Preparem-se para o impacto? – O ano já começou e temos sido avisados para nos prepararmos para o impacto. Em análises diversas, o pior presságio parece ser o retorno de Donald Trump à Casa Branca, acompanhado do seu cavaleiro do tecno-apocalipse, Elon Musk, e dos seus Secretários e Consultores da sua estirpe. Contudo, há muito que o mundo acelera em rota de colisão. Também por isso, não só estamos avisados como temos mais do que uma noção do que seguiremos enfrentando.
Chegamos a um quarto de século de já não tão novo milênio. Posto nesses termos, parece haver algum marco a analisar. Por exemplo, começou em 2000 o que alguns entenderam como uma “década disruptiva” – como se as anteriores tivessem sido plácidas. Os mais notórios “eventos” que causaram disrupções – ou intensificaram certos processos – teriam sido os ataques de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, seguidos pelas suas invasões do Afeganistão e do Iraque, lançando uma “Guerra ao Terror” que tanto chacoalhou as relações internacionais e as instituições multilaterais propagandeadas desde meados do século 20 como garantes legítimos da “ordem internacional”. Em seguida, veio a crise que eclodiu em 2007-2008 no centro do capitalismo e se espalhou para o mundo, instaurando a política do arrocho e mais intervenções por parte das instituições financeiras.
Também foi naquela década que a Internet intensificou a mudança na forma como parte da humanidade, aquela com acesso e recursos, se relaciona e consome – bens materiais, informações, e mais, catalisando problemas que mais recentemente têm sido subsumidos ao impacto negativo das redes sociais, especialmente na política. Eis que, em 2022, a compra do Twitter por Musk, o detentor da maior fortuna do planeta, pintou mais uma parte desse retrato – um perigo talvez mais aparente do que a sua posse de incontáveis satélites Starlink, da sua tentacular SpaceX, com alcance em “praticamente em qualquer lugar na Terra” – diz a agourenta propaganda. Entre tantas credenciais, segundo a Forbes, Musk criou um comitê de apoio à candidatura de Trump em 2024 ao qual teria doado cerca de 120 milhões de dólares e através do qual financiou o que poderia ser visto como uma espécie de esquema de compra de votos, ao dar diariamente USD 1 milhão para um eleitor de algum estado mais disputado. São muitos fatores para lançar ou confirmar hipóteses sobre o que megalomaníacos fascistoides e oligárquicos podem fazer pelo imperialismo do século 21.
Mas as continuidades dizem muito. De volta a 2000, os líderes globais reunidos na Cúpula do Milênio da ONU emitiram a sua Declaração por um mais pacífico e próspero, de maior igualdade entre os povos e instituições de confiança. Como nos pós-guerras do século 20, tratou-se de um reforço das promessas abstratas do universalismo liberal. “Apenas através de esforços amplos e sustentáveis para criarmos um futuro compartilhado, baseado na nossa humanidade comum, em toda a sua diversidade, poderá a globalização ser tornada totalmente inclusiva e igualitária”, dizia a “Declaração do Milênio”. Construiríamos um mundo de liberdade, igualdade entre indivíduos e nações, solidariedade, tolerância, respeito pela natureza, e responsabilidade compartilhada. Mas apenas um ano depois, as reações aos ataques nos EUA, com intervenções, guerras e políticas ditas de segurança extremamente ofensivas, com vítimas diretas e indiretas, mostrariam para que camadas do planeta esses valores vigorariam. Seguimos resistindo às consequências.
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Mantiveram-se constantes a militarização e a degradação do planeta, a exploração e a desigualdade global, catapultando-nos para uma era de “policrise”, o conceito cunhado por Edgar Morin nos anos 1990 precisamente num manifesto sobre o futuro da Terra e recuperado em análises diversas sobre os nossos anos 2020. Chegamos à metade da década e as crises parecem um tanto conhecidas. Pelo menos para a maior parte da humanidade, “normais”, não excepcionais. Portanto, para “os condenados do sul global”, como no título de um livro que faz referência a Frantz Fanon, são crises ou o estado das coisas, sob o sistema como o conhecemos?
Por exemplo, de 2022 para 2023, com 6,8%, o aumento dos gastos militares já tinha sido recordista, alcançando 2,4 trilhões de dólares (R$14,5 trilhões), segundo o Instituto Internacional de Estocolmo de Pesquisa para a Paz (SIPRI). Assim, a indústria do armamento teve um aumento de ganhos de 4,2%, com as 100 maiores empresas do ramo militar faturando 632 bilhões de dólares em um ano. E os próximos poderão ser promissores. Se, no primeiro mandato, Trump demandava que os demais membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) gastassem os 2% do PIB prometidos e “pagassem o que devem” à máquina da guerra global, o presidente eleito agora diz que os atuais 32 membros devem gastar 5%. É um objetivo que os ministros da defesa dos cinco países europeus de maior orçamento militar – Alemanha, França, Reino Unido, Itália e Polônia – consideram “irrealista”, mas o próprio secretário-geral da aliança, Mark Rutte, já vinha dizendo que o percentual está defasado e precisa aumentar para mais de 3%. Agora, não é o Talibã ou Al-Qaeda, mas sim Vladimir Putin, o principal espantalho: diz Rutte que se os europeus não gastarem mais no setor, é melhor “aprenderem a falar russo”.
Enquanto isso, segundo o Banco Mundial – se for para citar a instituição apesar do seu viés, fechamos 2024 com mais de 700 milhões de pessoas (8,5% da população mundial) vivendo em extrema pobreza, com menos de USD 2,15 por dia. As taxas de empobrecimento nos chamados países de baixos rendimentos aumentaram em comparação com o período pré-COVID-19. Em particular, a África Subsaariana, com 16% da população mundial, já tinha 67% daqueles que vivem em extrema pobreza. Ainda, cerca de 3.5 bilhões de pessoas (44% da população mundial) continuam pobres nos padrões dos países considerados de renda média, com USD 6,85 por dia, enquanto o número de pessoas que vivem com menos do que isso quase não mudou desde os anos 1990. Para piorar, a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) alertava ainda que os países mais pobres gastam 23% das receitas para pagar dívida externa e que uma crise se avizinhava.
Em meados da segunda década deste milênio promissor, enfrentamos diferentes tipos de catástrofes – o genocídio contínuo e televisado, a destruição da natureza, o colapso das instituições multilaterais, a deslegitimação da política e os desvarios dos líderes populistas e fascistas aliados às indústrias de tudo o que pode ser monopolizado, a proliferação dos diferentes tipos de guerra, e tantas mais. Entre a presciência e o desespero, urge construir estratégias conscientes das nossas condições e capacidades nessas diversas frentes. Enquanto isso, as disrupções continuam, mas também desde baixo, com a resistência.
Moara Assis Crivelente é Diretora executiva do CEBRAPAZ – Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz, doutora em Política Internacional e Resolução dos Conflitos e pesquisadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.