo” bradavam os líderes sulistas que desejavam todos os territórios fronteiriços, ou seja, ⅔ do território norte-americano. Marx pôs o dedo na ferida ao mostrar os verdadeiros interesses por trás do conflito sangrento. Escreveu ele: “A atual contenda entre o Sul e o Norte não é outra coisa senão uma luta entre dois sistemas sociais, entre o sistema da escravidão e o sistema do trabalho livre. A guerra começou porque os dois sistemas já não podem coexistir pacificamente no continente norte-americano. Somente pode terminar mediante a vitória de um sistema sobre o outro.”.
A classe operária inglesa compreendeu o sentido real da guerra, não se deixando levar pela propaganda pró-sulista. Ela realizou inúmeros atos contra o apoio do governo inglês aos escravistas. Marx, que participou de vários desses comícios, afirmou: “A classe operária inglesa mereceu uma honra histórica e imortal por ter derrotado, por meio de entusiásticos comícios de massas, as repetidas tentativas das classes dominantes de intervenção a favor dos detentores de escravos americanos, a despeito de a continuação da Guerra Civil na América levar milhões de operários ingleses aos mais terríveis sofrimentos.”. Os sofrimentos aos quais se referia Marx foram ocasionados pelo desemprego em massa nas indústrias têxteis, que haviam reduzido a sua produção por falta de sua principal matéria-prima, o algodão proveniente do Sul dos Estados Unidos.
Para Marx, “o autêntico povo da Inglaterra, França, Alemanha, da Europa toda, considerava a causa dos Estados Unidos como sua causa, como a causa da liberdade. Apesar de toda a falácia divulgada, considerava o solo dos Estados Unidos como o solo livre de milhões de deserdados da Europa, como sua terra da promissão, defendida agora, de espada nas mãos, contra a sórdida garra escravista”. Em outro artigo afirmou: “a conduta dos operários britânicos poderia ter sido prevista pela natural simpatia que as classes populares de todo o mundo devem sentir pelo único governo popular do mundo.”. Novamente demonstrava o apreço que tinha pela administração Lincoln.
Os próprios operários estadunidenses começaram a compreender que enquanto existisse o trabalho escravo, convivendo lado a lado com o trabalho livre, a classe operária não conseguiria elevar o seu grau de coesão e de organização para as batalhas futuras contra o capital. Além disso, a escravidão aviltava todo e qualquer trabalho manual, mesmo livre. Nas cidades industriais, os operários passaram a formar batalhões especiais nos quais elegiam seus próprios comandantes. Entre os eleitos se encontravam vários socialistas, como o alemão Weydemayer, amigo e colaborador de Marx e Engels.
A segunda Revolução americana
Apesar da sua superioridade econômica e militar, o Norte enfrentou momentos difíceis. Por duas vezes os confederados estiveram próximos de tomar sua capital. As razões desses reveses estavam ligadas às vacilações dos generais nortistas e do próprio governo federal que temiam empregar métodos mais radicais, revolucionários, contra as tropas escravocratas. Em agosto de 1861, o general Frémont anunciou o confisco das propriedades e a abolição dos escravos de todas as pessoas que lutavam contra a União dentro do estado do Missouri, no qual suas tropas eram donas da situação, mas o próprio Lincoln o desautorizou a tomar tais medidas.
Marx, indignado com tais atitudes dúbias, afirmou: “A ansiedade por manter o bom humor dos donos de escravos ‘leais’ dos estados fronteiriços; o medo de jogá-los nos braços da secessão; em uma palavra, a terna consideração para com os interesses, preconceitos e sensibilidades desses ambíguos aliados, tem castigado o governo da União de uma incurável debilidade desde o começo da contenda, guiado por medidas tíbias, obrigado a encobrir o princípio da guerra e poupar o ponto mais vulnerável do inimigo, a raiz do mal – a própria escravidão”.
Continuou ele: “As causas militares da crise estão relacionadas, em parte, com a política (…). Os ‘leais’ proprietários de escravos dos estados fronteiriços cuidaram que (…) nenhum general pudesse aventurar-se a levar ao campo de batalha uma companhia de negros e que a escravidão fosse transformada de calcanhar de Aquiles do Sul em sua fortaleza invulnerável. Graças aos escravos, que realizam todos os trabalhos produtivos, todos os homens do Sul aptos para combater podem ser levados ao campo de batalha!”. Numa carta a Engels, novamente, condenou a resistência de Lincoln em aceitar o pedido dos abolicionistas para a formação de batalhões de negros: “Um único regimento de negros terá um efeito extraordinário sobre os nervos dos sulistas”.
Acreditava, no entanto, que “os próprios acontecimentos levariam à promulgação da consigna decisiva: a emancipação dos escravos”. Escreveu: “Assistimos até agora ao primeiro ato da guerra, uma guerra conduzida constitucionalmente. O segundo ato, a guerra conduzida revolucionariamente, ainda está por vir”. O transcurso daquele dramático acontecimento lhe daria razão.
Em 1862, Lincoln, finalmente, reconheceu os erros cometidos: “Ou mudamos de tática ou perderemos a guerra”, afirmou. Neste mesmo ano foi proclamada a abolição da escravidão em todos os territórios rebeldes (medida posteriormente estendida para todos os Estados Unidos). A ordem presidencial dizia: “Declaro que todas as pessoas tidas como escravos (…) doravante serão livres e que o governo dos Estados Unidos, incluindo suas autoridades militares e navais, reconhecerá e preservará a liberdade de tais pessoas.”. Autorizou-se também a formação de regimentos de negros, e mais de 280 mil negros ingressaram nos exércitos da União.
Lincoln foi eleito para o segundo mandato em novembro de 1864. Antes mesmo da posse, temendo que seu decreto abolicionista pudesse ser revogado posteriormente, forçou o Congresso a aprovar a 13ª emenda à Constituição, que aboliu definitivamente a escravidão em todo o território nacional. Assim, ele consolidava sua obra emancipadora e colocava seu nome no panteão dos grandes heróis da humanidade. Quando foi decretada a abolição ainda existiam mais de 4 milhões de escravos no país.
No início de 1865, Marx foi incumbido pela direção da Associação Internacional dos Trabalhadores de redigir uma saudação pela reeleição de Lincoln. O texto dizia: “Saudamos o povo americano pela sua reeleição por uma ampla maioria de votos. Se a consigna moderada de sua primeira eleição era a resistência frente ao poderio dos escravistas, o triunfante grito de guerra de sua reeleição é: morte ao escravismo! Desde o começo da titânica batalha na América, os operários da Europa sentiram instintivamente que os destinos de sua classe estavam ligados à bandeira estrelada.”. E concluiu: “Os operários da Europa têm a firme convicção de que, do mesmo modo que a guerra da independência na América deu início a uma nova era da dominação da burguesia, a guerra americana contra o escravismo inaugurará a era de dominação da classe operária. Eles veem o presságio dessa época futura em que a Abraham Lincoln, filho honrado da classe operária, tocará a missão de levar o seu país através dos combates sem precedentes pela libertação de uma raça escravizada e a transformação do regime social.”.
As medidas de cunho revolucionário, pouco a pouco, mudaram o curso da guerra. Os exércitos nortistas comandados pelo general Grant impuseram importantes derrotas aos exércitos sulistas. Em 3 de abril de 1865, tomaram a capital confederada e seis dias depois o comandante em chefe dos exércitos do Sul, general Robert Lee, se rendeu ao general nortista Ulysses Grant. No dia 14 de abril o fanático sulista John Wilkes Booth baleou Lincoln. A morte do presidente causaria uma comoção em todo o território americano e entre as correntes progressistas de todo o mundo.
A reconstrução do Sul e a vitória conservadora
Depois do fim da guerra civil, o Sul passou por um breve período de reconstrução sob a direção dos setores mais radicais do Partido Republicano. Tentou-se quebrar, definitivamente, a espinha dorsal do poder dos grandes donos de terras, garantindo os direitos políticos da população negra. Isso permitiu que vários ex-escravos fossem eleitos para assembleias estaduais e para o Congresso Nacional; dois deles foram eleitos para o Senado, seis indicados para vice-governanças e um para governador nos estados sulistas.
Os radicais também tentaram organizar a distribuição de terras aos libertos, através de um projeto que dava a cada família 40 acres e 50 dólares (valor médio de uma mula). Eles sabiam que enquanto fosse mantida a estrutura agrária baseada no latifúndio o poder dos grandes fazendeiros se manteria intacto no Sul.
Mas a grande burguesia nortista e seus representantes no Parlamento, temendo a radicalização daquele processo, retomaram rapidamente os acordos com seus antigos inimigos do Sul, sob novas bases. Em nome do fim dos ressentimentos e da verdadeira União – a do capital com o latifúndio –, puseram um fim ao movimento de reconstrução implementado pelos republicanos radicais.
Marx e Engels, rapidamente, começaram a perceber o que ocorria. Em junho de 1865, Marx, numa carta a Engels, afirmou: “A política de Johnson me inquieta (…). Nos Estados Unidos, já começou a reação e rapidamente se fortalecerá enormemente, se não cessar a debilidade que até agora prevalece.”. Engels responderia: “Gosto cada vez menos da política do Sr. Johnson.
Seu ódio aos negros surge com violência progressiva, enquanto, em relação aos senhores do Sul, deixa que todo poder lhe caia nas mãos. Se as coisas continuarem assim, em seis meses todos os velhos vilões da secessão estarão ocupando cadeiras no Congresso de Washington. Sem o sufrágio dos negros, nada se pode fazer ali e Johnson deixará que a questão seja decidida pelos vencidos, os ex-proprietários de escravos. Um verdadeiro absurdo.”.
A face dos EUA agora estava mudada, o país se unificava definitivamente sob a hegemonia da grande burguesia industrial nortista, que buscaria então forjar um novo pacto com as classes dominantes sulistas. Um pacto que tinha por objetivo excluir as camadas populares, em especial a população de trabalhadores negros, de todo o processo de decisão e de participação política. Pouco a pouco os negros perderiam os direitos conquistados no imediato pós-guerra. No Sul implantou-se uma nova ditadura, tão violenta quanto a anterior, sob o comando dos velhos oligarcas e financistas. Assim se desfez o sonho de milhares de abolicionistas que, como os primeiros revolucionários americanos, desejavam uma América unida na qual os homens fossem realmente livres e iguais. Uma utopia nos marcos daquele tipo de sociedade capitalista.
Evidentemente, Marx e demais socialistas do seu tempo tinham uma visão exageradamente otimista sobre os possíveis resultados daquele grande acontecimento histórico. Este, ao contrário de representar o fim da era de dominação burguesa, foi o momento alto de sua afirmação inconteste. Destruído o escravismo no Sul, o país viveria um período de grande desenvolvimento industrial e entraria, em uma situação privilegiada, na era imperialista.
Os Estados Unidos de depositários das esperanças operárias e socialistas passariam a serem vistos como o símbolo maior da opressão e da injustiça no mundo moderno. Caberia então aos trabalhadores americanos carregar uma nova bandeira, a bandeira que não teria mais as listras e as cores da União de todas as classes, mas a cor do sangue de todos aqueles que tombaram pela emancipação humana: a cor vermelha do socialismo.
* Augusto Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros “Marxismo, história e revolução burguesa: encontros e desencontros” e “Meu verbo é lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas”, ambos pela Editora Anita Garibaldi.
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FILMOGRAFIA:
Tempos de Glória – direção de Edward Zwick