Internacional: a ONU e a “crise do multilateralismo”
Diretora do Cebrapaz, Moara Crivelente argumenta que o déficit de confiança global nas instituições é um problema estrutural do sistema internacional capitalista. Foto: Ricardo Stuckert/PR
A “crise do multilateralismo” e a legitimidade internacional sob os escombros
O debate sobre a “crise do multilateralismo” internacional arrasta-se há décadas e muitos dos sintomas têm origens entre as características fundamentais das instituições e da “ordem internacional” capitalista. O persistente fracasso dessas instituições em deter a atual fase do genocídio colonial na Palestina, numa Catástrofe contínua e secular, é um epítome macabro da opressão que as organizações e o direito internacional não têm podido reverter mundo afora, especialmente porque não foram criados para isto. “Mediar” e “apaziguar” são as suas missões, muito mais do que “transformar” ou “revolucionar”. Como instrumentos, cabe aos povos continuar disputando os seus usos, estrategicamente.
A Liga das Nações (1920 – 1946) foi a primeira organização criada para “promover a cooperação internacional e alcançar a paz e a segurança internacionais”, segundo o Pacto que a instituiu, incorporado ao Tratado de Versalhes de 1919. Findava assim a Primeira Guerra Mundial, uma guerra imperialista, como bem apontava Lênin, em vagas promessas de uma “paz” liberal, também imperialista. Um dos vários exemplos foi o Sistema de Mandatos da Liga, um dos quais, atribuído à Grã-Bretanha, incumbiu a potência imperialista de então de realizar na Palestina a missão colonizadora sionista, num dos territórios levantinos distribuídos entre si e a outra potência de então, a França.
A Liga ruiu com a Segunda Guerra Mundial, dando passo à Organização das Nações Unidas (ONU), de natureza similar. Na fundadora Conferência das Nações Unidas de 1945, os representantes de 50 países reuniram-se em comitês distintos e em plenárias presididas pelos representantes dos seus patrocinadores, Anthony Eden, da Grã-Bretanha, Edward Stettinius, dos Estados Unidos, T. V. Soong, da China, e Vyacheslav Molotov, da União Soviética, negociando a Carta da ONU artigo a artigo, com demandas cruciais por “igualdade”, “paz”, “soberania”, “autodeterminação” e “desenvolvimento”, logo dominadas pelo estilo liberal abstrato e mistificador desses conceitos.
A partir de então, enquanto os líderes do chamado “mundo livre”, na Europa Ocidental, arrasado pela matança e a destruição e crescentemente endividado, submetiam-se aos ditames da nova potência ocidental no iminente mundo bipolar, os Estados Unidos anunciavam os termos da nova ordem lançando bombas nucleares sobre Hiroshima e Nagasaki, no período entre a adoção e a entrada em vigor da Carta da ONU. Como disse o primeiro presidente da Indonésia liberada do jugo holandês, Sukarno, na abertura da Conferência de Bandung entre povos asiáticos e africanos em 1955, esta seria uma ordem de terror, à qual os povos resistiam, para instituir uma ordem de esperança. Assim, a contradição interna à ONU se intensificaria, com a adesão de dezenas de novos membros, os países independentes nascidos das lutas por libertação nacional.
Portanto, em ao menos uma década da sua criação, a conformação e a própria natureza das instituições internacionais eram questionadas por povos asiáticos, africanos, e logo, latino-americanos, que envidaram o empenho terceiro-mundista plasmado na Conferência Tricontinental na Havana revolucionária, em 1966. Em mensagem à Conferência, Che Guevara instigava:
“Que papel nós, os povos explorados do mundo, devemos desempenhar? Os povos dos três continentes concentram sua atenção no Vietnã e aprendem a sua lição. Já que os imperialistas chantageiam a humanidade ameaçando-a com a guerra, a reação sábia é não temer a guerra. A tática geral do povo deve ser lançar um ataque constante e firme em todas as frentes onde o confronto está ocorrendo. Naqueles lugares onde essa escassa paz que temos foi violada, qual é nosso dever? Libertar-nos a qualquer preço”.
Os tempos são outros, mas os imperialistas continuam chantageando a humanidade, ameaçando-a com a guerra – o genocídio, as ameaças nucleares, as agressões e intervenções e a militarização do planeta – assim como com a exploração contínua e a catástrofe ambiental. As organizações multilaterais criadas, supostamente, para deter tais cursos, continuam incapazes de cumprir o seu papel no ponto mais básico e modesto, o de proteger a vida.
Passado quase um ano desde a ordem por medidas preventivas do genocídio emitida pelo Tribunal Internacional de Justiça, órgão originário da ONU, Israel segue empenhado em dizimar o povo palestino ou torná-lo uma minoria enfraquecida. Sob os escombros de uma Gaza arrasada e em meio à crescente colonização do restante da Palestina, estão também as promessas de um multilateralismo que ordenaria um mundo de igualdade e de direitos. Diante desses fracassos, o secretário-geral da ONU António Guterres é mais um de sucessivos secretários-gerais a propor reformas administrativas e conceituais, mas qualquer empenho transformador parece distante no horizonte.
O “déficit de confiança global” nas instituições, que Guterres tem ressaltado há anos (e voltou a fazê-lo na reunião do G20 em novembro, no Rio de Janeiro) é mais uma constatação do problema estrutural do sistema internacional capitalista do que o diagnóstico de uma única organização. Mesmo assim, é preciso continuar a disputá-la, não só reformando como transformando o multilateralismo em si.
Moara Assis Crivelente é Diretora executiva do CEBRAPAZ – Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz, doutora em Política Internacional e Resolução dos Conflitos e pesquisadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.