O cretinismo anticomunista do bolso-fascismo
O professor João Quartim de Moraes denuncia o ataque fascista de parlamentares bolsonaristas contra o movimento comunista no Brasil.
Por João Quartim de Moraes
Uma deputada do PL, Coronel Fernanda, apresentou na Câmara Federal um projeto de lei (nº446/23) que pune com reclusão de dois a cinco anos e multa quem fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a foice e/ou o martelo, para fins de divulgação do comunismo ou o socialismo. Acrescentou, à guisa de argumento: “A proibição a partidos nazistas deve se estender aos que pregam o comunismo/socialismo, pois os crimes cometidos em nome desta ideologia foram ainda maiores do que os perpetrados pelo nacional-socialismo de Adolf Hitler”.
A coronel deputada é da barra pesada. Uma integrante da boiada bolsonarista do PL, Gizela Cristina Bohrer, presa pela Polícia Federal por participação na marcha fascista sobre Brasília e no assalto aos três poderes em 8 de janeiro, confessou em depoimento que ela e comparsas tiveram as despesas de viagem pagas pela coronel e outros financiadores da intentona golpista. (Portal 247, 16 de março de 2023, 17:26).
Entre as besteiras que a coronel zurrou a respeito do comunismo está uma pseudo estatística: o comunismo “matou e mata mais do que qualquer outra ideologia, foi e é ainda mais genocida do que o nazismo”. A credibilidade da coronel pode ser aquilatada, além de sua participação no criminoso atentado contra as instituições democráticas, por sua defesa frenética do “kit cloroquina” no auge da pandemia. De genocídios ela entende, como se vê.
Diz um adágio que quando alguém discute com um idiota, são dois idiotas discutindo. Não daremos quórum a esses certames de pobres de espírito. Apenas notamos que nenhuma manipulação estatística apagará o fato de que considerando o critério rigorosamente objetivo da quantidade de mortos por unidade de tempo, a maior operação de extermínio de toda a trajetória do homo sapiens ocorreu em 6 e 9 de agosto de 1945: o governo estadunidense lançou sobre Hiroshima uma bomba atômica, seguida três dias depois por outra lançada sobre Nagasaki, que pulverizaram em alguns minutos cerca de 200.000 habitantes das duas cidades japonesas.
A investida macarthista da detestável Coronel Fernanda repete, com fidelidade de papagaio, dois projetos de lei apresentados pelo deputado Eduardo Bolsonaro: o de nº 5358/16, quando vestia a camiseta do PSC, e o de nº 4425/2020, quando inscrito no PSL. (Ao todo, E-Bozo passou em vinte anos por seis legendas de aluguel). São projetos do mais baixo nível: tentam deturpar leis preexistentes, cuja finalidade explícita é condenar o racismo e, por isso mesmo, a doutrina cuja propaganda elas vedam é o nazismo, que é intrinsecamente racista, dividindo a humanidade entre raças superiores e raças inferiores, preconizando a dominação daquelas sobre estas e, uma vez no poder, exterminou, com sistemática frieza de psicopatas, os judeus, os ciganos e os soviéticos. A lei 7.716/89 considera crime: “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, com pena de reclusão de um a três anos e multa”. O § 1º do artigo 20, modificado pela lei nº 9459 de 15 de maio de 1997, estipula a pena de “reclusão de dois a cinco anos e multa” para quem “fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo”.
A vulgar malandragem dos bolsofascistas consiste em tentar desviar a finalidade dessas leis, explicitamente antirracistas, para tentar criminalizar, ao modo da ditadura militar de 1964-1985, o “fomento ao embate de classes sociais”. Segundo essa tipificação fascistoide, seria crime “fomentar” greves e outros modos de luta dos trabalhadores. Ao passo que fomentar golpes de Estado nas portas dos quarteis, invadir, emporcalhar e depredar Congresso, STF, Presidência, seriam meros arroubos democráticos dos “patriotas”.
Juntar comunistas e nazistas na vala comum do “totalitarismo” não é invenção bolsonarista. Na duvidosa tarefa de elaborar o policialesco PL 4425/2020, E-Bozo disse ter se inspirado no “escritor Olavo de Carvalho”. Mas tampouco esse intelectual vigarista, especializado em mistificações de cartomante e em injúrias do mais baixo calão, era capaz de inventar uma ideia. A assimilação do comunismo ao nazismo por meio da doutrina do “totalitarismo”, lugar comum do arsenal ideológico liberal, remonta ao início da guerra fria e prosperou no embalo da histeria macarthista.
Sintomaticamente, o projeto malandro da extrema-direita bolsonarista limita-se a condenar o nazismo junto com o comunismo, excluindo o fascismo, o qual, no entanto, se considerava explicitamente um regime totalitário. Segundo E-Bozo, os “principais exemplos” de “genocídio”, seriam “o nazista Adolph Hitler e os comunistas Josef Stalin, Mao Tsé-Tung, Pol Pot, Fidel Castro e mais recentemente Hugo Chávez e Nicolás Maduro”. Nenhuma referência ao grande sócio de Hitler, Mussolini. Não que não houvesse nazistas explícitos no governo Bolsonaro. Havia o secretário da Cultura Roberto Alvim, que em janeiro de 2020 citou aprobativamente Goebbels numa declaração pública. Tiveram de demiti-lo: afinal a extrema direita bolsonarista apoia irrestritamente o regime israelense de “apartheid” e seu patrono estadunidense. O recado aos demais nazistófilos do governo era claro: gostam do Reich de Mil Anos? Guardem para si esse sentimento.
Outra maneira de se afastar publicamente dos seguidores de Adolf Hitler foi sustentada pelo patético E-Araújo, quando ministro do Exterior do governo bolso-fascista. O petulante energúmeno alegou que o nazismo era de esquerda. Provocou risos nos meios intelectualmente civilizados. Mas em sua rude mentalidade de miliciano bíblico ele apenas tirava a consequência de seu silogismo: se comunismo e nazismo são iguais e se o comunismo é de esquerda, o nazismo também é. Na cretinice da conclusão araujesca não há, pois, erro lógico. Cretina é a premissa comunismo=nazismo. Longe, porém de ser sustentada apenas pelos bolsonaristas, ela prospera no ambiente político e ideológico reacionário do chamado “Ocidente”.
Os liberais intelectualmente honestos reconhecem a radical oposição entre o igualitarismo universalista da ideologia comunista e o racismo radical dos nazistas, que consideram os não-arianos sub-humanos. É o que bem expressou Mario Stoppino no tópico III do verbete Totalitarismo do Dicionário de política organizado por Norberto Bobbio, N. Matteucci e G. Pasquino:
“A ideologia comunista é humanística, racionalista e universalista; seu ponto de partida é o homem […] é por isso que ela assume a forma de um credo universal que abrange todo o gênero humano. A ideologia fascista é organicista, irracionalista e anti universalista; seu ponto de partida é a raça […]. Ela toma por isso a forma de um credo racista que trata com desprezo […] a ideia ética da unidade do gênero humano[…]. A ideologia comunista enfim, é revolucionária: apresenta-se como herdeira do Iluminismo e da Revolução Francesa[…].A ideologia fascista é reacionária: ela é herdeira das tendências mais extremas do pensamento contrarrevolucionário […]em seus componentes irracionalistas, racistas e radicalmente antidemocráticos […]”.
Vê-se, pois, que a atitude perante o comunismo é um critério decisivo para distinguir o liberalismo burguês civilizado de suas modalidades política e culturalmente degeneradas, das quais o bolsonarismo é expressão cabal.
João Quartim de Moraes é professor colaborador na Unicamp e pesquisador do CNPq centrado em história do pensamento político, instituições brasileiras, materialismo antigo e moderno, e marxismo. Autor de diversos livros e artigos, no Brasil e na Europa. Graduou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade de São Paulo (1964), graduação em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1964), licenciou-se em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1964) e doutorou-se (Doctorat D’État en Science Politique) na Fondation Nationale de Science Politique da Academia de Paris (1982). Foi professor titular da Universidade Estadual de Campinas de 1982 a 2005.