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Clube de Leitura: Resenha do livro “Cachorros” de Marcelo Godoy

6 de janeiro de 2025

Carlos Azevedo apresenta o novo livro de Marcelo Godoy pela editora Alameda. “Cachorros” conta a história dos espiões infiltrados no PCB no período da ditadura militar.

CACHORROS: A história do maior espião dos serviços secretos militares e a repressão aos comunistas até a Nova República. Estes são o título e o subtítulo do livro mais recente de Marcelo Godoy. Esse repórter tem a marca da boa estirpe da profissão: a obsessão pela informação, pela pesquisa incansável, a checagem das fontes até o extremo das possibilidades. Sua primeira pesquisa consumiu dez anos, de 2004 a 2014 e resultou no premiado livro A Casa da Vovó – uma biografia do DOI-CODI 1969-1991. Ele trabalhou mais dez anos para entregar Cachorros. O autor diz que aproveitou muita informação obtida na primeira pesquisa. Portanto, foram 20 anos de trabalho para produzir o novo livro, abrangente, caudaloso, às vezes repetitivo, mas nunca monótono, de 550 páginas.

Recomenda-se atenção para essa leitura. Primeiro, porque apesar de na capa o destaque ser dado para o militante que se tornou espião do seu partido, o PCB (Partido Comunista Brasileiro), na verdade ele é um dos personagens numa trama muito mais ampla e complexa. Uma trama que envolve a trajetória histórica desse partido desde sua origem no tenentismo dos anos 1920 até sua crise e descaracterização na década de 1990.

Mas não só isso. É ao mesmo tempo a narrativa de como os serviços secretos do Exército (CIE), da Aeronáutica (CISA) e da Marinha (CENIMAR), se aplicaram em uma sanha fanática para acompanhar, estudar, reprimir, torturar e matar os quadros e dirigentes daquele partido. Essa atenção privilegiada, segundo o autor, se devia a que os militares consideravam o PCB como a maior ameaça ao regime em vigor, seja por sua doutrina, tática e estratégia, seja por sua íntima ligação (e dependência política e material) com a União Soviética e o Partido Comunista da União Soviética (PCUS). Os militares consideravam o PCB como instrumento de um poder estrangeiro infiltrado na sociedade brasileira. Para combatê-lo utilizavam todos os métodos, “até os legais”, diziam.

Nos vinte anos de pesquisa o autor realizou 34 entrevistas com militares e policiais de órgãos de operações e informações; 9 entrevistas com outros militares e policiais; 70 entrevistas com militantes do PCB e outros. Foram realizadas pesquisas e consultas em 33 jornais, 48 sites e 13 filmes e documentários. A pesquisa se estendeu a seis grandes arquivos, inclusive de Portugal, Itália e Estados Unidos. E foram extraídas informações de cerca de 300 livros.

O texto é ágil e passa de um tema a outro rapidamente como, por exemplo, do desaparecimento de Rubens Paiva para o sequestro de  Charles Elbrick, embaixador dos Estados Unidos. E daí para a morte de Marighella e de Lamarca. O relato refere a uma infinidade de nomes que aparecem e desaparecem num instante. Voltam a aparecer mais adiante, ora por extenso, ora pelo prenome ou então só o sobrenome, o que obriga o leitor a uma atenção especial para não perder o fio da meada. Por exemplo, o agente do CISA, Antonio Pinto, num momento é Pirilo, em outro, Azambuja. O seu cachorro, o militante que se tornaria quadro dirigente do PCB, Theodoro de Mello Severino, será o agente Vinicius a serviço do CISA.

Tanto os militantes como os agentes da repressão usavam nomes de guerra. Por exemplo, os torturadores do ex-deputado federal Marco Antonio Coelho eram os doutores Edgar e Homero, na verdade os capitães do Exército André Pereira Leite Filho e Otoniel Eugênio Aranha Filho, que mais adiante vão ser citados apenas como doutor Edgar ou doutor Homero.  O cruel capitão Ênio Pimentel da Silveira, chefe do DOI de São Paulo era o doutor Ney e assim aparecerá várias vezes. Para se guiar nesse labirinto o leitor pode fazer consultas no enorme índice onomástico. Verá, por exemplo, que o dirigente Diógenes Arruda Câmara (citado 27 vezes) ora é referido por extenso, ora por Arruda Câmara, ora ainda, por Arruda.

O GRANDE CENÁRIO

O leitor impaciente vai demorar para chegar até a história do militante Mello infiltrado nos mais relevantes postos da direção do PCB. Porque é da história do PCB que o texto trata, especialmente a partir dos anos 1940, as idas e vindas da linha política, a curta legalidade, a volta à clandestinidade, a ilusão de estar próximo ao poder e o golpe militar de 1964. Trata da trajetória do partido na clandestinidade sob a ditadura militar e também de suas relações com o Partido Comunista da União Soviética, os cursos de formação de quadros em Moscou, a ajuda financeira, o chamado “ouro de Moscou”. É também ali que se refugiam os dirigentes para escapar do extermínio.

Sem esquecer os solavancos históricos após a morte de Stalin e as denúncias de Kruschov que abalaram o movimento comunista internacional pondo em questão a tática e a estratégia para a busca do socialismo.

É notável que o autor não se refira ao grande racha que se deu no partido após este alterar seu programa, mudar de nome (de Partido Comunista do Brasil para Partido Comunista Brasileiro) e adotar o caminho pacífico para a conquista do poder. Não há uma palavra sobre a decisão de dirigentes históricos liderados por João Amazonas, Maurício Grabois e Pedro Pomar de conservarem o nome e a doutrina do Partido, mantendo a continuidade da organização revolucionária, o PCdoB.   

Uma importante qualidade do livro é que também conta a história dos serviços secretos militares permanentemente ocupados em se informar, tentar antecipar e reprimir cada passo do partido. Do seu empenho em estudar a teoria revolucionária. Para eles a chave estava na teoria do italiano Gramsci e, como contrapartida tentavam disseminar, por todos os meios, ideias em oposição. Surpreendidos pelo magistral trabalho produzido por um grupo de intelectuais em torno do arcebispo Evaristo Arns, sobre os crimes da ditadura, Brasil Nunca Mais, replicaram produzindo sua própria versão das ações da ditadura no livro Orvil e nas peças de propaganda que chamaram de Terrorismo Nunca Mais.  Entretanto, fica evidente que a infiltração nos vários níveis e principalmente na mais alta direção do PCB foi a sua principal arma de combate. 

Ao cabo de sua exaustiva pesquisa o autor retrata com riqueza de detalhes, que chega às vezes aos dias e às horas dos acontecimentos, cada passo do PCB e dos seus algozes.  Para chegar a esse resultado foi ao encontro dos protagonistas, fez sucessivas entrevistas, falou com eles presencialmente ou pela internet. Leu tudo que lhe caiu nas mãos. Mergulhou nas narrativas dos dois lados.  

OS PERSONAGENS

Talvez o personagem mais destacado dessa história hedionda seja o agente cujo nome de guerra era Pirilo. Fazia parte do CISA, o organismo de repressão da Aeronáutica, militar reformado que se especializou obsessivamente no PCB. Seu nome verdadeiro era Antonio Pinto, mas isso o autor desse livro só conseguirá descobrir muito tempo mais tarde e após pesquisas exaustivas.

Pirilo desenvolveu uma expertise para se relacionar com os militantes do partido que, havendo sido presos, se viam diante de uma escolha fatal: ou morriam ou se tornavam agentes infiltrados. No entanto, nas entrevistas com o autor ele sempre se defendeu dizendo hipocritamente que nunca torturou nem matou ninguém, que isso era trabalho de outros, e que ele fazia o papel do policial “bonzinho”.

Pirilo era “dono” de vários cachorros, como eram chamados os que preferiram trair do que morrer. Seu principal cachorro foi o alto dirigente do PCB Theodoro de Mello Severino, preso em 1974 e que, por muitos anos, o manteve informado de cada passo da direção do partido. O que resultou, entre outros prejuízos, na morte ou desaparecimento de praticamente a maioria do Comitê Central e  de outros quadros partidários.

Mello, que para o CISA era o agente Vinicius, passou de guarda-costas de Luis Carlos Prestes, a fazer o chamado trabalho de fronteira, isto é, responsável pela produção de documentos e pela entrada e saída de militantes do país. Por causa de suas delações o jornal Voz Operária  deixou de ser impresso no Brasil após o sequestro e morte dos militantes envolvidos.

Era como a raposa tomando conta do galinheiro. Só para dar um exemplo, enquanto era responsável pelo trabalho de fronteira entregou Davi Capistrano, dirigente do partido que voltava de Moscou, e que foi preso na chegada, morto e esquartejado na Casa da Morte de Petrópolis.

Em Moscou, Mello esteve sempre próximo e era de absoluta confiança da Prestes. E também foi interlocutor de altos dirigentes do PCUS, o que permitia ao CISA dividir informações sobre o partido soviético com a CIA dos Estados Unidos. Foi promovido ao secretariado do comitê central, o mais alto posto na hierarquia do partido.

Apelidado de Pacato por seus modos calmos, era de uma habilidade e frieza extraordinárias. Na cara de pau conseguiu que Pirilo publicasse um artigo na Tribuna de Debates do partido, assinando como Azambuja, sob o título de “O PCB se burocratizou”. Mello conseguiu até infiltrar Pirilo nas assembleias do 9º. Congresso do Partido.  Foi tão competente que todas as suspeitas ou denúncias de que era um infiltrado foram sempre repelidas vigorosamente por Prestes e outros dirigentes. Não acreditaram nem quando uma reportagem de Expedito Filho na revista Veja de 20/05/1992, intitulada “Na cabeça do PCB”, publicou entrevista do sargento Marival Chaves, que participara dos grupos de torturadores. Nessa entrevista Marival contava que Mello era agente policial infiltrado.    

O partido só aceitou que era um traidor anos depois do final da ditadura militar. Foi então excluído e teve cancelado seu salário, o “socorro vermelho”.  Porém, continuou sempre amigo e confidente de seu “dono”, o Pirilo, ou Azambuja, e jamais soube que seu nome verdadeiro era Antonio Pinto.

Morreu com 105 anos, sozinho, e ninguém foi ao seu enterro. No enterro de Antonio Pinto, comparsas do CISA compareceram, mas nenhum registrou o nome na lista de presentes. Nessa ocasião a URSS havia deixado de existir e o que havia restado do PCB passara a se chamar Partido Popular Socialista, PPS, fundado em 1992.

GODOY, Marcelo. CACHORROS: A história do maior espião dos serviços secretos militares e a repressão aos comunistas até a Nova República. São Paulo: Editora Alameda, 2024.

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Carlos Azevedo é pesquisador do Grupo de Pesquisa da Fundação Maurício Grabois sobre a Sociedade Brasileira.

Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.