Paraguai: A verdade sobre a obtenção da terra

No total, seis agentes policiais e 11 camponeses morreram num confronto durante o despejo de famílias rurais que ocupavam algumas parcelas de um latifúndio de milhares de hectares em mãos de um antigo senador da República e militante do direitista Partido Colorado.

Mais de 45 camponeses, alguns deles feridos, permanecem foragidos à hora de escrever estas linhas e outros 14 se encontram encarcerados por suposta participação no tiroteio.

O sangrento acontecimento foi aproveitado pelos opositores do governo de Fernando Lugo, eleito presidente da República em 2008, para arremeter contra o mandatário, acusá-lo de responsabilidade nas mortes, desatar uma crise política de grandes proporções e usar a maioria do congresso para destituí-lo de seu cargo, mediante um expedito julgamento político que causou a ruptura da institucionalidade democrática.

Como a motivação, na verdade, era de ordem política, os autores dessa ação, muitos deles acusados pelas organizações sociais e camponesas de mancomunação com os barões da terra, e outros defensores de seus próprios latifúndios, não tiveram em conta os esforços sem resultados do governo para realizar a tentativa de uma modesta reforma agrária.

Pouco depois, o novo governo enfrentou outro incidente de alta magnitude com a perda da paciência de mais de cinco mil famílias camponesas que, durante mais de um ano, vivem em barracas nas proximidades ao custado de outro enorme latifúndio de quase 35 mil hectares, na área de Ñacunday, em poder de um brasileiro nacionalizado paraguaio.

Os camponeses, comovidos inclusive pela morte de três de suas crianças pelas terríveis condições de vida ali existentes, ameaçaram ocupar parte das terras do “brasiguayo”, como são chamados aqui aos dessa dupla nacionalidade, e receberam a ameaça por parte do Ministério do Interior de atuar com toda rudeza se se atreviam a isso.

Um aspecto interessante destes dois casos, similares a outros muitos no território nacional, é que, durante o governo Lugo, seu assessor jurídico, Fernando Camacho, em funções de interventor do Instituto da Terra, tinha realizado as medidas dos mencionados latifúndios e comparando com os títulos de propriedade descobriu as irregularidades na compra de parte das propriedades, logicamente com as bênçãos de juízes e fiscais acusados de corruptos pelos camponeses.

Passaram-se alguns dias e com o temor de novas e grandes tragédias, Federico Franco, o presidente designado pelo Congresso depois da destituição de Lugo, anunciou por meio da imprensa aos lavradores de Curuguaty que o ex-senador-possuidor de terras aceitou ceder uma parte das terras para colocar nelas as famílias desvalidas.

Mal passaram 24 horas e um dos filhos do latifundiário convocou à imprensa para desmentir o próprio Franco: não terá cessão alguma de sequer um pedaço da propriedade adquirida irregularmente.

Na verdade, os fatos relatados por fazer parte da mais recente realidade na história do campo paraguaio, mal são um botão de mostra do que, durante muitas décadas, tem sido uma dura verdade para os que sofrem, lutam e até morrem para conseguir uns poucos hectares de terra para trabalhar, sustentar a suas famílias e melhorar algo em sua qualidade de vida.

Alguns dados oficiais sobre a propriedade da terra e a pobreza no Paraguai propiciam a possibilidade de entendê-lo melhor.

Um por cento dos proprietários rurais concentra em seu poder nada menos que 77 por cento das melhores terras do país e o resto dos agricultores mal dispõem de um por cento dos terrenos com possibilidades de produção.

Não possuem terra própria 129 mil famílias, as quais constituem 29,7 por cento da população rural e outras 300 mil estão sem um pedaço de terreno ou o têm em quantidade insuficiente.

O resultado desta injustiça, refletida em toda a população, é que quase 40 por cento do setor rural vive em situação de pobreza e de pobreza extrema e 15 por cento da população padece de um nível de desnutrição.

Estas estatísticas, ainda que precisadas de uma atualização que aponta a um panorama pior, servem pelo menos para ter uma ideia da tragédia que vive a população rural.

Agora bem, outros antecedentes também mostram as razões de que se tenha chegado a estes extremos de contínuas ocupações de terras por parte de famílias camponesas desesperadas.

Deve-se partir da base de que 42 por cento dos paraguaios vivem nas zonas rurais, algo bastante lógico pela grande quantidade de terrenos improdutivos e o fato de que a nação conta com pouco mais de seis milhões de habitantes.

A desordem campeia no relativo à posse da terra pela falta de um cadastro que pudesse ajudar a um controle razoável e a corrupção de governos e dos poderes Judicial e Legislativo.

As informações disponíveis falam de outorga e venda de terras a estrangeiros depois do fim da guerra contra o Uruguai, concluída em 1870, bem como da distribuição fraudulenta de 11 milhões de hectares pelo ditador Alfredo Stroessner (1954-1989) a amigos, militares, sócios de negócios sujos e até amantes.

Tudo isto, se assinala, ajudou a estabelecer bases para a agricultura de exportação a grande escala como se pratica hoje e à posse por políticos e outros favorecidos de milhões de hectares das denominadas terras mal obtidas.

Evidentemente, a exclusão social das comunidades camponesas e indígenas é altamente preocupante e seu baixo nível de vida progride graças à mecanização, a agricultura extensiva dedicada à exportação e a existência de mais de 26 milhões de hectares dedicados à pecuária, atividade preferida pelos latifundiários.

A expulsão de camponeses de suas terras e até a utilização de todo tipo de violência contra eles, incluindo os crimes executados por bandos armados privados a serviço dos geófagos, conformam todo este triste panorama rural no Paraguai.

A pesquisadora Mirta Barreto escreveu que só no governo do presidente Lugo ela escutou falar de ações dirigidas a tentar uma reforma agrária.

No entanto, a posição irredutível dos que controlam a terra e a sempre solícita ajuda de muitos fiscais e juízes evitaram avançar nas medidas para aliviar a real situação vivida no campo paraguaio.

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Fonte: Prensa Latina