Ainda estou aqui, filme brasileiro no Oscar, é um chamado sensível por Memória e Verdade
O filme retrata a história de Eunice Paiva após o assassinato de seu marido, Rubens Paiva, pela ditadura militar.
Ela ergueu o atestado de óbito para a imprensa, como um troféu.
Foi naquele momento que descobri: ali estava a verdadeira heroína da família;
sobre ela que nós, escritores, deveríamos escrever.
(Marcelo Rubens Paiva. Ainda estou aqui. 2015).
Walter Salles e Fernanda Montenegro mais uma vez representarão o Brasil no Oscar. Em 1999, os dois estiveram no grande prêmio internacional de cinema com o filme Central do Brasil. Na ocasião, Fernanda disputou o prêmio de melhor atriz e Central o de melhor filme estrangeiro. Agora, 26 anos depois, a dupla pode estar novamente no Oscar em 2025, dessa vez com Ainda estou aqui. O filme será o representante brasileiro na disputa pelo prêmio de Melhor Filme Internacional. A diferença é que dessa vez quem pode disputar a vaga de melhor atriz é a filha de Fernanda Montenegro, a sensacional Fernanda Torres.
Ainda estou aqui conta a história de Eunice Paiva (Fernanda Montenegro e Fernanda Torres), esposa do engenheiro Rubens Paiva (Selton Mello), que foi assassinado pela ditadura militar em 1971. O filme é baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, seu filho, que tinha apenas 11 anos quando tudo aconteceu.
Deputado federal pelo PTB, Rubens Paiva foi o primeiro parlamentar cassado pela ditadura em 1964. O filme, no entanto, tem início em 1971, quando Rubens e sua família moravam no Rio de Janeiro, em uma casa na Praia do Leblon. Naquele momento, Rubens estava afastado da política institucional, mas ainda auxiliava militantes contra a ditadura distribuindo cartas aos familiares.
Leia mais: Grande Sertão traz o realismo fantástico da literatura para o cinema brasileiro
O filme parte do momento em que homens da Aeronáutica invadem a casa da família para levar Rubens para um depoimento. Horas mais tarde, levam também Eunice e sua filha. A partir de então, Walter Salles descreve com muita sensibilidade o drama daquela família ao longo dos anos.
Salles se permite alguma licença poética para descrever aquela conjuntura no Rio de Janeiro. Por exemplo, quando apresenta um encontro de Paiva com Fernando Gasparian e Dalva Gasparian na Livraria Argumento, na Rua Dias Ferreira, no Leblon. Como sabemos, Dalva e Fernando criaram a Argumento só em 1979, portanto Paiva nunca esteva lá. Mas isso não é um grande problema, pois ajuda a recordar o papel que a livraria cumpriu na luta contra a ditadura como ponto de venda de livros de ciências sociais. Ademais, Dalva e Fernando eram, de fato, amigos de Rubens. Diga-se de passagem, a morte dele, em 1971, foi um dos gatilhos para que Fernando Gasparian criasse no ano seguinte o semanário Opinião, um dos principais veículos contra a ditadura entre 1972 e 1977. Curiosamente, Dalva Gasparian é interpretada por Maeve Jinkings, sobrinha da editora da Boitempo Ivana Jinkings. Faz sentido.
Após a morte de Rubens, Eunice Paiva mudou com sua família para São Paulo e se formou em direito. A partir de então, tornou-se uma das maiores defensoras dos direitos dos povos indígenas no Brasil, ao lado da antropóloga Manuela Carneiro da Cunha. Talvez não seja coincidência que Gabriela Carneiro da Cunha interprete uma das filhas do casal.
Nesses anos, a luta de Eunice também foi por memória e verdade. Isso é bem traduzido no filme quando ela consegue, em 1996, que o Estado brasileiro emitisse oficialmente o atestado de óbito de Rubens Paiva. Eunice morreu em 13 de dezembro de 2018, aos 86 anos, tendo vivido os últimos 14 anos de sua vida com Alzheimer. Curiosamente, 13 de dezembro é também o dia em que a ditadura publicou o Ato Institucional n. 5 (AI-5), principal mecanismo de recrudescimento do regime.
Num momento em que o próprio governo federal, dirigido por um presidente de centro-esquerda, orienta que não haja eventos sobre os 60 anos do golpe militar, faz sentido que a sociedade civil escancare a porta da memória e da verdade por conta própria e relembre aqueles anos duros para que nunca mais aconteça.
Ainda estou aqui narra um drama que, em sua aparência, pode até parecer particular de apenas uma família, mas que em sua essência é universal. De certo modo, Walter Salles já havia feito algo semelhante ao humanizar Ernesto Che Guevara em Diários de motocicleta (2004). O cinema brasileiro sempre apresentou bons filmes sobre a ditadura militar no país como Lamarca (1994), O que é isso companheiro? (1997), Zuzu Angel (2006), Batismo de Sangue (2007) e Marighella (2019), entre tantos outros. Mas nenhum teve tanta sensibilidade artística quanto Ainda estou aqui.
Theófilo Rodrigues é professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UCAM.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG