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Redução da Jornada, Transformação do Mercado de trabalho e Sustentabilidade no Brasil

21 de novembro de 2024

Assessor especial do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), Euzébio Jorge explica como o Brasil “pode e deve utilizar a redução da jornada de trabalho como alicerce para transformar sua estrutura econômica e social, respondendo às demandas globais por justiça social, inclusão e preservação ambiental”.

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da deputada Erika Hilton, que busca reduzir a jornada de trabalho de 44 para 36 horas semanais e eliminar a escala 6×1, resgata uma histórica luta dos trabalhadores brasileiros por melhores condições de trabalho. A redução da jornada é um tema central nas discussões sobre produtividade, geração de empregos e melhoria na qualidade de vida, especialmente em um cenário econômico onde avanços tecnológicos e mudanças organizacionais ocorrem em meio a transformações geopolíticas. Estudos mostram que jornadas mais curtas aumentam a produtividade e ampliam a capacidade de geração de empregos, dinamizando o mercado interno e promovendo maior estabilidade econômica. No entanto, para que essa proposta tenha êxito, é essencial que o debate considere as complexas dimensões econômicas, sociais, setoriais e ambientais envolvidas.

No ensaio Possibilidades Econômicas para os Nossos Netos (1930), John Maynard Keynes projetava que, com o aumento da produtividade, seria possível reduzir a jornada de trabalho para apenas 15 horas semanais. Baseando-se em avanços técnicos que aumentaram a eficiência em 40% na indústria americana entre 1919 e 1925, Keynes acreditava que o progresso material libertaria tempo para que as pessoas buscassem realização em atividades sociais e culturais. Contudo, sua previsão não se concretizou. O capitalismo continuou pautado pela concentração de renda e pelo rentismo, sem promover uma distribuição equitativa dos ganhos de produtividade. A crença otimista de Keynes de que o progresso material levaria a uma sociedade mais inclusiva contrasta com a realidade do mercados de trabalho, profundamente marcados por desigualdades de classe e condições materiais que levam os trabalhadores a realizarem jornadas de trabalho cada dia mais longas e extenuantes.

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Michael Kalecki compartilhou da visão de Keynes sobre a possibilidade de intervenções governamentais para garantir pleno emprego, defendendo gastos públicos em infraestrutura, saúde e subsídios ao consumo. Contudo, Kalecki foi mais crítico ao identificar que a resistência dos empresários a essas políticas estava ligada ao desejo de manter o controle sobre o “estado de confiança”, à defesa de uma moralidade meritocrática e ao medo de que o pleno emprego fortalecesse o poder de barganha dos trabalhadores, ameaçando a “disciplina” nas fábricas. Para Kalecki, a definição da jornada de trabalho não reside apenas em avanços técnicos ou nas limitações econômicas, mas nas contradições de classe que estruturam a sociedade capitalista.

Em O Capital, Karl Marx, 69 anos antes da publicação da Teoria Geral de Keynes, já identificava que o capitalismo desregulado não promove a elevação da produtividade com vistas ao desenvolvimento social. Sua análise sobre a maquinaria e o processo de ampliação da produtividade na Revolução Industrial é uma das mais reveladoras desse aspecto.

Marx detalhou como as máquinas foram introduzidas no processo produtivo, dividindo-as em três componentes principais: força motriz, transmissão e máquina-ferramenta. Ele observou que a automatização inicial ocorreu nas máquinas-ferramentas, com o objetivo de rotinizar o trabalho, simplificar as tarefas e reduzir a dependência da habilidade dos trabalhadores. Ao tornar o trabalho mais mecânico e padronizado, os industriais puderam desqualificar parte significativa da força de trabalho, o que não apenas barateou os custos, mas também enfraqueceu o poder de barganha dos trabalhadores qualificados.

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No primeiro momento desse processo, os trabalhadores assumiram atividades repetitivas e rotineiras, funções que exigiam menos habilidades técnicas. A força motriz, que ainda dependia da intervenção humana, só foi automatizada posteriormente, e isso ocorreu não por razões de progresso social ou melhoria das condições laborais, mas como uma estratégia dos industriais para reduzir ainda mais o emprego de trabalhadores no processo produtivo. Essa automatização também permitiu a incorporação de crianças e mulheres na produção fabril, que eram vistos como uma força de trabalho mais barata e mais facilmente explorável, agravando as condições de trabalho e de vida da classe trabalhadora.

Diferentemente de Keynes, que via na elevação da produtividade uma oportunidade para reduzir a jornada de trabalho e melhorar a qualidade de vida, Marx apontava que, no capitalismo desregulado, os ganhos de produtividade dificilmente seriam distribuídos de forma equitativa. Pelo contrário, a tecnologia seria usada como ferramenta de dominação, desqualificação do trabalho e intensificação da exploração.

Assim, a análise de Marx sobre a maquinaria na Revolução Industrial destaca uma contradição central do capitalismo: embora o progresso técnico possa, em teoria, liberar os seres humanos de tarefas árduas e repetitivas, na prática, ele foi utilizado para aprofundar desigualdades e aumentar a exploração da força de trabalho. Isso evidencia a necessidade de regulação e de transformação estrutural para que os avanços produtivos realmente contribuam para o desenvolvimento social, algo que Marx e Keynes, cada um em seu tempo e perspectiva, reconheceram como fundamental.

No Brasil, a realidade é ainda mais complexa devido às características estruturais e históricas de seu mercado de trabalho. Diferentemente dos países centrais analisados por Keynes e Kalecki, onde há maior capacidade de absorção da força de trabalho devido a níveis elevados de desenvolvimento econômico e institucional, o Brasil, como uma economia periférica e dependente, enfrenta um excedente estrutural de força de trabalho que compromete sua capacidade de gerar empregos de qualidade. Esse excedente está profundamente enraizado em um legado colonial e escravista que moldou o mercado de trabalho com desigualdades profundas, precarização e exclusão social. Tal herança se reflete em altos índices de informalidade, baixos salários, rotatividade elevada e subutilização da força de trabalho. Até os anos 2000, mais da metade dos trabalhadores brasileiros estavam na informalidade, e, embora tenha havido avanços nos últimos anos, essa taxa ainda atinge 40% da força de trabalho, com impactos negativos na segurança social, no poder de compra e na estabilidade das famílias trabalhadoras.

Os dados recentes ilustram a gravidade do problema: a taxa de desocupação está em 6,9%, mas a subutilização da força de trabalho, que inclui subocupados por insuficiência de horas e aqueles em desalento, alcança 16,4%. Essa discrepância mostra que os números oficiais de desemprego não capturam completamente o quadro de precariedade e falta de oportunidades. Jovens, especialmente os de 14 a 24 anos, são os mais impactados: 2,7 milhões estão desempregados e 6,4 milhões trabalham em ocupações informais, frequentemente marcadas por baixa remuneração e condições de trabalho insalubres.

Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua trimestral

Os trabalhadores autônomos no Brasil possuem jornadas de trabalho semanais de 6 a 7 horas superiores à média geral dos trabalhadores, refletindo uma carga laboral significativamente maior em comparação a outras categorias. Esses trabalhadores, em condições mais precárias e vulneráveis, convivem com maior rotatividade e períodos prolongados de desocupação, mas, ainda assim, frequentemente realizam jornadas elevadas. Essa dinâmica é impulsionada pela necessidade de compor sua renda por meio de múltiplas atividades laborais, geralmente com características informais e desprovidas de garantias legais. Essa sobrecarga reflete a busca por atender às necessidades básicas em um contexto de insegurança econômica e baixa proteção social. Trabalhadores autônomos, ao apresentarem médias semanais habitualmente trabalhadas superiores à de outras categorias, destacam a desigualdade no esforço laboral necessário para garantir subsistência. Essa situação reforça desigualdades estruturais e aponta para a urgência de políticas que promovam formalização, melhores condições de trabalho e maior estabilidade no mercado de trabalho brasileiro.

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A redução da jornada de trabalho poderia desempenhar um papel transformador, ao redistribuir as horas trabalhadas, seria possível ampliar o número de postos formais, permitindo que mais trabalhadores fossem absorvidos por empregos de maior qualidade. Isso não apenas melhoraria as condições de trabalho, mas também contribuiria para uma maior inclusão social e econômica, fortalecendo o mercado interno. Trabalhadores alocados em empregos mais produtivos e melhor remunerados teriam maior poder de consumo, impulsionando a demanda por bens e serviços e promovendo um ciclo virtuoso de crescimento econômico. Além disso, a redução da jornada incentivaria o desenvolvimento de setores estratégicos, como a economia criativa e a tecnologia, que demandam trabalhadores qualificados e podem gerar empregos com maior valor agregado.

A sustentabilidade ambiental é mais uma variável afetada pela redução da jornada de trabalho, uma vez que pode impactar positivamente o meio ambiente ao diminuir o consumo de recursos naturais, reduzir emissões de carbono e promover estilos de vida mais sustentáveis. Com menos dias ou horas de trabalho, há uma menor utilização de transporte, o que reduz a queima de combustíveis fósseis e contribui para a mitigação das mudanças climáticas. Além disso, a diminuição do tempo dedicado ao trabalho pode permitir que as pessoas priorizem atividades de lazer que envolvam menor impacto ambiental, como práticas culturais, esportivas e o consumo de bens intangíveis.

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Outra consequência relevante é a possibilidade de repensar o consumo. Com mais tempo livre, as pessoas podem planejar melhor suas compras e valorizar produtos e serviços locais e sustentáveis, reduzindo a pressão sobre os recursos naturais. Esse padrão de comportamento contribui para uma transição para um modelo de desenvolvimento mais equilibrado. Também há benefícios para a economia criativa, que se fortalece à medida que o tempo livre é direcionado para o enriquecimento cultural e artístico, promovendo um dinamismo econômico menos dependente de atividades intensivas em carbono e recursos.

No longo prazo, a redução da jornada pode também fomentar a criatividade e a inovação social, uma vez que mais tempo livre permite maior reflexão e experimentação. Esse ambiente é essencial para criar soluções que atendam aos desafios ambientais globais, como crises climáticas e perda de biodiversidade. Portanto, a diminuição do tempo de trabalho não apenas melhora a qualidade de vida das pessoas, mas também promove uma relação mais harmoniosa com o meio ambiente, contribuindo para um modelo de desenvolvimento sustentável e resiliente.

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Nos países centrais, a redução da jornada de trabalho foi viabilizada por avanços técnicos e negociações sindicais que permitiram redistribuir os ganhos de produtividade de maneira mais equitativa. Em contraste, nos países periféricos, como o Brasil, persistem barreiras estruturais como a informalidade e o excedente de força de trabalho, dificultando a promoção de condições laborais mais justas. No entanto, o Brasil possui um enorme potencial para superar o subdesenvolvimento e utilizar a redução da jornada como um pilar estratégico para o desenvolvimento sustentável. Ao integrar mais trabalhadores ao mercado formal, é possível ampliar a equidade social e econômica, ao mesmo tempo em que se cria um ambiente propício para a inovação e a criatividade, fundamentais para enfrentar os desafios contemporâneos.

A redução da jornada também oferece uma oportunidade única para o Brasil liderar uma transição ecológica, promovendo um modelo de desenvolvimento que harmonize crescimento econômico com sustentabilidade ambiental. Com menos horas de trabalho, há espaço para repensar padrões de consumo e produção, reduzindo a pressão sobre os recursos naturais e diminuindo emissões de carbono. Essa mudança pode fomentar práticas culturais e criativas que não apenas enriquecem a vida social, mas também contribuem para soluções inovadoras em tecnologia e sustentabilidade.

A janela de oportunidade é agora. O Brasil pode e deve utilizar a redução da jornada de trabalho como alicerce para transformar sua estrutura econômica e social, respondendo às demandas globais por justiça social, inclusão e preservação ambiental. Mais do que uma demanda histórica, essa medida é essencial para que o país construa um futuro resiliente e sustentável, marcando sua transição de uma economia dependente para uma nação protagonista no enfrentamento dos desafios do século XXI.

Euzébio Jorge Silveira de Sousa é Coordenador do GP 4: Trabalhadores e a Era Digital – Assessor especial do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), autor do livro “Juventude, Trabalho e o Subdesenvolvimento” e doutor em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da Unicamp. Atualmente, atua como professor de Economia na FESPSP e na Strong Business School, e é membro da Cátedra Celso Furtado. Ele também possui pós-doutorado em Economia Criativa e da Cultura pela UFRGS.

Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial dFMG.