Não era exactamente uma entrevista sobre temas caracterizadamente políticos, tratava-se antes de uma conversa a propósito do lançamento, então ainda recente, da obra «A arte, o artista e a sociedade» (Novembro de 96). Mas é claro que não apenas tudo é afinal político, como bem se sabe, como também e sobretudo tudo claramente revela as suas implicações de natureza política quando a abordagem é feita com clarividência, como era o caso.

A entrevistadora era Clara Ferreira Alves, então já com o estatuto oficioso de «jornalista cultural» mas então ainda com o cabelo negro como asa de corvo, isto é, muito longe do período louro e breve que podemos agora contemplar no programa «O Eixo do Mal». De qualquer modo, o que importa é que já então Clara exibia a bagagem cultural que hoje continua a distingui-la e já se situava, naturalmente que como muito independente, na área intelectual da esquerda não exageradamente assumida e, como aliás se viu ao longo do programa, com vincadas distâncias relativamente ao comunismo e provavelmente a todas as doutrinas e práticas que com o comunismo se assemelhem.

O que, como não é difícil de adivinhar mesmo sem o visionamento do programa, não impedia Álvaro Cunhal de acolher com bonomia e o seu sorriso de incomparável simpatia essas distâncias expressas ou implícitas, um pouco como quem enfrenta pacientemente algumas traquinices infantis.

De súbito, uma diferença

Falou-se, naturalmente, dos vários temas abordados no livro recentemente publicado: da natureza do Belo e do seu valor estético, das relações da obra de arte com a sociedade, das questões que se levantam em torno da forma, por aí fora. Sempre Álvaro Cunhal se evidenciou como dialogante, condescendente para com discordâncias ou mesmo «atrevimentos» por parte da entrevistadora, didáctico quanto era necessário ou adequado. E decerto não será espantoso que eu refira que quanto Cunhal ia dizendo encontrava o meu acordo, não apenas pela circunstância de eu já ter lido o livro que motivara a entrevista (embora em certos aspectos já o ter esquecido um pouco, como logo a seguir vim a verificar), mas também e sobretudo por, guardadas as devidas e enormes distâncias, haver entre nós uma identidade de opiniões e convicções.

Eis, porém, que a dada altura começo a ficar surpreendido: quando Álvaro Cunhal claramente expressava o seu desacordo quanto à intervenção do Estado da antiga URSS sobre certos aspectos da criação artística, designadamente a desaprovação e mesmo hostilidade perante formas susceptíveis de desencadear um certo grau de afastamento entre a obra produzida e a sua fruição pelo povo.

Cunhal situava-se numa total defesa da liberdade do artista, eu formulava secretas e envergonhadas reservas a essa posição, supostamente apoiado em dois argumentos: a de que a arte tem de ser também, embora não apenas, um fenómeno de comunicação conseguida, e a de que certos produtos artísticos podem ser veículos de propaganda contrária à libertação do povo, dos povos. Assim, ali estava eu a ser desmascarado perante mim próprio como um dogmático, um básico, em confronto com a coerência de princípios de um homem em relação ao qual se tecera a reputação caluniosa de ser ele um dogmático. Era a implícita prova da falsidade dessas versões.

Era também a força da lucidez que impede as derivas para atalhos por onde a razão pode perder-se. Tanto quanto julguei aperceber-me, Álvaro Cunhal fazia ali a prova de que a fidelidade a princípios e convicções é um património a preservar em todas as circunstâncias e a propósito das mais diversas questões, mesmo as que não são directa e evidentemente políticas. E esta lição, ainda que dada apenas no decurso de uma amena conversa sobre arte e sociedade, não era lição pequena.

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Fonte: Avante!