Cenas de cartão postal do Rio – Pão de Açúcar, Corcovado, Maracanã, Copacabana – ao som de “A Voz do Morro”, de Zé Keti, instrumentalizado por Radamés Gnatalli, vão se intercalando pelo alto. De repente, as cenas vão mostrando os morros, as comunidades e, sem acabar a música, vemos pessoas descendo e subindo a favela, umas com latas d’água na cabeça, outras com passos acelerados. Num próximo corte, o morro íngreme. Assim começa “Rio 40 graus”, de Nelson Pereira dos Santos.
O ano é 1955, há exatos 70 anos atrás, chegava nas telas de cinema o filme do então jovem cineasta. Essa obra, na minha opinião, mudaria e moldaria a cara do cinema brasileiro para sempre.
A favela como tal só tinha sido retratada em 1935, no filme “Favela dos meus amores”, de Humberto Mauro, que tinha um romance como enredo. A história fala sobre dois amigos que montam um cabaré na favela, e um se apaixona pela professora da localidade.
Foi a primeira vez que o cinema brasileiro teve um cenário realista, com tomadas na favela da Providência. Misturava o samba e a trama, como eram realizados os filmes das chanchadas, mas seus personagens eram brancos. Isso tem a ver com a política do Estado Novo, que exigia a projeção do “embranquecimento” em suas histórias. O filme foi um grande sucesso, suas sessões lotadas e a crítica muito positiva. Infelizmente, o filme se perdeu num incêndio em 1960.
Vinte anos depois de Favela dos Meus Amores, Nelson escancara a favela e mostra como a vida é. Com personagens negros, a questão da classe social latente, a solidariedade entre os moradores, as dificuldades dos habitantes do morro, tudo é mostrado de forma realista.
Foi filmado no morro do Cabuçu, próximo ao estúdio em que Nelson trabalhava, que era um local bem conhecido pelo diretor, já que ele fez muitas amizades com moradores da favela que trabalhavam no mesmo estúdio.
A preocupação de Nelson não era a favela em si, mas o povo brasileiro que não se via na tela.
Formado nas fileiras do Partido Comunista do Brasil (PCB) – fez dois filmes encomendados pelo próprio Partido (um sobre a Juventude trabalhadora e outro sobre a divisão do trabalho – ambos perdidos). O jovem cineasta tinha forte influência do neorrealismo italiano, que trabalhava com atores amadores, cenários reais, e temas que abordavam as classes menos favorecidas.
Ele discutia nos Congressos de cinema e na revista “Fundamentos”, que era preciso mostrar o povo brasileiro como ele é, e não só representar histórias das classes média e alta nas telas de cinema, como pretendia a influência do cinema norte-americano.
Dizia Nelson sobre os filmes brasileiros: “As mocinhas maquiladas à americana…tão pouco nosso, artificial para nós” e “O uso da língua portuguesa formal…preconceito com a língua coloquial, errada, que é a nossa mesmo”.
Como se pode notar, tanto o neorrealismo quanto o marxismo foram os pilares do cinema inicial de Nelson.
A Produção do “Rio 40 Graus”
Realizar o primeiro longa independente de ficção não foi fácil. Nelson saiu de São Paulo e se estabeleceu no subúrbio do Rio de Janeiro. Jovem, sem renda fixa, e com sua esposa grávida, recebia uma ajuda do Partido, mas não obteve sucesso na arrecadação financeira para o filme.
Se, por um lado, os produtores não se sentiam atraídos pela história que falava de 5 meninos negros que vendiam amendoim, num domingo escaldante; o Partido, que já havia financiado seus dois primeiros filmes, também não se atraía para a ideia.
A direção acreditava que cinema revolucionário só poderia existir depois da revolução, antes disso, qualquer filme, seria “coisa de pequeno burguês”. Então, para ocupar o seu tempo, tiraram Nelson da Comissão da Cultura Nacional e lhe deram a tarefa de lecionar aulas nas células da Lapa e Santa Tereza.
Com o caminho obstruído e sem financiamento, Nelson decide pelo lado mais difícil, o lado do seu sonho: fazer cinema.
Nelson deixa de dar as aulas e inventa cotas para vender o filme. Distribui entre a equipe essas cotas e cada integrante ganharia um percentual da venda. Foram tempos duros. A equipe passou a morar num apartamento. Mais tarde, Nelson, Zé Keti, Hélio, todos com as esposas e filhos, e os solteiros, Jece Valadão e Guido, alugariam um casarão, onde viveram num total de 18 pessoas.
A sorte de Nelson, era que o Brasil tinha isentado a importação de películas cinematográficas, o que facilitou a compra dos filmes. Outro fator positivo, é que Humberto Mauro, que na época dirigia o INCE – Instituto Nacional de Cinema Educativo – , emprestou uma câmera cinematográfica em desuso e quebrada. Hélio Silva, fotógrafo do filme, consertou a câmera e colocou para rodar. As filmagens iniciaram em março de 1954, mas, com tantas dificuldades, só foram finalizadas em 1955.
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A história de uma trupe de meninos negros, vendedores de amendoim, entrelaçando o domingo quente e a euforia do futebol num Maracanã lotado, o contraste da favela com os pontos turísticos do Rio de Janeiro, mostram o quão é genial “Rio 40 Graus”. E claro que a estética do neorrealismo está cravada na digital do filme.
Mesmo com um período extenso de produção e sem dinheiro, Nelson não perdeu a mão naquilo que ele acreditava ser o aspecto nuclear do filme – o respeito com a alma do povo brasileiro.
Porém, na hora de mostrar o filme nas telas, a censura o proibiu. Os fatores para isso foram inúmeros: Nelson era comunista orgânico; o filme dava destaque para o negro e o realismo da favela, tudo aquilo que o Estado repudiava. Como esses elementos não vinham à tona, já que eram tempos de Juscelino Kubitscheck, os censores diziam que não podiam autorizar um filme que, segundo eles, era uma mentira: O Rio nunca chegou a 40º!, diziam.
Houve campanha para a liberação do filme, criando enorme expectativa. Ao ser liberado, o filme não teve muito tempo de vida nas telas. Segundo a explicação de Nelson, o motivo era que o público acreditava que a proibição seria por conta de nudez ou coisa parecida, frustrando o expectador.
Mas, independente do público, nascia com “Rio 40 graus” um novo jeito de fazer cinema brasileiro, tanto que a crítica rasgou elogios: da época até os dias de hoje, o primeiro filme autoral de Nelson é referendado no mundo todo.
O próprio Glauber Rocha exalta o filme em seu livro: A Revolução do Cinema Novo, de 1981, e coloca Nelson como a Fénix do cinema brasileiro depois da falência da Vera Cruz. Foi um marco revolucionário.
Outros Rio 40 graus
Rio 40 graus foi alicerce para o cinema novo, para a experiência do CPC da UNE em “5 vezes favela”, para filmes financiados pela Embrafilme, filmes da retomada e está nos filmes e séries feitos até hoje em dia. Claro que a sociedade mudou, o país mudou, o cinema, tudo, mas a favela está no DNA da filmografia brasileira.
Porém, podemos dizer que algumas queixas que Nelson recebeu ao lançar seu filme persistem até hoje. Vai dizer que você nunca ouviu um “Ah, é filme de comunista! “Não gosto de filmes que tratam a realidade!”; “Não aguento assistir filme de favela!”, “O Brasil só faz filme sobre violência! “, “todo filme que o Brasil faz agora tem que ter preto?”
Eles continuam nos atacando, mas o povo e o cinema continuam resistindo!
Rio 40 Graus – 100 min
Ficha técnica
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Roteiro: Arnaldo de Farias, Nelson Pereira dos Santos
Produção: Mario Barros
Direção de Fotografia: Hélio Silva
Montagem: Rafael Justo Valverde
Trilha Sonora: Radamés Gnattali, Alexandre Gnattali, Claudio Santoro
Som: Amedeo Riva
Elenco
Ana Beatriz, Glauce Rocha, Jece Valadão, Jorge Brandão, Mauro Mendonça, Pedro Cavalcanti, Renato Cosorte, Roberto Bataglin, Sadi Cabral
Apresentando as crianças: Edison Vitoriano, Nilton Apolinário, Paulo Estevão, José Carlos de Araújo e Haroldo Oliveira.
Referências Bibliográficas:
NETO, Antônio Leão da Silva (2002). Dicionário de filmes brasileiros.
ROCHA, Glauber (2004). Revolução do Cinema Novo. Cosacnaify
SADLIER, Dalene J (2003). Nelson Pereira dos Santos. Papirus Editora.
SALEM, Helena (1987). Nelson Pereira dos Santos: O sonho possível do cinema brasileiro. Editora Nova Fronteira.
Vandré Fernandes, cineasta. Dirigiu longas de documentários “Camponeses do Araguaia – A Guerrilha vista por dentro”; vencedor da Mostra de Cinema e Direitos Humanos da América do Sul; Osvaldão; Histórias da Praia do Flamengo, 132; e do curta de ficção “O Bom Velhinho”.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.