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Cristhiano Duarte: Novas Tecnologias Disruptivas – Um Olhar Materialista Histórico

24 de outubro de 2024

Pesquisador da Chapman University, Cristhiano Duarte argumenta que por trás das big techs “existe um mundo de exploração, espoliação e devastação que na maioria das vezes é esquecido”.

Admirável Mundo Novo?

Parece existir um consenso: o futuro chegou! Vivemos em um admirável mundo novo! Das mais básicas necessidades humanas até as mais efêmeras: o que comemos, onde moramos, como prevenimos doenças, quais técnicas devem ser usadas no plantio de alimentos, como cuidamos daqueles que precisam de atenção especial, quais os meios de transporte mais eficientes, como nos antecipamos aos desastres ditos ‘naturais’, onde nos comunicamos, qual informação é compartilhada, como a informação é produzida e armazenada, o que deve ser vigiado por questões de segurança, qual o novo vídeo viral, qual o novo filme recomendado pela plataforma, que podcast devemos ouvir e, mais importante, onde devemos ouvi-lo. Parece não existir nenhuma faceta da interação humana que escape do impacto causado pelos últimos saltos tecnológicos. A cada nova tecnologia disruptiva, vemos as noções de tempo, espaço e memória sendo completamente reformuladas, novas relações sociais sendo forjadas e o fim do trabalho uma vez mais anunciado. Mas… será mesmo?

As trombetas do fim do trabalho

Consideremos, por exemplo, o texto da presente coluna. Nos dias de hoje, é virtualmente impossível saber ao certo se o que você está lendo não teria sido gerado automaticamente por um chatbot comercial de uma grande empresa de inteligência artificial californiana. O pedido de geração do texto (escreva uma: coluna de estreia, de caráter mensal, sobre IA e com um viés materialista histórico) pode muito bem ter partido de um autor sentado dentro de um Uber, a caminho de um aeroporto na Europa, de um celular montado na China — mas vendido a preço de maçã dourada no Brasil. Os dados do pedido são transferidos para a empresa via uma rede de 5G+ de alta velocidade e o texto é processado em um cluster de computadores de outra big tech a quilômetros de distância dali — impossível saber se no Texas, na Virgínia, em Washington ou na própria Califórnia. O algoritmo desenvolvido depois de anos de pesquisa termina o processamento, o texto da coluna deixa o galpão de computadores ultra refrigerados (computadores gastam energia e produzem uma montanha de calor) e segue seu caminho de volta até o celular que gerou o pedido.

O resultado final é passado por um corretor ortográfico e enviado por e-mail para o editor da revista — mais dados, outra big tech, outro cluster, mesma história. O chatbot, o aplicativo de transporte, a rede de alta velocidade, o algoritmo, o corretor ortográfico, todos eles funcionam como feitiço, mas por trás da feitiçaria existe um mundo de exploração, espoliação e devastação que na maioria das vezes é esquecido. A motorista do Uber já vai para sua décima hora trabalhada, a empresa que monta os celulares de luxo se viu obrigada a instalar uma rede de proteção embaixo das janelas pra evitar o suicídio de trabalhadores, os microprocessadores do cluster estadunidense contêm minérios arrancados do Chile ou do Brasil por uma mineradora do norte global… a lista é interminável. Mas, curiosamente, os arautos do fim do trabalho continuam a tocar suas trombetas.

Contra feitiços e fetiches: materialismo histórico

Feitiços e fetiches à parte, a história dos muitos avanços tecnológicos disruptivos também não é inteiramente nova e tende a ser cumulativa. Tomemos o exemplo da tão conhecida ‘revolução industrial’. Não é possível imaginar a construção de uma máquina térmica sem antes passarmos pela dominação da produção do calor e do fogo. Analogamente, não é possível imaginar o funcionamento de um trem a vapor sem passar primeiro pelas muitas técnicas de fundição, desenvolvidas ao longo de muitos anos, que permitiram moldar longas barras de ferro e transformá-las em trilhos. Isso sem falar da própria invenção da roda, afinal vagão algum flutua sem rodas sobre trilhos (será mesmo?). Podemos ainda dar um passo adiante e lembrar que parte significativa do algodão que alimentou a indústria têxtil do norte da Inglaterra foi produzido com o sangue e suor do trabalho escravo nas américas — e o que dizer do café que permitia longas jornadas de trabalho e do açúcar da cana que adoçava o fino chá ‘inglês’? Por trás de Manchester existe o Alabama, já diria Nancy Fraser.

Sem apelar para determinismos tecnológicos, avanços disruptivos tendem a ecoar o passado de outros avanços igualmente disruptivos. Mas o que causa a sensação de que vivenciamos o apogeu da tecnologia na sua faceta mais impactante e disruptiva se não o invólucro ideológico que atravessa a ciência e a técnica desde a modernidade? A verdade é que grande parte do mundo contemporâneo vive dentro de uma particular ordem social institucionalizada. Uma ordem na qual virtualmente todos os bens e serviços são produzidos para e obtidos no mercado. Um sistema em que tanto aqueles que produzem quanto aqueles que se apropriam das sobras do trabalho alheio são inteiramente dependentes do mercado para a sua sobrevivência e reprodução social. Esse imperativo do mercado, construído historicamente, não vem sem profundas marcas sociais. Vivemos um sistema onde a competição e a acumulação interminável são palavras de ordem. Avanços tecnológicos sistemáticos, dentro de uma sociedade capitalista, deveriam, portanto, ser vistos como representações concretas das leis de movimento e das relações de propriedade sociais daquela ordem social — e, em particular, da faceta competitiva e da guerra real que elas ensejam. Talvez a prova maior dessa exploração seja o aumento dos problemas psíquicos que crescem na mesma proporção que os avanços técnicos no mundo do trabalho. É bem provável que o que se convencionou chamar de disruptivo esteja mais ligado à organização da produção sobre o ordenamento capitalista do que aos produtos “tecnológicos” desse modo de produção.

Outras formas organizativas?

Mas o que dizer sobre sociedades organizadas sobre outras relações de propriedade sociais e, portanto, com outras leis de movimento? Profundas mudanças têm caracterizado, na última década, as economias dos países que se orientam pelo modelo socialista. Como mostram autores como Elias Jabbour, nesse processo, a experiência chinesa desempenha papel protagonista, e chega a inspirar reformas realizadas em outros países. Evidentemente, existe uma relação entre o papel do sistema nacional de inovação tecnológica que se fortaleceu nos últimos anos e o surgimento de novas formas de planejamento econômico no país.

Abre-se, dessa forma, um amplo leque de problemas sobre as relações entre desenvolvimento tecnológico e as novas formas de organização societária. Um conceito estendido de “novas tecnologias” nos força a refletir não só sobre o caso chinês em concreto, mas sobre novas formas de governança, novas formas de projetamento, novas formas de produção e, consequentemente, novas formas de organização social — formas e fórmulas que devem superar o espectro maldito do capitalismo.

Qualquer reflexão séria sobre novas tecnologias, disruptivas ou não, deve encarar de frente duras questões de ordem teórica e prática: (a) impacto das tecnologias disruptivas sobre as relações de produção, sobre o regime de acumulação e regulação do capital e sobre o valor-trabalho; (b) relações entre tecnologia e mercado de trabalho: novas formas de exploração no “capitalismo de plataforma” e o algoritmo como novo relógio de ponto; (c) tecnologia para quem? Cidades inteligentes e papel da tecnologia na prevenção e monitoramento de desastres naturais; (d) papel do domínio tecnológico na relação centro-periferia e na transição para um mundo multipolar; (e) hegemonia e tecnologias disruptivas: algoritmos, redes sociais e a construção de narrativas num mundo conectado; (f) novas formas de governança e socialismo digital: a tecnologia na estruturação de ordens pós-capitalistas; (g) modelos de financiamento estatal: potencialidades, limites, e como as sociedades do projetamento obtiveram sucesso tecnológico em meio ao universo capitalista e eventuais limites dessa expansão; (h) bases epistemológicas e fronteiras teóricas: conceitos filosóficos e sociológicos que podem apoiar e contribuir para a renovação da noção de tecnologia — não somente como expressão material da competição capitalista.

Conclusão

Decifrar essas e outras questões, numa roupagem materialista histórica, será a espinha dorsal da nossa coluna. Indo do real ao abstrato e de volta ao real, todo mês traremos sempre um debate atualizado e conectado ao que acontece no Brasil e no mundo. 

Nossa porta de entrada será sempre o mundo tecnológico, mas é óbvio que questões econômicas, políticas, sociais e culturais são estruturantes e estão profundamente imbricadas a esse admirável novo mundo. Nesse sentido, caros leitores e leitoras, esperem também ver por aqui questões de raça, gênero e classe. Aliás, num futuro próximo, espero abordar a luta pelo feriado de 20 de Novembro problematizando a questão do uso de recursos tecnológicos como ‘defesas técnicas’.

Como colunas não se escrevem sozinhas, então para esse mês deixo aqui o meu agradecimento aos camaradas da Fundação Maurício Grabois e em especial aos professores  Olival Freire Júnior e Cristiano Capovilla.

Cristhiano Duarte é pesquisador da Chapman University.

Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial dFMG