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    Sustentabilidade

    Transição energética sabotada: impactos do desmonte estrutural

    Aumento das importações de combustíveis, queda no uso de biocombustíveis e o fim de programas como o PMQC revelam os impactos do desmonte estrutural, mesmo após dois anos do governo Lula. Confira o segundo artigo sobre a política de combustíveis.

    POR: Luis Eduardo Duque Dutra

    Parte II* – O fim do Programa de Monitoramento da Qualidade dos Combustíveis (PMQC) da Agência Nacional de Petróleo (ANP) não seria um paradoxo, caso representasse uma continuidade dos dois governos anteriores. Vale lembrar que, a partir de meados da década de 1970, o abandono da solução keynesiana e a busca pelo Estado mínimo reformataram o capitalismo e as políticas públicas. A globalização, financeirização, securitização e privatização da infraestrutura são eventos correlacionados, manifestações das mudanças que ocorreram após os dois choques do petróleo. Ferrovias, aeroportos, energia, telecomunicações, água e saneamento, os antigos monopólios foram desmantelados e, de forma fragmentada, vendidos aos grandes grupos econômicos. Até a regulação foi atualizada, desmembrada em autarquias especializadas, uma agência por setor. Em cada uma, a mesma sina – desregular. Porém, em 2008, a ordem neoliberal conheceu sua grande crise, quando a bolha das debêntures estourou em Nova York.

    No Ocidente, o menor crescimento e o aumento da desigualdade deram origem a vozes messiânicas (como Erdogan na Turquia) e personagens mercuriais (como Trump nos EEUU), a multiplicação do xenofobismo e eventos como o Brexit

    Por aqui, depois de 2016, a privatização foi retomada tendo como alvo a Petrobrás que, a despeito da “quebra” do monopólio, dez anos depois, em 2007, descobrira a maior província petrolífera em águas ultraprofundas. Muito bem, menos de seis anos foram suficientes para desmembrá-la, amputando seus braços do consumo. Em julho de 2019, 71,2% das ações da Petrobrás Distribuidora foram a oferta pública, em dezembro de 2020, foi a vez da Liquigás, empresa de engarrafamento de GLP e, em julho de 2021, foram vendidos os restantes 37,5% da distribuidora. Também em 2021, a estatal vendeu sua refinaria na Bahia. Em seguida, foram alienadas as plantas de Manaus e no Rio Grande do Norte. No acordo com o CADE, em 2019, o compromisso era vender metade do refino. Fora do eixo formado por Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, isso criaria monopólios regionais, em mais um desafio para regulação do setor. 

    O refino é estratégico na longa transformação industrial e agregação de valor do petróleo. É um elo-chave da filière, do qual partem cadeias logísticas que movimentam vários derivados. A cada segmento, a integração dos ativos evita gargalos e rupturas no suprimento de bens indispensáveis em todos os cantos do país. Em síntese, o refino agrega valor ao petróleo e diminui importações. Já, o abastecimento é assegurado por diferentes infraestruturas, cada uma se debruçando sobre produtos com manipulação e uso completamente distintos: combustíveis automotivos, marítimos, aeronáuticos, GLP, asfalto, lubrificantes, solventes e, enfim, nafta, da qual derivam as cadeias petroquímicas. Apesar da complexidade, a organização é conhecida, bem rodada e tinha a Petrobrás Distribuidora como protagonista.

    Confira a Parte I do Artigo: Antiga política de combustíveis encarece transição energética

    Na defesa do interesse coletivo e do aprimoramento da ação estatal, é imperiosa a reavaliação periódica das políticas públicas. O exame se faz essencialmente quanto ao atingimento dos objetivos e custo social incorrido. No Brasil, a importância das rodovias se resume em poucas estatísticas: aproximadamente 65% das cargas movimentadas e mais de 80% das viagens são feitas por automóveis, ônibus e caminhões. Ainda mais revelador: 92,2% das emissões de GEE dos transportes são atribuídas ao modal rodoviário. Única no mundo, a penetração dos biocombustíveis faz a diferença quando comparado a outros países, mesmo os mais ricos. Em 2022, o modal foi responsável por 8,6% das emissões e todo o setor de transporte respondeu por um décimo das emissões. Nos EEUU, o setor responde por 30% das emissões, proporcionalmente três vezes mais e, na Europa, a participação chega a 20%. Ao se apoiar nos biocombustíveis, a nossa vantagem é incontestável. 

    Funcionário da ANP faz teste de qualidade de combustível vendido em posto do Brasília (DF).

    Funcionário da ANP faz teste de qualidade de combustível vendido em posto do Brasília (DF). Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

    O contínuo avanço da conformidade e da especificação, no sentido de ganhar eficiência energética e ambiental, viabilizaram a penetração dos biocombustíveis de forma gradual e ordenada. Contudo, depois da Petrobrás se desfazer da distribuição, o Estado se abster de vigiar e fiscalizar significa deixar o mercado à própria sorte. Além disso, a eventual degradação da qualidade dificultará a reversão das emissões do setor. Após 2015, elas vinham caindo, mas, a partir de 2021, inverteram o movimento e subiram rapidamente. Assim, em 2023, atingiram um recorde; culpa dos biocombustíveis. As vendas de álcool hidratado, depois de 2019, caíram continuamente e, apesar da retomada em 2023, ainda assim, estavam 22% abaixo de 2019. A soma hidratado e anidro, que atingira o teto em 2019, ainda não se recuperou. Em 2023, continuava 8% abaixo do recorde da década passada. 

    Tudo contrário ao pretendido pelo Renovabio, com uma única exceção: o biodiesel, numa demonstração da efetividade de outra política: aquela mandatória. Em setembro de 2021, para combater a inflação, Bolsonaro reduziu o teor de 12% para 10%. Em abril de 2023, o novo governo voltou à antiga mescla, em março último, elevou mais uma vez a mistura, para 14%, e sinalizou novo aumento para 15% em 2025. Resultado: entre 2021 e 2023, o consumo de biodiesel cresceu 29% contra 14% para o Diesel. E, sublinhe-se, isso ocorreu apesar dos seus preços. Aliás, o exame desses corrobora a carência de resultados do Renovabio e retrata o impacto da privatização a jusante.

    Leia também: Sem cooperação e adaptação climática, não haverá transição energética justa no Brasil

    Recentemente, petróleo e gás natural experimentaram um período conturbado. O preço do barril foi multiplicado por quatro entre abril de 2020 e abril de 2022. Pois bem, apesar disso, até o final de 2023, à saída da destilaria, o álcool foi sempre mais caro que a gasolina à saída da refinaria. Com o biodiesel, a diferença é fenomenal: entre maio de 2019 e maio de 2024, enquanto o preço do Diesel subiu “apenas” 45%, o do biodiesel cresceu 189%! Não por falta de capacidade: a ociosidade das usinas de transesterificação permaneceu em 50% depois de 2019. No álcool, praticamente todo o crescimento derivou do milho. Portanto, a despeito dos juros, não faltou financiamento para expansão dos ativos produtivos e o Cbio não parece, de forma alguma, decisivo para tanto. Como visto, também em nada contribuiu para diminuir a desvantagem-custo dos biocombustíveis. 

    A mobilização de capitais privados em torno dos Cbios e a venda das subsidiárias da Petrobrás compunham o projeto neoliberal, em parte, abortado, mas, que impõem perdas à sociedade até hoje. No caso dos títulos, são bilhões extraídos do consumidor, via distribuidoras, em benefício dos usineiros. No caso da Petrobrás, as perdas precederam à privatização e datam dos tempos de quando ela cedia mercado para importadores. Para o País, os custos só cresceram. Entre 2016 e 2022, em volume, as importações líquidas de gasolina aumentaram em 70% e as de Diesel mais que dobraram. Em dólares, a despesa com gasolina mais que triplicou e com Diesel, mais que quintuplicou. Em apenas seis anos, com os dois combustíveis, o gasto subiu de quatro para dezesseis bilhões de dólares! 

    O que mais intriga são as decisões da ANP e do MME na defesa da livre-concorrência e do Estado mínimo. Como no caso dos Cbios, um crédito de carbono que nunca interessou a petroleira, o fim do programa de monitoramento da qualidade, sem a estatal ter recuperado espaço junto ao consumidor e considerando o histórico de cartelização, confirma o desgoverno na matéria. O descaso para com as atividades a jusante é repetido. A captura também não é novidade, seguiu-se às privatizações e à criação das agências, cuja independência sempre foi contestada. Por fim, seis anos bastaram para amputar os meios para agir, criar mecanismos de expropriação da renda do consumidor e aumentar de forma significativa as importações, sem contribuir em nada à queda das emissões. A suspensão do PMQC, em novembro de 2024, indica a continuidade do desmonte. Assim, nem tudo mudou quanto aos combustíveis e, dois anos depois da posse de Lula da Silva, subsistem sérios vícios, um desalinhamento evidente das políticas públicas e alto risco de abuso do poder econômico para benefício privado.

     

    Luis Eduardo Duque Dutra é professor da Escola de Química da UFRJ, e autor de Capital Petróleo: A saga da indústria entre guerras, crises e ciclos e pesquisador do Grupo de Pesquisa da Fundação Maurício Grabois sobre Transformação ecológica e diversificação energética

    *Este artigo é composto por duas partes. A primeira parte foi publicada na segunda-feira (20). 

    Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial dFMG

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