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    VELHOS SENHORES DA PRAÇA MATRIZ

    VELHOS SENHORES DA PRAÇA MATRIZ Cá ao por do sol sentado na praça o rio da memória a reponta vem a mim à boca da noite vem de bubuia na maré do tempo o que me sobrou da vila que nem vila era verde canavial à beira do maior rio do mundo-aldeia vilarana do Itaguary […]

    POR: Redação

    9 min de leitura

    VELHOS SENHORES DA PRAÇA MATRIZ

    Cá ao por do sol sentado na praça o rio da memória
    a reponta vem a mim à boca da noite
    vem de bubuia na maré do tempo o que me sobrou da vila que nem vila era
    verde canavial à beira do maior rio do mundo-aldeia
    vilarana do Itaguary
    caldo de cana caiana no igarapé Armazém chão tão negro de queimadas
    varjas em labaredas encarnadas subindo a riba de açaizeiros em transe
    espingarito das ideias
    sangue, suor e lágrimas na doce garapa passada pelo sarilho da história
    vinho tinto de açaí amassado no alguidar e coado na peneira da memória:
    peço licença, então, aos senhores da boca da noite pra me abancar à ilharga
    ouvir contar velhas estórias da invenção deste e doutros mundos
    o senhor Fontes de guarda-chuva prevenido,
    doutor Ovídio engenheiro do futuro da máquina a vapor,
    Paulo Figueiredo moderador das críticas mais ardidas aos ausentes,
    Edgar sapateiro do Espírito Santo lacônico e mais sisudo de todos.

     

    Volto a ser menino abelhudo entre fantasmas e lendas do rio
    fico a vagar com as lembranças no escuro
    paisagem oculta da terceira margem do Marajó-Açu
    viagens redondas em montaria a remo entre este e o outro rio Arary
    que nem o carpinteiro Camilo a conversar com as visagens da praça
    horas mortas:
    ele soltando o verbo cheio de espírito da garrafa do bar do Lindolfo
    eu, coitado, bêbado de recordações e imaginações
    dos primeiros dias e noites do Fim do Mundo
    ilha paresque que se transforma em cobragrande e navio encantado
    Nossa Senhora da Conceição desce do altar e vai passear nas praias
    caminho do Belém no Campinho ao Santo Lenço até Mangabeira:
    acaso dando azo à conclusão da concebida e ingênua fábula
    dos pescadores reação à mudança da antiga freguesia da beira da baía.

     

    Tudo isto porém depois que a Usina de Luz se apagou
    parou a força de seus cavalos-vapor cansados de trabalhar como lenhadores
    fatigados da tiração de lenha na mata pública entre o Arapiná e o Dixiú
    justa aposentadoria do senhor Veloso escada às costas para acender bicos de lampião à gás de carbureto iluminação supimpa ainda do tempo do velho intendente José Ventura plantador de mangueiras da nossa primeira arborização de rua ouvir o relógio da Matriz bater as 12 badaladas da meia-noite lembrar a estória de como coletores de óbulos para construção da igreja
    deram corda e pegaram na palavra o senhor de engenho da Campinha
    pra trazer o famoso relógio que parte e reparte as horas e a vida da vila
    Pedro Malato e Luciano Pereira a engendrarem a pior visagem que existiu
    com mãos invisíveis a tocar finados no campanário da igreja ah, Por Deus!
    O pânico saiu de controle e quem queria meter medo aos outros morria de medo de levar sova
    quebrando o caroço mágico onde antigamente se escondiam as trevas
    da primeira noite do mundo guardada no fundo do rio pela cobragrande da ilinha do Coati
    confronte ao Fim do Mundo o eletricista Amanajás foi dormir mais cedo o merecido sono
    sonhando com a bateria da orquestra deixada a bordo do  navio do Loide
    quando ele se encantou por uma linda moça pontapedrense chamada Cirene
    devota dedicada e diretora da festa do casamenteiro Santo Antonio.

     

    O rio Marajó grande em pessoa comigo às vezes se confunde
    eu me afogo novamente em suas águas turvas de aguardente e sesta
    engenho das ideias de fogo morto sob chuva e mudança dos ventos
    impotente que nem um cão capado na porta do mercado às moscas
    ver a cachorrada no cio pensando na barrigada que ele faria se fosse inteiro
    a sonhar com o ócio da Terra sem males prometida pelos caraíbas canibais
    ou o santo Paraíso falado pelos padres e pastores
    malgrado os males do inferno verde nesta nossa vida ribeirinha.

     

    Eu não sou galo, mas porém eu canto de madrugada pra despertar a manhã:
    a quase morte do pequeno que fui naquele dia no banho de rio
    à ilharga da ponte do João Ramos iria matar o poema no nascedouro, abortar a estória geral do Curralpanema.
    O perau era paresque armadilha do tal Abismo no raso por acaso
    Casa da Beira o estaleiro da canoa “Africana” que era barco “Santiago”
    do meu avô Chico Varela feito a capricho pelo mestre Maximino Vieira
    avô do meu mano Zequita e da mea mana Zezé, filhos da tia Palmira
    barco esse que virou igarité freteira de comércio do senhor João Ramos
    bom português beirão emigrado ao Grão-Pará parou em Ponta de Pedras
    pelos encantos de Dona Iaiá Carneiro com quem casou, fez o Chalé
    e fundou grande família pontapedrense a canoa “Africana” virou geleira “São Judas Tadeu” do Renato Machado que tornou a ser barco, paresque,  nas rotas do contrabando das Guianas
    levando lá fora café em grão que o sargento-mor Palheta furtou de Caiena
    idos de mil e 700 para fazer ricos cafezais em São Paulo via grão Pará
    idas cavilosas e voltas clandestinas nos anos da Graça de mil 9centos e 60
    ao sonzão de merengue, mambo, salsa, cumbia, calipso pra dar bacana em ‘zouk-machine’ & tecnobrega do tremendão Tupinambá índio canibal, sim senhor, civilizado pra ser DJ do Apocalypso.

     

    Salvou-me de ser morador precoce do fundo reino encantado da Boiúna
    e virar mais um anjinho da mortalidade infantil no Cemitério Municipal
    o filho do carpinteiro Camilo compadre de meu pai, o pirralho pretinho nadava como peixe e eu tralhoto jito na beira morrendo de inveja fui me arriscar sem ao menos uma bóia de miriti.
    Taqui pra ti moleque safado, égua mano: quase morri afogado…
    Bem feito!
    Se escapou da voragem do rio vá estudar e aprender a ser gente de fato
    no mato sem cachorro.

     

    Oh, como eu queria na boca do Campinho ouvir estória de Mestre Orestes
    saber do Parriba, Suruaia, mestre Paulo Mala Real, João Catumbi e todos mais ali…
    Todos nomes de canoas do Itaguary como contas de um rosário de contos das 1001 noites da Casa da Beira e bar do Emérito: memorial do Açaí ou da ‘Euterpe oleracea’ pra gente metida à besta: desde o emblemático bote leva e trás chamado “O Boateiro” com um galo só por despertador
    e proeiro o navegador Catumbi solitário na cana de leme à popa…
    Caripirá, Dinoca, Thetis, Caprichosa, Rosa de Maio, Patativa, Sincera…
    O museu das igarités mora na beira do rio no estaleiro de mestre Maximino
    sobre palafitas invisíveis.

     

    Agora toca a mexer com guardados do fundo do baú da avó Sophia
    (na verdade tia):
    o sítio Menino Deus do Paricatuba tem a chave do romance iberiano
    do tio Dalcídio no retiro dele lá em Salvaterra depois da prisão
    cadeia de São José cativo que iria ser Liberto mais tarde
    escreve “Marinatambalo” depois de “Chove nos campos de Cachoeira”
    digo, o fora de série “Marajó”comendo o pão que o Diabo amassou…
    Orminda objeto de desejo e pecado incestuoso do coronel Coutinho,
    Alaíde amásia resignada do filho progressista do coronel conservador
    o bardo Ramiro da irreverente chula comido de piranhas e cachaça no lago
    Criaturada grande toda ela clamando: profecia do avô Bibiano no miritizal
    aquele grito tamanho chamado da mãe África
    a povoar regiões amazônicas antes que se acabe o derradeiro Índio:


                         “Missunga, ó Missunga!”….
    grito da senzala mato adentro na hora da sesta, João Maçaranduba caduco pegando menina negra, surrando negro dormindo no canavial
    deixa estar, senhor, o Cão dos infernos vem te buscar em vida diz a chula…
        “Maçaramduba é boa madeira / João Calandrine não é brincadeira”
    Ah, por que meu preto velho, não ensinastes o caminho do mocambo
    àqueles perdidos que varavam a noite aos gritos pelos campos estranhos?
    fantasmas da escravatura ainda gemem dentro de nós pedindo:
                        “Me ensina o caminho, me ensina o caminho”…
    Libertas e serás também, meu senhor e minha senhora dona!

    Um novo dia há de amanhecer na beira da Mangabeira
    velha tapera da avó indígena desta brava gente do Itaguary:
    aqui o Marajó começa
    promessa que faz rebrotar a flor encarnada sobre cercas e muros, rimas, prosas e versos de amor: rumos, remos e velas
    refazenda duma bela aldeia no Fim do Mundo.

     

                          “Bem vindos e vejam que as pedras que somos,
                            não estão de pontas, mas ligadas entre si.”

     

     

       José Varella, Belém-PA (1937), autor dos ensaios “Novíssima Viagem Filosófica”, “Amazônia Latina e a terra sem mal” e “Breve história da amazônia marajoara”.

    autor dos ensaios “Novíssima Viagem Filosófica” e “Amazônia latina e a terra sem mal”, blog http://gentemarajoara.blogspot.com

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