Parece que a mensagem final deixada em seu recente ágape pelo clube de hedonistas de Davos é que a economia europeia começará a se recuperar no segundo semestre. Os donos do mundo, pois é assim que se sentem, manifestam alívio com as perspectivas da região e, por consequência, de todo o planeta. O porta-voz do otimismo foi Mario Draghi, presidente do Banco Central Europeu. Mas ele não abre mão da advertência de que não pode haver retomada de crescimento por sobre dívidas públicas fora do controle. Isso é tabu.

É difícil saber o que é uma dívida pública fora do controle. Seria, por acaso, a dívida norte-americana de 120% do PIB no imediato pós-guerra? Seria a dívida pública japonesa atual de mais de 200% do PIB? Ou a dívida italiana de 120%? Mais importante que esse dado bruto é questionar uma política econômica que ignora a aritmética banal segundo a qual, se o relevante para medir a saúde financeira do setor público é a razão dívida/PIB, para baixá-la pode ser mais eficaz e mais justo aumentar o PIB do que cortar despesas públicas.

Draghi não deu nenhuma evidência concreta de sua afirmação sobre a breve recuperação da economia europeia. Na realidade, o único dado relevante que deu pode ser interpretado de forma contrária. Informou que alguns bancos da região pagaram com antecipação cerca de um terço dos empréstimos favorecidos de três anos que tomaram do BCE no auge da crise bancária. Considerando que são empréstimos baratíssimos, de 0,75%, é de se esperar que servissem para alavancar créditos ao setor real. Não alavancaram.

Cerca de 1 trilhão de euros ficaram descansado nos caixas do BCE como depósitos dos bancos comerciais no último trimestre. Isso é uma clara indicação da retração de empréstimos ao setor não bancário na zona do euro. Se o pagamento antecipado dos empréstimos de liquidez revela alguma coisa, é que os bancos europeus estão salvos, mas não as economias nacionais. Para estas Draghi deu uma leve sinalização: considerou que o mandato do BCE é compatível com algum esforço de estímulo ao crescimento. Sem compromisso, porém.

A crise europeia nos interessa, sobretudo, na medida em que a região representa um elo significativo na economia global. Em seu conjunto, a União Europeia é o maior mercado do mundo. Trata-se de um importante escoadouro de exportações chinesas e americanas, assim como um grande escoadouro de importações mundiais. Foi basicamente por conta da queda das importações da Europa que o crescimento chinês se desacelerou. Isso teve efeito no Brasil, já que menor crescimento na China significa menos importações de commodities brasileiras.

O caráter interconectado da economia mundial é que leva a presidenta Dilma a insistir na retomada do investimento na Europa. Ela não é ingênua ao ponto de ter qualquer expectativa em relação ao aumento do investimento privado, que não se move para diante antes da demanda e está fora do controle direto dos governos. Ela está falando essencialmente em investimentos do setor público, sobretudo em infraestrutura. E é isso que a política econômica em curso na Europa não pretende fazer. Ao contrário, o mantra europeu entoado pela troika – Comissão Europeia, BCE e FMI – é simplesmente cortar gastos públicos.

Como o caráter recessivo dessa macroeconomia é amplamente conhecido já nos anos iniciais dos cursos de economia, é preciso encontrar alguma alternativa que justifique a crença numa recuperação por outro caminho. Essa alternativa são as exportações. O grande consenso em Davos foi justamente o de manter abertos os mercados e retomar a rodada de liberação comercial de Doha. É isso que os europeus nos querem vender, como ficou claro na cúpula dos países sul-americanos com a União Europeia. E muitos de nossos países, inclusive o Brasil, parecem inclinados a comprar gato por lebre.

Os duendes de Davos não conseguem explicar, porém, como aumento de exportação e geração de superávits comerciais podem ser uma meta simultânea para todos os países do mundo. É uma fatalidade contábil que quando alguém faz um superávit outro deve necessariamente fazer um déficit. Os Estados Unidos fizeram o papel de grande sorvedouro de exportações mundiais antes e durante a crise, mas agora também eles querem dobrar suas exportações a cada cinco anos. Com o Brasil, por exemplo, fizeram um superávit comercial de 5 bilhões de dólares no ano passado.

É preciso ter claro, entretanto, que não estamos diante de erros de política econômica. É uma questão de poder. As elites dos países europeus e o Partido Republicano americano estão decididos a usar a crise como um instrumento de continuidade no processo de redistribuição de renda e de riqueza a favor dos ricos iniciado com a liberação financeira dos anos 80. Daí a preferência em enfrentar a crise mediante corte nos gastos públicos. É um ataque frontal ao sistema de bem-estar social. Nos países do sul da Europa, a degradação social já está em processo. Não demora muito e chegará ao centro e ao norte.


*J. Carlos de Assis é economista, professor de economia internacional da UEPB e autor, entre outros livros, de “A Razão de Deus” (ed. Civilização Brasileira).

 

Fonte: Carta Maior