Ciência: as relações entre a ciência e a sociedade
Coordenador do Grupo de Pesquisa da FMG sobre “A luta contra a extrema-direita e o Neofascismo”, o filósofo Cristiano Capovilla argumenta em favor de uma forte conexão entre ciência e sociedade. Foto: Agência Brasil.
Por novas legislações epistêmicas
A ciência é uma atividade que ocupa praticamente todas as esferas da vida social, gozando de grande prestígio em parte significativa das sociedades contemporâneas. A ciência tal qual conhecemos em nosso tempo é um fenômeno relativamente novo. Tomando por parâmetro que o corpus teórico da antiga filosofia natural da Época Moderna torna-se ciência em paralelo com os novos arranjos institucionais – como o advento das academias científicas – e a nova concepção de universidade – segundo a qual as escolas superiores não deveriam apenas ensinar, como também pesquisar –, então estamos diante de ocorrência histórica e social datada na transição do século XVIII para o século XIX. Desde então, a ciência passa a desenvolver-se de modo normatizado, associada às instituições dos Estados nacionais, seus mercados e interesses estratégicos.
O pouco tempo de configuração institucional da ciência pode explicar, em parte, os vários julgamentos e definições parciais acerca da definição, escopo e limites do que realmente seja a atividade científica. Desde o final do século XIX e durante todo século XX, cristalizou-se visões normativas e dualistas da ciência e dos cientistas, em que, por um lado, são entendidos como possuidores de conhecimento especializado e confiável, capaz de solucionar problemas, principalmente tecnológicos, mas, por outro, também são percebidos com desconfiança, pois a fria ciência está apartada dos valores comuns da sociedade e o seus produtos tecnológicos passaram a ser responsabilizados pelas armas de destruição em massa, os agrotóxicos e o aquecimento global. Além disso, as crises econômicas e sociais também aparecem aos olhos dos leigos como uma prova da incapacidade objetiva da ciência em criar um mundo melhor, especialmente quando contrastada com as promessas otimistas da ideologia iluminista. De certo modo, tanto o negacionismo, o relativismo e o agnosticismo quanto o apego contemporâneo à volta ao mundo natural, orgânico e sem tecnologia, é em parte resultado desses pontos de vista.
Grande parte dessa visão distorcida da ciência dá-se pelo fato de que os processos que definem a natureza desse saber e sua prática, isto é, os critérios e métodos que crivam a ciência da não ciência, serem demasiados esotéricos, afastados do expediente comum da vida comunitária, incompreendidos pela maioria e, portanto, separados da vida pública. A própria ideia de que seria possível estabelecer uma legislação epistêmica universal capaz de definir de uma vez por todas os critérios de demarcação científica, determinando o que é ou não ciência, contribui para a injunção desses códigos perante as finalidades políticas e culturais estabelecidas pelos povos periféricos. Trata-se da implantação compulsória do estatuto da cientificidade.
Isso ocorre porque essas regulamentações foram prescritas e impostas na esteira da grande expansão e consolidação do mercado mundial, hegemonizado pelo liberalismo burguês, forjando em seus termos a simbiose teórica e política entre a neutralidade naturalista e a metodologia cientificista. Assim como o poder político legitima-se através de uma legislação jurídica que normaliza e escamoteia as relações entre as classes subalternas e dominantes, constrangendo a luta de classes ao escopo das instituições vigentes, também o domínio metodológico e cientificista dos saberes possui sua própria legislação epistemológica, que procura padronizar suas pretensões de universalidade e neutralidade reprimindo outros pressupostos que atuam sobre o conjunto das compreensões humanas.
Essas leis do conhecimento não são arbitrárias, mas fundamentam-se no sucesso técnico e preditivo das ciências naturais e formais e na pretensão de deslocamento mecânico dos métodos, ferramentas técnicas, aparatos práticos e linguagens oriundas dessas ciências particulares em direção aos conhecimentos humanos e sociais. Como aponta Losurdo (2006), toda expansão liberal-colonialista na transição dos séculos XIX-XX estribou-se nessa associação política, econômica e científica que opõe a civilização desenvolvida e racional aos bárbaros irracionais.
A realidade força entrada na metodologia científica
Entretanto, ao longo do século XX, o progressivo caminho dos estudos científicos evoluíram em seus termos, compreendendo relativo acúmulo desde o normativismo lógico e empírico do Círculo de Viena, passando pela falseabilidade de Popper, pelos Programas de Pesquisa de Lakatos e pela “revolução científica” de Kuhn, até às formulações radicais do “anarquismo epistemológico” de Feyerabend. Dos debates realizados começam a despontar novas interpretações e estudos acerca do fenômeno científico, desta vez incorporando ao tema os aspectos históricos e sociológicos. Junto a eles expôs-se o enfoque político da ciência contemporânea, realçando vínculos e nexos entre os cientistas, suas comunidades de conhecimento e o conjunto da sociedade. Não havia mais como distinguir a priori o fazer da ciência e o papel que ela jogava no contexto político, social e econômico. As Guerras Mundiais e Fria, a ameaça atômica e a polarização do mundo entre capitalismo e socialismo não deixava escapar nem mesmo a ciência, enfraquecendo o mito da “neutralidade científica”.
Os critérios de demarcação científica, puramente epistemológicos e a priori, começam a perder importância ao longo do século XX, principalmente por causarem uma imagem da ciência bastante restrita e neutra. Nenhum dos critérios de demarcação comumente oferecidos parecia satisfazer o que seria a ciência propriamente dita com sua interface com as questões políticas e sociais. No transcorrer da década de 1970 para a de 1980 apareceram as primeiras definições do que viriam a ser os Sciences Studies[1]. Passou-se a compreender que a atividade científica requer uma associação de três perspectivas nas suas investigações: a filosófica, a histórica e a sociológica. Além disso, sucedeu dar maior ênfase na prática científica, em seus aspectos de atividade local, nacional, e com estudos empíricos particulares, além de destacar as relações entre os pares intra e extra comunidades científicas. Na perspectiva dos Science Studies as ciências são práticas locais, condicionadas política, social, material e culturalmente, mas que também são condicionantes do contexto social e político em que estão inseridas.
É nesse contexto que surgem as contribuições do filósofo da ciência John Ziman[2]. Embora muito já tenha sido feito nesse campo, a verdade é que os pressupostos sob os quais estribam-se os critérios de demarcação científica continuam presos a uma legislação epistemológica transcendental. Para Ziman, a concepção segundo a qual a verdade da ciência só ocorre quando alcança o conhecimento através de inferências lógicas baseadas em observações empíricas ou que a evidência para ser científica tem de ser necessariamente demonstrável em termos de observação laboratorial e empírica, são apenas definições-padrão mais aceitas e utilizadas pelas corporações do ofício científico e que passaram a ser interpretadas como “filosofia oficial adotada pela maioria dos cientistas em seus trabalhos práticos” [3].
Entretanto, o que parece ser uma interpretação adequada para a maioria dos cientistas, na verdade não condiz com a prática do fazer científico propriamente dito. O programa positivista e sua demarcação estritamente lógica, que afasta como falso qualquer desvio desses postulados, embora pareça totalmente crível, não consegue sustentar-se no dia a dia dos laboratórios, onde as descobertas raras vezes obedecem a um cânone pré-estabelecido de uma vez por todas. Para Ziman, “frequentemente vemos teorias complexas, e bastante boas, que se baseiam, na realidade, em observações muito falhas” e “Há muito mais fé e confiança na experiência pessoal e na autoridade intelectual do cientista do que na doutrina oficial” [4]. Para ele há uma diferença entre a perfeição do “esquema lógico-indutivo” e a realidade da experiência científica, sendo essa última a que prevalece nas determinações de uma ciência real.
O objetivo da Ciência não é apenas adquirir informação, nem enunciar postulados indiscutíveis; sua meta é alcançar um consenso de opinião racional que abranja o mais vasto campo possível. [5]
Ora, essa definição implica uma mudança de horizonte na interpretação científica. Ao invés de determinar o fazer científico através do “método científico”, inverte-se a prioridade e passamos a considerar do fazer coletivo da ciência o próprio método científico. Não podemos mais pensar em um cientista individual, abstrato e a-histórico que se relaciona diretamente com uma natureza, “e sim de um grupo de indivíduos que partilham entre si o trabalho mas fiscalizam permanente e zelosamente as contribuições de cada um”[6]. A ciência é uma realização corporativa, social.
O jovem cientista não estuda lógica formal mas aprende, por imitação e experiência, uma série de convenções que personificam sólidas relações sociais. Em linguagem sociológica, ele aprende a fazer o seu papel num sistema em que o conhecimento é adquirido, testado e finalmente transformado em propriedade pública. [7]
Não é a primeira vez que alguém define a ciência como uma atividade social. A diferença, e isso é fundamental, é que Ziman propõe analisar de um ponto de vista social a atividade científica propriamente dita, não separando a ciência como conhecimento teórico estabelecido e enquanto instituições sociais.
A demarcação científica perante uma nova ótica
Ziman propõe um argumento chave segundo o qual a atividade científica consolida-se na medida mesma em que luta insistentemente para que haja consenso em sua comunidade. Se o que distingue a ciência dos outros tipos de conhecimento é a busca incessante do consenso, então o método científico, independente dos seus predicados lógicos e epistemológicos, possui enorme força retórica. O termo “retórica” aparece aqui como uma novidade no campo dos estudos científicos e epistemológicos. Afinal, desde o advento do iluminismo do século XVIII que esse termo foi qualificado como “uma tentativa de se reforçar um mau argumento apelando-se para as emoções e não para o intelecto” [8]. Entretanto, o termo traz à tona o fato que se quer destacar, a saber: há um elemento político na comunidade científica e que em seus métodos e preceitos estão presente uma certa dose de dúvida em relação às descobertas científicas, sem que haja sugestão de que toda a questão seja uma fraude. Isto quer dizer que também a ciência trabalha com o verossímil, sem desfazer-se da verdade.
O processo em questão implica que o cientista tenha que transformar o resultado do seu experimento particular, de sua pesquisa, em algo público, que possa ser experimentado primeiramente por toda a comunidade científica e depois para o conjunto da sociedade. Por isso o experimento é uma peça de retórica: procura convencer um coletivo a aceitar uma nova ideia e construir um consenso. Essa compreensão está adequada à definição clássica da retórica, tal qual nos legou Aristóteles, que afirma que “a retórica parece ser capaz de descobrir os meios de persuasão relativos a um dado assunto” [9]. A relação do cientista com a comunidade científica não escapa dessa definição.
Uma teoria científica, além dos aspectos lógicos e matemáticos que a compõem e que fazem parte do seu conhecimento público, possui também a força do argumento que procura estabelecer contato com que é observável. Nesse choque entre a parte puramente lógica e matemática da teoria com o fenômeno aparecem as dificuldades e complexidades. O argumento procura justamente apresentar uma teoria o mais verossímil e razoável possível para uma comunidade de cientistas. As escolhas das teorias não são baseadas em dados empíricos, mas em referências teóricas e debates valorativos. Os argumentos possuem postulados e modelos que não podem ser deduzidos de nenhum outro lugar. Aqui reside a chave compreensiva da natureza retórica do experimento. Isso porque essa parte da teoria científica “é extra-lógica – mas não consequentemente irracional” [10]. Por isso que tentar achar um método estritamente lógico-formal, a priori, com validade universal, para estabelecer o verdadeiro conhecimento científico é uma quimera [11].
Então a argumentação científica é puramente política? Não exatamente. Ela também está inserida na sociedade e sofre as determinações histórico-sociais como qualquer outra atividade humana. A diferença está nas condições indispensáveis para a aquiescência da comunidade científica especializada, isto é, a exigência que o raciocínio forneça um quadro e uma sequência lógica que permita, com poucos elementos factíveis, conceituar fenômenos inteiros e, numa segunda aproximação, a aceitação de uma metafísica (ontologia) comum, isto é, uma noção da racionalidade e compreensibilidade básica do mundo, sem a qual nenhum universo de discurso seria minimamente ordenado. A ciência cria sua própria metafísica interna por consenso. Ziman não acha que a ciência mereça uma análise epistemológica à parte dentro do problema do conhecimento. Ela funciona com o conhecimento que temos disponível, independente da sua natureza intrínseca.
Conclusão
Embora o foco das atenções epistemológicas seja a prática da ciência propriamente dita, a visão acima exposta relaciona o cientista (indivíduo) que interage e legitima seu saber numa comunidade científica (construção de um consenso coletivo) que por sua vez está inserida numa determinada sociedade (conjunto da realidade histórica). Desse modo, o fenômeno da ciência passa a conectar-se com a ótica dos vários saberes humanos, aproximando politicamente a ciência e a sociedade, produzindo um quadro mais realista e destacando vínculos e nexos que antes não eram levados em consideração. Talvez seja a grande novidade dos Sciences Studies tanto para leigos quanto especialistas.
Ao valorizar as relações entre ciência e sociedade, Ziman também acaba por equilibrar, por assim dizer, o status de cientificidade, na medida em que admite um pensar verdadeiro mesmo que diferente da ciência. Em certo sentido, ao estabelecer forte conexão entre ciência e sociedade, ele aproxima as ciências naturais, paradigma da cientificidade, das chamadas ciências humanas e sociais, abrindo espaço para a confecção de novas legislações epistêmicas mais adequadas aos problemas e realidades nacionais. Tudo isso deve estar no escopo do interesse de um Novo Projeto de Desenvolvimento Nacional.
Bibliografia
ARISTÓTELES. Retórica. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes. 2012.
CHALMERS, Alan. A fabricação da ciência. São Paulo: Unesp. 1995.
LOSURDO, Domenico. Liberalismo: entre a civilização e a barbárie. São Paulo: Anita Garibaldi, 2006.
MORGENBESSER, Sidney. Filosofia da ciência. São Paulo: Cultrix. 1971.
SILVA, R. de Oliveira. Origens do science studies: política e interdisciplinaridade na constituição do movimento. IN: Revista Conhecimento & Diversidade, nº 3, Jan./Jun. 2010, p. 10-18.
ZIMAN, John. Conhecimento público. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP. 1979.
___________. A força do conhecimento: a dimensão científica da sociedade. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP. 1981.
[1] SILVA, R. de Oliveira. Origens do science studies: política e interdisciplinaridade na constituição do movimento. IN: Revista Conhecimento & Diversidade, nº 3, Jan./Jun. 2010.
[2] John Michael Ziman (1925-2005) foi físico, professor e autor neozelandês nascido na Grã-Bretanha. Trabalhava na área de física da matéria condensada. Obteve seu PhD pelo Balliol College, Oxford e fez pesquisas na Universidade de Cambridge. Depois seus interesses voltaram para a filosofia da ciência. Escreveu sobre a dimensão social da ciência e a responsabilidade social dos cientistas em numerosos ensaios e livros.
[3] ZIMAN, J. Conhecimento público. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP. 1979. p. 20
[4] Ibidem, p. 21
[5] Ibidem, p. 24
[6] Ibidem, p. 25
[7] Ibidem, p. 25
[8] Ibidem, p. 47
[9] ARISTÓTELES. Retórica. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012, p. XIX
[10] Ibidem, p. 52
[11] Para Ziman, “é lamentável que tantos estudantes de História e Filosofia da Ciência considerem a Física como o seu ideal e achem que todos os argumentos científicos dignos de fé devem ser do tipo físico-matemático”. Ibidem, p. 57
******************
Cristiano Capovilla. Filósofo e professor da UFMA. Coordenador do GP 7: A luta contra a extrema-direita e o Neofascismo
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.