141 anos sem Marx: Leia o obituário publicado em 1883 em Portugal
Esse obituário de Karl Marx foi publicado em 1883 no jornal português “O Protesto Operário – Órgão do Partido Operário Socialista”
Por Theófilo Rodrigues
Em 14 de março de 1883, o mundo perdeu Karl Marx. Para registrar essa data, reproduzo abaixo o obituário que foi publicado em 25 de Março de 1883 no jornal português “O Protesto Operário – Órgão do Partido Operário Socialista”.
O texto traz dois pequenos erros biográficos. Em primeiro lugar, diz que “Karl Marx nasceu em 1814”, mas Marx nasceu em 1818. Em segundo lugar, sugere que Engels foi seu “collega da universidade”. Não se trata exatamente de um erro, pois os dois estudaram filosofia na Universidade de Berlim. Contudo, o contato de Marx com Engels se deu via Gazeta Renana e, posteriormente, pelos Anais Franco Alemães.
O obituário revela que, já em 1883, o movimento socialista conhecia bem uma parte considerável da obra publicada por Marx. São mencionados no texto os Anais Franco-Alemães, A sagrada família, a Miséria da filosofia, o Manifesto Comunista, o 18 Brumário, a Crítica da economia política e O Capital. Por óbvio, não é mencionada a Ideologia Alemã. Afinal, tanto Marx quanto Engels explicaram que esse texto escrito pelos dois na juventude foi abandonado “à crítica roedora dos ratos”. Ou seja, nunca foi publicado em vida pelos autores. Foi somente mais tarde, em 1932, que o Instituto de Marxismo-Leninismo de Moscou o publicou.
No obituário lemos que “É a ele principalmente que se deve o carácter histórico e científico que assumiu o socialismo utopista e sentimental da primeira metade deste século”. Essa compreensão de que Marx fundou o socialismo científico hoje é corriqueira entre os marxistas, mas na época ainda era algo novo. Afinal, essa tese foi propagandeada por Engels apenas alguns anos antes, mais precisamente em 1878 com a publicação do Anti-Dühring. Dois anos depois, em 1880, o genro de Marx, Paul Lafargue, transformou alguns capítulos do Anti-Dühring em um folheto para propagandear essa tese nas massas. Esse panfleto ficou conhecido como “Do Socialismo Utópico ao Socialismo Cientifico”.
Ler a íntegra desse obituário nos ajuda a compreender a dimensão alcançada por Marx no cenário internacional já em seu tempo.
Confira abaixo:
Obituário de Karl Marx (Publicado em O Protesto Operário – Órgão do Partido Operário Socialista, Porto – Lisboa, n.º 3, 2º Anno, 25 de março de 1883).
(Transcrição segundo a ortografia da época)
Como quasi todos os boatos tristes são confirmados para completar, com a dôr que produz a confirmação, o sobresalto que nos tenha acommetido, a noticia do fallecimento de Karl Marx, o nosso venerando mestre, acaba de nos ser confirmada.
Karl Marx acaba de fallecer em Londres quase repentinamente em resultado de uma doença de peito, contrahida ha pouco mais de um anno junto de sua esposa moribunda.
Desappareceu o mais eminente dos socialistas contemporaneos e um dos mais profundos socialistas da nossa época. E´a elle principalmente que se deve o caracter historico e scientifico que assumiu o socialismo utopista e sentimental da primeira metade d´este seculo.
Marx póde tambem ser considerado como o verdadeiro fundador da Internacional, e portanto como o mais poderoso iniciador d´este movimento operario europeu-americano.
Karl Marx nasceu em 1814 em Tréves onde seu pae exercia a profissão de advogado. Começou por estudar direito na universidade de Bonn e depois na de Berlim; mas o seu espirito era demasiado investigador e scientifico para se encerrar no estudo seco e arido da jurisprudencia. O seu gosto pela parte historica do direito, quer romano, quer germanico, impelliu-o para a historia propriamente dita. Ao mesmo tempo entregava-se com paixão á philosophia e até á metaphysica, apesar do seu sceptismo n´este assumpto. Em Berlim encontrou-se com Bruno Bauer, Feuerbach, Heine, Sarauss[N1], Grun, etc., toda a «esquerda hegeliana.»
Foi por esta epocha que seguindo o conselho de um collega da universidade, Frederico Engels, que foi o seu amigo mais dedicado até á morte, Marx se dedicou ao estudo e á critica da economia política. Depois de se doutorar em philosophia, voltou para a universidade de Bonn, onde se abriu um curso na sua qualidade de privat docent.
Era professor havia pouco tempo quando morreu Frederico Guilherme III (1840). Os chefes da democracia liberal e burguesa, os Hanseman Kamphausen, julgando opportuno o momento para as reformas contitucionaes, offereceram a Karl Marx que ainda não tinha 21 annos, o logar de redactor em chefe da «Gazeta rhenana». A sua polemica original e audaciosa não tardou a lançar o panico no poder, que a principio submetteu o jornal á censura, mas depois, pouco satisfeito com o resultado, acabou por o supprimir. Foi então que veio para França, publicando com Ruge e Heine em 1844, os Deutsch Französischen[N2] Jahrbucher (annaes franco allemães). N´esta publicação encontra-se já a idéa mãe do socialismo moderno. Publicou tambem umas apos outras, uma Revisão critica da philosophia do direito de Hegel e a Santa familia contra Bauer, Bruno e consortes; este ultimo livro é dirigido contra o idealismo hegeliano.
Entretanto Karl Marx não se fixava nas altas regiões da philosophia especulativa; entrou valentemente na critica e na elaboração socialista. Assim publicou em 1847 a Miseria da Philosophia em resposta ás Contradicções economicas em philosophia da miseria, de Proudhon. Foi n´esta epocha que publicou com Engels, em Bruxellas (tinha sido expulso de França) o celebre Manifesto dos comunistas que lançou as bases do socialismo moderno, e que trinta annos mais tarde se devia tornar no symbolo da maioria do proletariado socialista de Occidente e da America do Norte.
Quando a revolução de 24 de fevereiro, abalou a velha Alemanha feudal e monarchica, Marx, depois de uma curta residencia em Paris, partiu para Colonia, onde resuscitou a Gazeta rhenana e fez d´ella um estandarte a cuja sombra sustentou contra a reacção prusiana e allemã uma campanha socialista muito notavel, mas bruscamente interrompida em 1850 pela suppressão da Gazeta e pelo famoso processo dos comunistas de Colonia.
Proscrito de novo, Marx refugiou-se em Londres onde se fixou. Data d´esta epocha O dix huit brumaire de Louis Napoleon[N3] (1852) e a brochura acerca do processo dos comunistas de Colonia (1853).
Os annos seguintes foram empregados por Marx n´um grande acto politico e n´uma grande obra philosophica: a fundação d´uma associação internacional dos trabalhadores e a theoria do socialismo historico-scientifico. O seu primeiro pensamento realizou-se na Internacional, o segundo na Critica da economia politica (1859) e principalmente Capital (1867) obra magistral que fez epocha na historia do socialismo, e collocou o seu auctor ao lado dos primeiros economistas criticos e socialistas do nosso seculo.
Querendo ser ao mesmo tempo o propalador das theorias e o impulsor do novo partido socialista, Marx tomou parte activa na direcção da Internacional, bem como na fundação mais recente d´alguns dos partidos operarios actuaes. Mas é principalmente como pensador, como descobridor das leis da evolução economica, principalmente das que presidem á genese do capital e ás transformações obrigadas dos modos de producção, que Marx ficará sendo um dos homens eminentes do nosso seculo.
A grande obra d´este illustre pensador «O Capital» ficou por acabar. A primeira parte d´ella, A producção das riquezas produziu uma verdadeira revolução, mesmo no ensino ex-cathedra da economia politica em toda parte onde este ensino não está completamente munificado. A segunda parte, A circulação das riquezas suppõe-se que ficou bastante adiantada, e a ponto de poder ser publicada por F. Engels, o amigo mais intimo e o mais digo interprete de Marx.
O 3.º volume Historia da theoria devia ser uma analyse critica de toda a litteratura economia. E´para receiar que apenas existam fragmentos esboçados, porquanto Marx considerava esta parte como um trabalho ligeiro e facil.
Tal é, a largos traços, a biografia do chefe scientifico do socialismo contemporaneo e do seu mais profundo pensador, perante o tumulo do qual nós curvamos reverentes a fronte onde marejam as lagrimas do sentimento.
* * *
(Transcrição na ortografia moderna)
Como quase todos os boatos tristes são confirmados para completar, com a dor que produz a confirmação, o sobresalto que nos tenha acometido, a notícia do falecimento de Karl Marx, o nosso venerando mestre, acaba de nos ser confirmada.
Karl Marx acaba de falecer em Londres quase repentinamente em resultado de uma doença de peito, contraída há pouco mais de um ano junto de sua esposa moribunda.
Desapareceu o mais eminente dos socialistas contemporâneos e um dos mais profundos socialistas da nossa época. É a ele principalmente que se deve o carácter histórico e científico que assumiu o socialismo utopista e sentimental da primeira metade deste século.
Marx pode também ser considerado como o verdadeiro fundador da Internacional, e portanto como o mais poderoso iniciador deste movimento operário europeu-americano.
Karl Marx nasceu em 1814 em, Tréves onde seu pai exercia a profissão de advogado. Começou por estudar direito na universidade de Bonn e depois na de Berlim; mas o seu espírito era demasiado investigador e científico para se encerrar no estudo seco e árido da jurisprudência. O seu gosto pela parte histórica do direito, quer romano, quer germânico, impeliu-o para a história propriamente dita. Ao mesmo tempo entregava-se com paixão à filosofia e até à metafísica, apesar do seu ceptismo neste assunto. Em Berlim encontrou-se com Bruno Bauer, Feuerbach, Heine, Strauss, Grun, etc., toda a «esquerda hegeliana.»
Foi por esta época que seguindo o conselho de um colega da universidade, Frederico Engels, que foi o seu amigo mais dedicado até a morte, Marx se dedicou ao estudo e á crítica da economia política. Depois de se doutorar em filosofia, voltou para a universidade de Bonn, onde se abriu um curso na sua qualidade de privat dozent.
Era professor havia pouco tempo quando morreu Frederico Guilherme III (1840). Os chefes da democracia liberal e burguesa, os Hanseman Kamphausen, julgando oportuno o momento para as reformas constitucionais, ofereceras a Karl Marx que ainda não tinha 21 anos, o lugar de redactor em chefe da «Gazeta renana». A sua polemica original e audaciosa não tardou a lançar o pânico no poder, que a principio submeteu o jornal à censura, mas depois, pouco satisfeito com o resultado, acabou por o suprimir. Foi então que veio para França, publicando com Ruge e Heine em 1844, os Deutsch Französische Jahrbücher (anais franco alemães). Nesta publicação encontra-se já a ideia mãe do socialismo moderno. Publicou também umas apos outras, uma Revisão critica da filosofia do direito de Hegel e a Santa família contra Bauer, Bruno e consortes; este ultimo livro é dirigido contra o idealismo hegeliano.
Entretanto Karl Marx não se fixava nas altas regiões da filosofia especulativa; entrou valentemente na critica e na elaboração socialista. Assim publicou em 1847 a Miséria da Filosofia em resposta às Contradicções económicas em filosofia da miséria, de Proudhon. Foi nesta época que publicou com Engels, em Bruxelas (tinha sido expulso de França) o celebre Manifesto dos comunistas que lançou as bases do socialismo moderno, e que trinta anos mais tarde se devia tornar no símbolo da maioria do proletariado socialista de Ocidente e da América do Norte.
Quando a revolução de 24 de fevereiro, abalou a velha Alemanha feudal e monárquica, Marx, depois de uma curta residência em Paris, partiu para Colônia, onde ressuscitou a Gazeta rena e fez dela um estandarte a cuja sombra sustentou contra a reacção prusiana e alemã uma campanha socialista muito notável, mas bruscamente interrompida em 1850 pela supressão da Gazeta e pelo famoso processo dos comunistas de Colônia.
Proscrito de novo, Marx refugiou-se em Londres onde se fixou. Data desta época O dix huit brumaire de Louis Napoleon (1852) e a brochura acerca do processo dos comunistas de Colônia.
Os anos seguintes foram empregados por Marx num grande acto político e numa grande obra filosófica: a fundação duma associação internacional dos trabalhadores e a teoria do socialismo histórico-científico. O seu primeiro pensamento realizou-se na Internacional, o segundo na Critica da economia política (1859) e principalmente Capital (1867) obra magistral que fez época na historia do socialismo, e colocou o seu autor ao lado dos primeiros economistas críticos e socialistas do nosso século.
Querendo ser ao mesmo tempo o propalador das teorias e o impulsor do novo partido socialista, Marx tomou parte activa na direcção da Internacional, bem como na fundação mais recente de alguns dos partidos operários actuais. Mas é principalmente como pensador, como descobridor das leis da evolução económica, principalmente das que presidem á génese do capital e ás transformações obrigadas dos modos de producção, que Marx ficará sendo um dos homens eminentes do nosso século.
A grande obra deste ilustre pensador «O Capital» ficou por acabar. A primeira parte dela, A producção das riquezas produziu uma verdadeira revolução, mesmo no ensino ex-cathedra da economia política em toda parte onde este ensino não está completamente mumificado. A segunda parte, A circulação das riquezas suppõe-se que ficou bastante adiantada, e a ponto de poder ser publicada por F. Engels, o amigo mais íntimo e o mais digno intérprete de Marx.
O 3.º volume Historia da teoria devia ser uma análise critica de toda a literatura económica. É para receiar que apenas existam fragmentos esboçados, porquanto Marx considerava esta parte como um trabalho ligeiro e fácil.
Tal é, a largos traços, a biografia do chefe científico do socialismo contemporâneo e do seu mais profundo pensador, perante o tumulo do qual nós curvamos reverentes a fronte onde marejam as lagrimas do sentimento.
Notas:
[N1] Saraus é uma gralha no texto, trata-se de David Friedrich Strauss, teólogo alemão pertencente à esquerda hegeliana e autor de Vida de Jesús (1835), O Cristo da fé e o Cristo da história (1865), Antiga e nova fé (1872) entre outras.
[N2] Französischen é erro, a declinação correcta exige Französische.
[N3] Le 18-brumaire de Louis Bonaparte.