A ONU celebra 2025 como o Ano Internacional da Ciência e da Tecnologia Quânticas. Atividades estão programadas em todo o mundo, inclusive no Brasil. A escolha do ano 2025 justifica-se naturalmente por ser o centenário da publicação dos trabalhos do físico alemão Werner Heisenberg que deram origem a essa teoria física. A motivação da ONU é a de ampliar a consciência pública sobre uma revolução tecnológica que se encontra em andamento, bem como do impacto científico e cultural dessa teoria da Física. De fato, aplicações tecnológicas da quântica estão presentes na nossa vida cotidiana, mesmo que não tenhamos consciência disso. Exemplos são o laser, onipresente, e métodos de imageamento médico como a ressonância magnética. Um precursor da eletrônica presente nos atuais computadores e celulares foi a invenção do transistor, a qual abriu as portas para a atual microeletrônica. Não se trata, contudo, apenas de uma referência aos produtos tecnológicos já disponíveis graças a essa teoria. O Ano da Quântica mostra também uma mudança tecnológica em seus passos iniciais, como a computação quântica, o uso da quântica para criptografar informações, os sensores quânticos, enfim, um campo que tem se convencionado denominar de tecnologias quânticas ou mesmo de segunda revolução quântica.
Esta segunda revolução quântica apresenta um interesse cultural muito significativo porque ela é uma mescla de pesquisa de aplicações tecnológicas com pesquisas sobre os próprios fundamentos da teoria. Trata-se de um caso singular que ilustra o modo complexo como funciona a ciência, onde não existe uma separação inequívoca entre pesquisa básica e aplicada, ou tecnologia e fundamentos.
De fato, a mecânica quântica surgiu carregada de questões e dúvidas sobre seus fundamentos e interpretação. São conhecidos os debates entre Einstein e Bohr sobre o bom fundamento, ou não, da introdução de descrições probabilísticas como descrições fundamentais, no lugar de descrições determinísticas. Contudo, ninguém nas décadas de 1920 e 1930 ousou conjecturar que a investigação sobre tais questões abriria as portas a desenvolvimentos tão grandes que exigiriam o termo segunda revolução quântica para os descrever. Por um lado, a nova teoria viu o seu âmbito de aplicação alargar-se em vários domínios, incluindo átomos, moléculas, luz, interação entre luz e matéria, efeitos relativísticos, quantização de campo, física nuclear e física de estado sólido e de partículas. Por outro lado, houve debates sobre interpretações alternativas, o status das previsões estatísticas, a completude da teoria, a lógica subjacente, as estruturas matemáticas, a compreensão das medições e a transição da descrição quântica para a descrição clássica. Até o início da década de 1960, parecia, contudo, haver uma coexistência entre essas duas ordens de questões, sem qualquer interação entre elas. Mais que isso, nem sempre a pesquisa sobre interpretações da quântica foi vista com bons olhos pela comunidade dos físicos, o que me levou a denominar os cientistas que trabalhavam com tais temas como “dissidentes quânticos”.i
A partir do final da década de 1960, porém, esse cenário passou por mudanças dramáticas. O principal fator de mudança foi a formulação do teorema de Bell. Este teorema estabelecia um conflito entre certas previsões da mecânica quântica e a suposição de realismo local. Este pressupõe que sistemas físicos têm propriedades bem definidas, independentes de estarem sendo observados; a que medições em um sistema não devem alterar o estado de um outro sistema, distante daquele sobre o qual foi feita uma medida. Esta forma de realismo tinha sido acalentada por Einstein e vários outros cientistas. Restava saber se os experimentos confirmariam as previsões da quântica ou as expectativas de Einstein. Os diversos testes experimentais, que tiveram início em 1972, e foram repetidos em distintas configurações por quase cinco décadas, confirmaram as predições da quântica. Isto levou à compreensão da existência de um novo efeito físico, o emaranhamento quântico. Isso significa que os estados de sistemas quânticos espacialmente separados não são independentes, a descrição física será necessariamente do conjunto dos sistemas e não a soma da descrição de cada um. Ademais, isso implica que a alteração do estado de um sistema repercute instantaneamente no estado do outro; em uma aparente violação do princípio da relatividade. Aparente porque logo se compreendeu que este novo efeito, o emaranhamento, não pode ser usado para transmitir informações à distância. O impacto desses resultados foi a base para a concessão do Prémio Nobel de 2022 para o trio John Clauser, Alain Aspect e Anton Zeilinger. Outro avanço teórico foi a compreensão e cálculo da interação de um sistema quântico com seu ambiente, característica hoje conhecida como decoerência. Grosso modo, se pode dizer que a descrição usual do nosso mundo macroscópico só é possível porque os efeitos quânticos presentes no mundo microscópico são muito rapidamente anulados pela interação dos sistemas quânticos com o ambiente que os envolve. O emaranhamento e a decoerência resultaram, portanto, do diálogo entre a pesquisa sobre os fundamentos e as previsões quânticas.
A partir do início da década de 1980, ocorreu outra grande mudança, em termos de técnicas experimentais, o que permitiu aos físicos manipular sistemas quânticos singulares e realizar em laboratórios o que antes eram experimentos mentais, apenas idealizados. Por último, a percepção de que os sistemas quânticos podem ser usados na computação abriu as portas para os primeiros algoritmos quânticos. No seu conjunto, estes desenvolvimentos produziram um novo campo de investigação, a informação quântica, que tem os computadores quânticos como o seu Santo Graal. O termo segunda revolução quântica distingue essas novas conquistas daquelas derivadas da mecânica quântica nas suas décadas iniciais.
Cabe notar, finalmente, que será também um ano de comemoração da ciência brasileira. A descoberta por Cesar Lattes do méson pi é parte dessa história da quântica porque a existência dessa partícula foi prevista pelo físico japonês Yukawa usando a mecânica quântica para modelar a estabilidade dos núcleos atômicos.ii Na mesma década de 1940, tivemos a primeira brasileira a obter um título de doutorado em física no exterior, Sonja Aushauer. Ela foi aluna de Dirac, em dos criadores da quântica, e, infelizmente, faleceu precocemente.iii Pouco depois, o físico David Bohm, um personagem chave nos debates sobre os fundamentos da quântica, ensinou na USP por quase quatro anos, aqui encontrando acolhida quando perseguido pelo Macartismo norte-americano.iv Na mesma época, graças à criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, o CBPF no Rio de Janeiro, aqui esteve por um ano o norte-americano Richard Feynman, que ganharia o Nobel pouco depois por seus trabalhos em teoria quântica de campos. Mas recentemente, em pesquisas que abriram o caminho para a segunda revolução quântica, particularmente relacionadas ao fenômeno da decoerência, tivemos participação destacada dos físicos Amir Caldeira, da Unicamp, responsável pela criação do equação Caldeira-Leggett, o que abriu o caminho para o tratamento quantitativo dos modelos descrevendo a interação entre sistemas quânticos e ambiente;v e Luiz Davidovich, que junto com Nicim Zagury e físicos da UFRJ têm participado ativamente no trabalho teórico de experimentos com cavidades quânticas conduzidos pelo grupo de Serge Haroche na França. Esse trabalho permitiu realizar em laboratórios o análogo de experimentos com gatos de Schrödinger, o que levou Haroche ao Prêmio Nobel em 2012.
Os debates sobre o Ano Internacional da Ciência e da Tecnologia Quântica devem contribuir também para nos alertar sobre o papel que brasileiros poderão ter, se devidamente apoiados pelo estado e pela sociedade brasileira, na segunda revolução quântica que está em andamento.
i O. Freire Junior, The Quantum Dissidents, Springer, 2015.
ii M. Goes e T. Coutinho, Cesar Lattes: Uma vida, Record, 2024.
iii B. Miguele, Sonja Ashauer e a História da Física Teórica no Brasil: Um Estudo sobre a Participação Feminina na Ciência, Mestrado, USP, 2019.
iv O. Freire Junior, David Bohm – A Life Dedicated to Understanding the Quantum World, Springer, 2019.
v Freitas, F. Tony Leggett’s Challenge to Quantum Mechanics and its Path to Decoherence, em O. Freire (ed.) The Oxford Handbook of the History of the Quantum Interpretations, 2022.
Olival Freire Jr. é Professor de Física e História das Ciências na Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.