Venezuela e os novos desafios
Pois foi no período natalino, quando mais se pronuncia – e em grande parte em vão – a palavra solidariedade, que a Revolução Bolivariana se destaca por renovar a ajuda que, há oito anos, é destinada a comunidades pobres dos EUA, por intermédio da empresa estatal Citgo, subsidiária da PDVSA, a Petrobrás venezuelana. A cada inverno no hemisfério norte, que costuma ser rigoroso e causar mortes entre as famílias mais pobres, o governo Chávez doa um estoque de combustíveis para milhares cidadãos carentes de várias cidades dos EUA usarem em seu aquecimento doméstico.
Vale lembrar: recentemente as verbas oficiais utilizadas na compra destes insumos para proteção do frio foram cortadas pela insensibilidade do presidente Barack Obama. Isto, no mesmo ano em que os EUA multiplicaram seu orçamento bélico e quando sustentou, em conjunto com os endividados países da OTAN, 203 dias ininterruptos de demolidor bombardeio a Líbia. O que explica a nova alcunha do mandatário: Barack Obomba…Curioso foi notar que esta notícia foi publicada no jornal “El Nacional”, como a insinuar que seria absurdo Chávez preocupar-se com os pobres dos EUA. Registre-se: a tiragem deste jornal já alcançou 400 mil exemplares diários quando Chávez foi eleito, e agora, depois de 12 anos de editorialismo anti-chavista, e muito anti-jornalismo, a tiragem reduziu-se a 40 mil exemplares.
O reconhecimento da Cepal
Por falar em solidariedade prá valer, o período natalino coincidiu com a divulgação de Relatório da Cepal, intitulado “Panorama Social da América Latina 2011”, no qual se revela que, dentro de um quadro geral de redução da pobreza na região, é a Venezuela o país que registra a melhor distribuição de recursos orçamentários. Segundo a Cepal, no período compreendido entre 1990 e 2010 a taxa de pobreza na América Latina foi reduzida em 10 pontos percentuais, enquanto que na Venezuela, a redução da pobreza alcançou a cifra de 20 pontos percentuais considerando o período de 2002 a 2010.
Dados oficiais indicam ainda que a partir do início da Revolução Bolivariana até hoje, a Venezuela teve quase duplicada a sua taxa de investimento social, passando de 36 por cento em 1999, para 62 por cento na atualidade. Isto inclui vastos investimentos em educação que permitiram ao país ser reconhecido, pela UNESCO, como Território Livre do Analfabetismo. E também em saúde, pois hoje, a Venezuela já registra 90 por cento de abastecimento de água potável, sendo considerado, pela ONU, o país que melhor cumpre os Objetivos para Desenvolvimento do Milênio (ODM), na América Latina.
Petróleo e solidariedade
Todos estes e outros programas sociais tiveram sustentação fundamental na enorme renda petroleira da PDVSA. Razão pela qual o Presidente Hugo Chávez já polemiza com os vários pré-candidatos conservadores para a eleição de outubro de 2012, pois pretendem ver a empresa estatal dedicada apenas à compra e venda de petróleo e seus derivados, abandonando a missão social-transformadora que lhe foi assegurada pela Revolução Bolivariana.
“A eleição de 2012 será entre Chávez e os ianques”, disse o presidente bolivariano, acusando os direitistas de serem “apenas a voz da burguesia nacional e estrangeira”. Ao analisar o discurso do campo conservador, pode-se perceber realmente a intenção de fazer a Venezuela retroceder à era da “Maldição do Petróleo”, expressão utilizada para caracterizar países que, por sua riqueza petroleira, são condenados à cobiça imperial e a esmagar seu próprio povo em torturantes misérias sociais.
Enfrentar a pobreza extrema
Ainda não se sabe qual será o candidato da oposição para disputar com Hugo Chávez. Sabe-se apenas que todos os que se apresentam hoje são favoráveis ao retorno a uma relação de dependência ante aos EUA, e à anulação dos programas de industrialização, bem como dos programas sociais, considerados apenas assistencialismo, no que são apoiados por parte de uma intelectualidade desorientada.
Tal como o conservadorismo brasileiro, a oposição a Chávez percebe os efeitos largamente estruturantes que os programas sociais, lá batizados de Missão, carregam. Conduzem a uma relação mais direta com o estado, elevando o grau de cidadania, propiciando que populações historicamente marginalizadas de tudo, dos serviços públicos, da cultura, do consumo necessário e também da participação política, sintam-se reconhecidos.
A Missão Amor Maior, destina-se a apoiar aos homens maiores de 65 anos e mulheres de 60 anos que vivem em famílias com renda inferior a um salário mínimo. Após cadastrados, passam a receber uma renda mínima, mesmo que jamais tenham recolhido qualquer contribuição ao estado antes. No caso de cidadãos estrangeiros, poderão ser atendidos, desde que comprovem moradia na Venezuela por no mínimo 10 anos. Vale lembrar que a Venezuela, com quase 30 milhões de habitantes, possui pelo menos 4 milhões de colombianos refugiados da guerra entre as Farc e o Exército e paramilitares. Mas os colombianos também recebem documentação, têm acesso igualitário aos serviços de saúde (são atendidos também por médicos cubanos), às creches e às políticas sociais como os Mercals, mercados itinerantes organizados pelo estado, com preços 30 por cento em média mais baixos que no comércio normal.
Sabe-se que até mesmo as elites conservadoras, disfarçadas, já fazem compras nos Mercals, um reconhecimento involuntário de sua eficiência, muito embora mantenham a crítica aos programas de Chávez. A conduta desta elite não surpreende pelo venenoso egoísmo e insensibilidade: quando noticiou-se a enfermidade de Chávez um manto de silencio e tristeza abateu-se sobre a população de Caracas. Minutos depois, apenas nos bairros ricos, ouviu-se foguetório e comemoração, o que indica a baixa estatura moral desta gente para pretender governar um país com a digna história e a potencialidade da Venezuela.
Planificar, planificar, planificar
Em reunião do gabinete de governo, televisionada ao vivo pelo Canal 8, Chávez insistia na necessidade uma planificação superior, mais ordenada, capaz de descobrir e atender as necessidades da população mais carente. Por isso, por meio de um programa chamado Missão Vivenda (Moradia), o estado está buscando saldar o déficit habitacional venezuelano, um país conhecido por imensas favelas narradas nas canções rebeldes de Ali Primera, sem água tratada, sem eletricidade, barracos construídos em locais inadequados. Como no Brasil.
Mas, a planificação estimulada por Chávez visa não apenas atender às famílias cadastradas na Missão Vivenda, que prioriza as 30 mil famílias desabrigadas pelas chuvas de dezembro de 2010, mas também organizar para que estas famílias possam encontrar emprego ou fazer um curso profissionalizante, com bolsas também fornecidas pelo estado. Isto tem que estar contido na planificação estatal. Seguir o pobre até o fim da linha, até sua inserção no sistema de trabalho ou de estudo.
Similaridades
Um outro programa, batizado de Missão Filhos da Venezuela, destina-se a atender a todas as famílias com renda inferior a um salário mínimo, com filhos com idade até 17 anos, e também aquelas famílias carentes com pessoas com alguma necessidade especial em sua casa. Há ainda a preocupação em atender as adolescentes grávidas o que provocou críticas da imprensa conservadora insinuando que tal missão vai estimular a gravidez precoce.
A resposta de Chávez pela tv, com sua comunicação clara e popular, não se fez esperar: “O que quer a oposição? Que abandonemos as adolescentes grávidas à sua própria sorte?“ A prioridade nesta planificação superior sublinhada por Chávez deve ser a construção de uma engrenagem que conecte os programas sociais a uma profissão e a um emprego, priorizando sobretudo a pobreza extrema.
Informação e cidadania
Há similaridades com o Programa Bolsa Escola e com Brasil Sem Miséria, agora complementado pelo Viver Sem Limite, que buscam a pobreza mais extrema que ainda não tinha sido alcançado pelos programas sociais anteriores. E com um olhar especial para as famílias com pessoas com necessidades especiais. Na Venezuela, as famílias serão visitadas por brigadistas, casa por casa. As TVs estatais, ao longo de sua transmissão, informam numa faixa na parte inferior da tela, em que lugar podem ser feitas as inscrições para cada um destes programas, em casa cidade, em cada bairro, em cada endereço…
Aqui, o Programa Voz do Brasil, que informa positivamente sobre quando recursos do MEC ou do Ministério da Previdência chegam aos municípios, poderia também ser utilizado de forma mais ampla para informar sobre os programas sociais do governo Dilma.
Enquanto os pré-candidatos oposicionistas a Chávez recebem amplo apoio dos centros informativos vinculados aos EUA – afinal, será quem dará a última palavra sobre quem será o candidato da direita, como ocorreu nas recentes eleições na Nicarágua e Guatemala – não surpreende que a agenda política da oposição já esteja traçada.
Prioridade número um, claro, derrotar Chávez. Depois, anular totalmente o papel da PDVSA como alavanca dos programas sociais da Revolução Bolivariana. Além disso, desmontar a política externa bolivariana, que prioriza a integração latino-americana, tendo como conquista mais recente o apoio à fundação da CELAC (Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos), que prepara o funeral da funesta e colonialista OEA.
Integração em marcha
Outros instrumentos, que estão sendo implementados pela política externa bolivariana, entre eles o Banco do Sul, a Alba e, mais recentemente, o Banco da Petrocaribe, também são alvo da sanha destruidora da direita. Tais instrumentos fortalecerão ainda mais operações econômicas e comerciais integracionistas, como, por exemplo, a constante nos vários acordos firmados entre Dilma Roussef e Hugo Chávez agora em dezembro, que prevê a compra, pela Venezuela, de 20 aeronaves da Embraer para fortalecer a Conviasa, estatal que recuperou a aviação civil venezuelana.
Aliás, exemplo que poderia estimular a criação, no Brasil, de uma empresa pública de aviação para explorar o enorme potencial de aviação regional, lacuna de difícil explicação num país com indústria aeronáutica do porte da Embraer. Vale lembrar, há 3 anos, a operação de compra de 150 aviões Tucanos da Embraer pela Venezuela, foi vetada pelos EUA, o que não teria ocorrido se a soberania brasileira sobre a empresa não tivesse sido destruída pela privataria tucana.
Ciência da tática
Revelando provavelmente intenções sinistras, um dos candidatos da direita contra Chávez, um jovem rico chamado Leopoldo López, atual prefeito de um município colado à cidade de Caracas, anunciou a contratação do ex-presidente colombiano, Álvaro Uribe, marcado pela organização do macabro para-militarismo, para assessorar os programas de segurança de sua prefeitura. Preocupante: com Uribe presidente, Colômbia e Venezuela romperam relações e estiveram a ponto de um conflito armado.
Com a ciência da tática, Hugo Chávez busca afastar a Colômbia da agenda belicista do Pentágono, desenvolvendo acordos com o presidente José Manuel Santos que complementam segmentos econômicos dos dois países – que um dia foram uma só pátria, na era Bolívar -, inclusive ampliando o comércio bilateral que leva setores industriais colombianos a ver na Venezuela um mercado em expansão, dado a elevação do poder aquisitivo dos venezuelanos.
Com esta tática, se enfraquecem os segmentos da oligarquia colombiana que apostam numa agenda bélica entre os dois países em sintonia com o Pentágono. A crise do capitalismo e, nos EUA em particular, favorece a visão de que a integração latino-americana, baseada na cooperação, exige outras políticas da Colômbia, como de certa forma pode ser lido face à vitória das forças progressistas nas eleições de Bogotá. O que tende a dar mais prazos históricos de consolidação da Revolução Bolivariana.
Percebe-se, em Caracas, o fortalecimento da consciência solidária real. Não apenas natalina, passageira, retórica. Enquanto a Europa capitalista em crise assiste, estarrecida, a demolição dos direitos do Estado do Bem-Estar Social, a Venezuela bolivariana amplia direitos, reparte riqueza e prepara-se para ter uma nova Lei Orgânica do Trabalho. Exemplo disso é que grande parte das famílias desabrigadas pelas chuvas de dezembro passado foram acolhidas em Refúgios organizados e patrocinados por cada Ministério e cada empresa estatal.
Até mesmo a Telesur, que além de promover um jornalismo de integração, transformando a informação em ferramenta solidária entre os povos, organizou o seu Refúgio em um imóvel utilizado para depósito, sendo reformado e adaptado para abrigar 27 famílias flageladas. Ali elas encontram teto, comida, atendimento médico-odontológico e esperam, de modo decente, pela conclusão de 140 mil unidades residenciais que estão em fase de conclusão nos próximos dias. Neste programa habitacional, há uma importante cooperação com a Caixa Econômica Federal, parte dos acordos firmados entre Lula e Chávez e ampliados, recentemente, entre Dilma-Chávez.
Desafios
Lendo os jornais oposicionistas que circulam livremente em Caracas, nada disso se percebe. Não se tem notícia de um país que finalmente está utilizando a renda petroleira para industrializar-se, construindo infra-estrutura, com a participação do BNDES e empresas brasileiras, que operam na ampliação das várias linhas do moderno metrô caraquenho ou de teleféricos que atendem os bairros pobres nos morros, como San Agustín, assegurando um transporte decente para famílias carentes, tal como também no Complexo do Alemão. Indústria de automóveis e tratores iranianas, de caminhões e bicicletas chinesas, estão sendo implantadas. Um país que há 12 anos importava até alface de avião de Miami, já possui uma nova lei de terras e avança na construção de uma economia agrícola que nunca teve durante a maldição do petróleo. De importadora de fósforo a roupas, a Venezuela já exporta principalmente exemplos.
Mas, vale ressaltar, nada disso encontra-se nas páginas da imprensa conservadora. Mas, aos domingos, ao caminhar pelo centro de Caracas, já se nota uma cidade mais limpa, com uma coleta de lixo que funciona e com uma massa de caraquenhos que, ao sair do metrô e sentar num café ou num banco do Boulevar de Sabana Grande, recebe gratuitamente o jornal Ciudad Caracas (350 mil exemplares), em cujas páginas afloram os desafios bolivarianos: reduzir a abstenção eleitoral e assegurar, uma vez mais, pela via do voto popular e direto, que este processo transformador bolivariano, generoso e humanista, siga aprofundando-se. E com ele, a integração latino-americana baseada na cooperação e solidariedade entre os povos.
* Beto Almeida é membro da Junta Diretiva da Telesur