Os comunistas, a ciência e a tecnologia
Ao longo da história os comunistas sempre mantiveram uma relação íntima com o tema da Ciência e Tecnologia.
Na última semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou o nome da presidenta nacional do PCdoB, Luciana Santos, para o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). A notícia logo fez surgir o questionamento por parte de alguns liberais e conservadores: “Mas o que os comunistas têm a ver com ciência e tecnologia?”, perguntavam uns. “Os comunistas odeiam máquinas”, afirmavam outros.
Trata-se, evidentemente, de desconhecimento ou de má-fé. Afinal, a ciência, a tecnologia e a inovação ocupam espaço de destaque não apenas na teoria marxista que informa a prática comunista, mas também nos espaços de gestão ocupados pelos comunistas em todo o mundo. Vejamos.
Marx, a ciência e a tecnologia
Muitas vezes o senso comum confunde a prática dos comunistas com a dos chamados luddistas. O luddismo foi um movimento do início do século XIX na Inglaterra, mais precisamente em 1812, quando operários do ramo da tecelagem optaram por destruir as máquinas como forma de protesto. O movimento se baseava na ideia de que as máquinas seriam as principais responsáveis pelo aumento do desemprego no país.
Não obstante a importância histórica desse movimento de crítica do início da Revolução Industrial, faltava, no entanto, uma compreensão melhor do significado do capitalismo para aqueles trabalhadores.
Karl Marx, fundador do programa dos comunistas, foi um dos primeiros a perceber isso. Sabemos que Marx lançou a hipótese do proletariado como sujeito histórico nos famosos Anais Franco Alemães, revista publicada em fevereiro de 1844, em Paris, com textos que haviam sido escritos em fins de 1843. Mas até aquele momento não se passava de uma hipótese, uma ideia sem empiria. Marx ainda não havia visto o proletariado em ação. Isso mudou em junho de 1844 quando Marx observou entusiasmado o levante dos tecelões da Silésia. E qual a razão de tanto entusiasmo? Ora, o fato dos tecelões da Silésia não atacarem as máquinas, mas sim a propriedade privada e os banqueiros. Diferentemente dos luddistas, nascia com os tecelões da Silésia um movimento “consciente da essência do proletariado” (1).
Se, em 1844, Marx percebeu que a tecnologia – como força produtiva – não era a inimiga a ser combatida, dois anos depois, na virada de 1846 para 1847, ele entendeu que ela poderia ser uma aliada. É o que podemos interpretar da famosa passagem da Miséria da Filosofia:
“As relações sociais estão intimamente ligadas às forças produtivas. Adquirindo novas forças produtivas, os homens mudam o seu modo de produção, e ao mudarem o modo de produção, a maneira de ganhar a vida, mudam todas as suas relações sociais. O moinho manual dar-nos-á a sociedade com o suserano; o moinho a vapor, a sociedade com o capitalista industrial” (2).
Foi, contudo, dez anos depois que Marx chegou ao ápice dessa formulação sobre a importância do desenvolvimento tecnológico para a transformação da sociedade. Com seus Grundrisse, redigidos entre 1857 e 1858, Marx acreditava que com o desenvolvimento tecnológico e a automação,
“dá-se o livre desenvolvimento das individualidades e, em consequência, a redução do tempo de trabalho necessário não para pôr trabalho excedente, mas para a redução do trabalho necessário da sociedade como um todo a um mínimo, que corresponde então à formação artística, científica etc. dos indivíduos por meio do tempo liberado e dos meios criados para todos eles” (3).
Por óbvio, para Marx o desenvolvimento tecnológico não basta por si só. Como bem explica Meszáros, seria uma ilusão acreditar que a ‘“ciência e tecnologia’ resolverão as graves deficiências já inegáveis e as tendências destrutivas da ordem estabelecida de reprodução” (4). Ciência e tecnologia não são neutras, alerta Mészáros. Elas precisam ser “radicalmente reconstituídas como formas da prática social” (5).
É por isso que a luta de classes tem papel fundamental na construção de novas relações sociais de produção. Como bem lembra Friedrich Engels em sua carta para Joseph Bloch, de 1890, se a luta política fosse desnecessária, Marx não teria incluído um capítulo sobre a jornada de trabalho (Capítulo 8 do Vol 1) no Capital (6). Ou seja, a transformação social parte da articulação entre a luta por novas condições de trabalho e o desenvolvimento tecnológico ou, em outras palavras, parte da contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações sociais de produção existentes (7).
Sobre a relevância dessa articulação entre luta política e desenvolvimento tecnológico para os comunistas, vale a pena lembrarmos de Lenin, logo após a Revolução de 1917, quando defendia que a tarefa imediata do poder soviético seria “adotar a todo o custo as conquistas mais valiosas da ciência e da técnica” (8). Lenin sabia que a transformação da sociedade soviética dependia não apenas da tomada do poder pelos comunistas, mas também da sua capacidade de acelerar o desenvolvimento científico e tecnológico do país.
E talvez tenha sido justamente a incapacidade de levar adiante o processo permanente de inovação tecnológica o que levou ao declínio da URSS algumas décadas depois. Como já é sabido, a partir da década de 1970 a URSS se tornou cada vez mais dependente da importação de pacotes tecnológicos dos países capitalistas, o que minou sua capacidade produtiva (9).
A China, ao contrário, soube aprender com o erro da URSS. Essa é a razão do sucesso do modelo socialista chinês no século XXI como demonstra a literatura marxista mais atual (10).
Os comunistas e a predileção pela CTI na gestão do Estado
Não é coincidência, portanto, que nos poucos países capitalistas em que os comunistas ocupam vagas ministeriais, seja justamente o MCTI o espaço escolhido. Foi assim no início do governo de Gabriel Boric, no Chile, quando Flavio Salazar foi indicado para o Ministério de Ciência, Tecnologia, Conhecimento e Inovação. Vice-reitor de Pesquisa e Desenvolvimento da Universidade do Chile, Salazar é um quadro importante do Partido Comunista do Chile (PCCh). Essa situação também se dá na África do Sul onde o Secretário Geral do Partido Comunista da África do Sul, Blade Nzimande, é também o Ministro de Educação Superior, Ciência e Tecnologia do país.
Mesmo no Brasil, num dos melhores momentos do setor em nossa história (2003-2015), os comunistas contribuíram decisivamente com a participação de Luis Manuel Rebelo Fernandes na presidência da FINEP e na Secretaria Executiva do MCTI e com Olival Freire como Coordenador do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia.
Os comunistas também têm ocupado nos últimos anos algumas Secretarias Estaduais de CTI como foi no Ceará com Inácio Arruda e Carlos Décimo e em Pernambuco com José Bertotti e Marcelino Granja.
Em Goiás, com Gilvane Felipe e Denise Carvalho, o PCdoB dirigiu a Secretaria de Ciência e Tecnologia entre os anos de 1999 e 2004, tendo sido a força política responsável por vigoroso avanço da pesquisa científica, da inovação tecnológica e da estruturação de arranjos produtivos no Estado. Denise Carvalho foi a primeira secretária do centro-oeste e primeira mulher a presidir o Fórum Nacional de Secretários de Ciência, Tecnologia e Inovação e, como tal, esteve à frente de avanços decisivos obtidos neste setor no primeiro governo Lula.
A própria Luciana Santos, que agora assume como ministra, possui larga experiência no setor. Além de já ter sido Secretária Estadual de C&T em Pernambuco, foi também ativa na Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Deputados.
O desafio dos comunistas no MCTI brasileiro
Como nova responsável pelo MCTI, Luciana Santos terá desafios imediatos enormes como a recomposição dos valores das bolsas do CNPq, e a recuperação do CEITEC e do Centro de Biotecnologia da Amazônia, por exemplo. Mas há um desafio estratégico de médio e longo prazo que também precisa ser iniciado agora.
Em pesquisa recente publicada na Revista Tempo do Mundo, do IPEA, os professores Luis Manuel Rebelo Fernandes, Ana Saggioro Garcia, Samuel Rufino de Carvalho e Lucia Viegas demonstraram como capacidades nacionais em ciência, tecnologia e inovação se tornaram um vetor central da reconfiguração do poder mundial (11).
A partir do conceito marxista de “desenvolvimento desigual”, os autores examinaram a evolução das posições relativas ocupadas por Estados Unidos, União Europeia (UE), China, Japão, Índia, Rússia, Brasil e Coreia do Sul na economia global entre 1990 e 2020 em três dimensões: dinamismo produtivo; dinamismo científico e tecnológico; e dinamismo de inovação.
Do ponto de vista do dinamismo produtivo, a China aumentou o seu PIB/PPC mais de dezoito vezes no período, passando de US$ 1,3 trilhão em 1990 para US$ 24,3 trilhões em 2020, ultrapassando a UE e os Estados Unidos. Em relação ao dinamismo científico e tecnológico, a China, aumentou em oito vezes a sua participação no total de publicações indexadas (passando de 3% em 1996 para 16% em 2020). Em 2020, a China ultrapassou os Estados Unidos e passou a ocupar a segunda posição na produção científica e tecnológica global. A Europa ainda aparece em primeiro lugar nesse quesito, mas em declínio. Já no dinamismo de inovação a China ultrapassou, de longe, o desempenho das potências tradicionais (Estados Unidos, Europa e Japão) no indicador, passando de 1% do total de patentes requeridas em 1990 para 43% em 2020.
Os autores concluem que, se o Brasil tem pretensão de alterar sua posição relativa no sistema internacional, é preciso incorporar de forma consistente “a pesquisa, o desenvolvimento tecnológico e a inovação às suas políticas e ações de promoção do crescimento econômico”.
Esse é o desafio dos comunistas no MCTI do Brasil no próximo período.
Notas:
1 MARX, Karl. Glosas críticas… In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Lutas de classes na Alemanha. São Paulo: Boitempo, 2010. (P. 44)
2 MARX, Karl. Miséria da Filosofia. Porto: Publicações Escorpião, 1974. (P. 88)
3 MARX, Karl. Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011. (P. 588)
4 MÉSZÁROS, István. Para além do capital. Campinas: Editora da Unicamp, 2002. (P. 254)
5 MÉSZÁROS, István. Para além do capital. Campinas: Editora da Unicamp, 2002. (P. 265)
6 ENGELS, Friedrich. Carta para Joseph Bloch. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1890/09/22.htm
7 MARX, Karl. Prefácio. In: MARX, Karl. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (p. 52)
8 LENIN, Vladimir. As tarefas imediatas do Poder Soviético. In: LENIN, Vladimir. Obras Escolhidas. Lisboa: Edições Avante, 1978. (P. 574)
9 FERNANDES, Luis. A revolução bipolar: a gênese e derrocada do socialismo soviético. São Paulo: Anita Garibaldi, 2017.
10 JABBOUR, Elias; GABRIELE, Alberto. China: o socialismo do século XXI. São Paulo: Boitempo, 2021.
11 GARCIA, A. S., REBELO FERNANDES, L. M., RUFINO DE CARVALHO, S., & VIEGAS, L.. A vingança de Prometeu: ciência, tecnologia, inovação e a reconfiguração do poder internacional no século XXI. Revista Tempo Do Mundo, (28), 43-84, 2022.
Theófilo Rodrigues é pesquisador de Pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UERJ. Doutor em Ciências Sociais pela PUC-Rio e Mestre em Ciência Política pela UFF.