Milhares se unem pela Terra em Brasília
Uma coalizão inédita de cerca de 40 artistas e mais de 230 organizações da sociedade civil realizou nesta quarta-feira (9), em Brasília, a maior manifestação ambiental já feita no país fora de conferências da ONU. Liderado por Caetano Veloso, o Ato pela Terra reuniu milhares de pessoas no gramado em frente ao Congresso Nacional para protestar contra o “combo da morte”, o conjunto de projetos de lei que ameaça o meio ambiente e os povos indígenas.
Enquanto Caetano cantava, com convidados como Emicida, Criolo, Maria Gadú, Seu Jorge, Nando Reis e Daniela Mercury, a poucas centenas de metros dali o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), fazia avançar justamente um dos mais cruéis dos projetos contra os quais as vozes se levantaram ontem na capital. Lira aprovou por 279 votos a 180 o requerimento de urgência para a apreciação do PL 191, que libera garimpo, construção de hidrelétricas, mineração industrial e plantio de monoculturas geneticamente modificadas em terras indígenas – na maioria dos casos, sem a necessidade de sequer ouvir os índios.
De autoria do governo Bolsonaro, o PL 191 foi proposto em 2020, logo antes da pandemia, como “comemoração” aos 400 dias do regime. Mas foi engavetado pelo então presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Com a invasão russa da Ucrânia, que cortou o fornecimento de potássio russo ao Brasil para fazer fertilizantes, Bolsonaro alegou que estava aberta uma “oportunidade” para avançar a mineração em territórios indígenas – mentindo que a maior parte das jazidas de potássio do país estão nesses territórios. Lira prontamente aquiesceu, numa afronta direta à manifestação que acontecia do lado de fora do Congresso.
O ato começou com uma audiência no STF logo após o almoço. O grupo de artistas e ativistas foi recebido pelos ministros Rosa Weber, Cármen Lúcia, Luís Barroso e Alexandre de Moraes, e entregou a eles um manifesto sobre os riscos jurídicos do pacote legislativo da destruição.
Em seguida, os líderes do ato foram ao Senado Federal. No Salão Negro, tiveram uma audiência com o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG). Caetano Veloso leu um discurso em que lembrava que tanto ele quanto o senador vinham de Estados muito afetados por desastres ambientais – como Mariana e Brumadinho – e climáticos, como as enchentes do sul da Bahia. Também expressou preocupação com os retrocessos que vive o Brasil e destacou que a situação pode se agravar de forma irreversível com aprovação de projetos que desmontam políticas para o meio ambiente.
“O país vive hoje sua maior encruzilhada ambiental desde a redemocratização. O desmatamento da Amazônia saiu do controle. A violência contra os indígenas e outros povos tradicionais aumentou, e as proteções sociais e ambientais construídas nos últimos quarenta anos vêm sendo solapadas. Nossa credibilidade internacional está arrasada. O prejuízo é de todos nós”, afirmou Caetano.
A seguir, a líder indígena Sonia Guajajara, o ator Lázaro Ramos e os cantores Daniela Mercury, Seu Jorge e Nando Reis fizeram suas falas também manifestando preocupação com a recente política ambiental brasileira e pedindo ações concretas. “O agronegócio está cometendo uma autofagia”, disse Nando Reis sobre a pressão da bancada ruralista para aprovar projetos antiambientais.
“Gente, é o Chico!”
No meio das falas, a produtora Paula Lavigne, mulher de Caetano e uma das organizadoras do ato, interrompeu os discursos para atender o telefone. “Gente, é o Chico!” Do outro lado da linha, Chico Buarque, de quem Pacheco é fã, pedia para falar em apoio ao ato e contra os projetos de lei.
Chico explicou que acabara de fazer uma cirurgia e não pôde estar em Brasília. Mas disse que estava com os artistas para manifestar repúdio ao pacote da destruição.
“Não se trata de preconceito. Ninguém é contrario ao agronegócio em si, mas à falta de limites e à ganância desenfreada dos negociantes. Esse projeto já passou na Câmara dos Deputados, mas tenho certeza que o Senado vai impedir ou pelo menos adiar o quanto for possível a aprovação de projetos dessa natureza, que são criminosos”.
Rodrigo Pacheco deixou muitas dúvidas no ar sobre essa possibilidade quando falou, após os artistas. Ele elogiou o ato, afirmando que “esta foi sem dúvida alguma uma das mais belas manifestações da sociedade civil que esse Congresso Nacional já viu”. No entanto, reclamou de que muitas críticas que o Brasil sofre por maltratar o meio ambiente seriam “injustas” – afinal, ponderou, o país tem uma matriz energética limpa.
Pacheco passou então a desfiar o mesmo discurso da bancada ruralista de que o Brasil tem leis ambientais muito rigorosas, que impõem limites ao exercício do direito de propriedade. Afirmou que “nenhum dos PLs foi objeto de açodamento de minha parte, e não será”. Prometeu que os projetos do pacote da destruição passariam por trâmite em comissões antes de ir a plenário – o que não chega a ser uma promessa, porque os PLs da grilagem (2.633 e 510) e o do licenciamento (3.729) já estão pautados nas comissões de Meio Ambiente e de Agricultura. O máximo que concedeu aos manifestantes foi dizer que eles serão examinados em detalhe.
Enquanto a audiência acontecia, dezenas de organizações, de movimento negro, sem-terra, indígenas, jovens, ambientalistas e religiosas (como CNBB e evangélicos) discursaram sob sol forte no trio elétrico que receberia Caetano e os outros músicos no final da tarde. O cantor baiano iniciou com “Luz do Sol” por volta de 18h30, quando o gramado começou a encher.
Entre uma e outra, os convidados de Caetano se revezaram no palco, com Maria Gadú cantando “Podres Poderes”, Criolo e Emicida fazendo um duelo de MCs e Daniela Mercury quase botando o carro de som abaixo. As apresentações foram entremeadas com gritos de “Ei, Bolsonaro, vai tomar no…!” e “Fora, Bolsonaro!”, este último respondido por Caetano com um “sem dúvida”. Pouco antes das 22h, Caetano Veloso encerrou o show com a mesma emoção que conduziu todo o ato. Ao lado de indígenas, cantou pela segunda vez – a primeira havia sido durante a audiência com Pacheco – a canção “Terra”.